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Bruno Carvalho: «Há situações em que não podemos ser meros espectadores»

Em menos de um mês, A Guerra a Leste: 8 Meses no Donbass, do jornalista Bruno Amaral de Carvalho, já está a preparar a terceira edição. O AbrilAbril conversou com o autor sobre a sua experiência numa guerra fora dos holofotes.

Bruno Amaral de Carvalho perto da estação ferroviária completamente destruída de Mariupol, um episódio descrito no seu livro <em>A Guerra a Leste: 8 Meses no Donbass</em>.
Créditos / Bruno Carvalho

A um mundo de distância (e, para nós, o Donbass está mesmo num outro mundo), torna-se difícil acreditar que no meio daquela massa anónima existam mesmo pessoas. Que por ali andem criaturas dotadas com as suas próprias vontades, gostos, idiossincrasias engraçadas (para os outros). Que sejam, no fundo, como nós.

No Donbass estão os outros. Não lhes sabemos os nomes, não lhes é conhecida opinião ou vontade. Limitam-se a ser. Uns tantos mil que sobrevivem numa pequena cidade devastada por prolongadas batalhas, outros tantas centenas a combater em batalhões separatistas. Uma, duas, três, dez crianças que morrem na leva diária de bombardeamentos contra populações que vivem em terras com nomes que tão dificilmente sabemos pronunciar.

Este apagamento, de entre os vários motivos que levaram as redacções ocidentais a recusar-se a cobrir o que se passava no Donbass durante «o maior acontecimento geopolítico do pós-guerra fria», será talvez o mais flagrantemente antideontológico. Sem jornalismo e com a censura de órgãos de comunicação social «do outro lado», aquela gente é reduzida a coisa nenhuma. Não existem. Sem semblante de humanidade, é facil odiarmos os nossos "inimigos" (ou pior: "os maus").

Longe da vista, longe do coração.

Em A Guerra a Leste: 8 Meses no Donbass, publicado pela Caminho, o jornalista Bruno Carvalho furou a redoma que o Ocidente colocou sobre toda esta região. O livro é tanto sobre o autor como sobre estes outros apagados: tradutores, colegas de profissão, condutores e, acima de tudo, os que vivem e lutam pelo Donbass.

Conhecemo-los agora pelo nome: Luís Castañeda, colombiano, que veio estudar para Donetsk nos anos 80 e nunca mais voltou. Ekaterina, de Odessa, que em 2014 presenciou o massacre na casa sindical da cidade. Alexander, de 59 anos, antigo mineiro que sabe, hoje, distinguir artilharia pelo som. A família de Dima, que com a mulher e os quatro filhos viveu mais de um mês numa cave em Mariupol ou o soldado benfiquista que, em terras lusas, trabalhou na construção civil e hoje vigia estradas.

Não há «lugares errados para se fazer jornalismo».

O Donbass está condenado a ser um «lugar errado»?

O que define um «lugar errado» não é a sua geografia. É o seu enquadramento político no contexto mundial. Há não muito tempo, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, dizia que a Europa é um jardim e, em contraposição, o resto do mundo uma selva. Imediatamente, veio-me à memória as imagens de seres humanos, africanos, expostos numa feira belga em 1958 como se fossem animais num jardim zoológico.

«Queria sublinhar a importância de se ouvir o que as populações têm a dizer. Não há nada mais democrático do que resolver este conflito auscultando-as e tomando decisões que respeitem essas escolhas.»

A herança colonial europeia está viva nas relações do Ocidente com os países do chamado Sul Global e não espanta que haja uma aproximação cada vez maior desses Estados com potências como a China, a Rússia, o Irão ou o Brasil. Quando alguém não nos trata como iguais, procuramos quem nos trate com dignidade e respeito. Nesse sentido, a imprensa hegemónica, alinhada com o poder, define quais são os lugares e quem são os líderes errados. Os talibans já foram os bons e agora são os maus. O Donbass continuará a ser um lugar «errado» enquanto não estiver debaixo do controlo de Kiev ou de qualquer outro aliado dos Estados Unidos e da União Europeia.

N'A Guerra a Leste, vários cidadãos das repúblicas de Donetsk e Lugansk (assim como a refugiados de diversas partes da Ucrânia) assumem uma posição separatista e, noutros casos, favorável à intervenção russa. É uma oportunidade de ver uma perspectiva praticamente inédita no panorama mediático europeu. Também havia, no Donbass, quem defendesse o outro lado? Seja a posição ucraniana ou simplesmente contra a adesão à Federação Russa?

Evidentemente, há gente que defende a manutenção do Donbass na Ucrânia ou a independência dessas repúblicas. Contudo, parecem-me opções minoritárias. Há também quem recorde com nostalgia a União Soviética. Antes da guerra, talvez houvesse espaço para um modelo confederal como tem a Suíça ou para um modelo de regiões com uma autonomia alargada. Os Acordos de Minsk previam essa possibilidade e eu acrescentava que podia ter sido adoptada uma solução como aquela encontrada no âmbito do Acordo de Dayton que criou duas entidades territoriais dentro da Bósnia, uma para a comunidade bósnia e outra para a comunidade sérvia.

Julgo que as opções eram muitas se houvesse vontade política dos actores em confronto, mas queria sublinhar a importância de se ouvir o que as populações têm a dizer. Não há nada mais democrático do que resolver este conflito auscultando-as e tomando decisões que respeitem essas escolhas.

O que aconteceu aos comunistas desta região? Apontas como, na última vez em que participaram em eleições (2013, foram banidos a seguir a 2014), tiveram cerca de 30% dos votos em algumas zonas do Donbass

Os comunistas eram uma força imprescindível desde o fim da União Soviética no Leste da Ucrânia. Sobretudo porque transportavam consigo essa herança histórica. Com a sublevação das regiões do Donbass em 2014, os comunistas foram importantes no processo de criação das autoproclamadas repúblicas.

Contudo, o contexto de guerra e a influência de Moscovo favoreceram a existência de governos quase de unidade nacional com um papel diminuído das forças comunistas. Mantêm a sua intervenção política num ambiente muito complexo, onde a maioria dos homens se encontra a combater. Lembro-me de estar em Donetsk no 1.º de Maio de 2022 e de haver uma manifestação, organizada pelo Partido Comunista, composta por mulheres e homens sem idade para participarem na guerra. Nas últimas eleições presidenciais, como aconteceu em praticamente toda a Rússia, os candidatos apoiados por Vladimir Putin arrasaram, incluindo no Donbass. Há muitas explicações para este facto. Uma delas é que ninguém quer mudar de presidente a meio de uma guerra e a outra é que há de facto muita gente que defende a intervenção russa no Donbass.

O apoio à intervenção da Rússia pode ser entendida como um apoio ao regime de Putin ou é um caso de interesses confluentes? Os separatistas garantem a independência e os grandes poderes económicos russos ganham acesso àquela que era a região mais industrializada da Ucrânia

Recordemos que os comunistas russos já tiveram diversos choques com as autoridades russas. Para além das questões económicas, houve militantes comunistas detidos em manifestações. A forma de regime também é questionada no sentido em que os comunistas russos, aos quais se juntaram os comunistas de Donetsk e Lugansk, defendem um regresso ao modelo soviético.

Há, certamente, contradições entre as forças que apoiam a intervenção militar e diferentes visões sobre como o conflito deve ser resolvido. Independentemente de estarmos de acordo ou não, a questão central apresentada pelos comunistas russos é a da necessidade de derrota do fascismo na Ucrânia e, naturalmente, a ilegalização dos comunistas ucranianos, e agora de praticamente toda a oposição, tem peso nessa análise. 

Dos comunistas do Donbass com quem contactaste, qual era a posição deles em relação à Rússia de Putin (abstraindo-nos, um pouco, sobre toda a questão da invasão militar)

Vladimir Putin defende uma economia de mercado com alguma intervenção do Estado. Os comunistas defendem uma economia planificada. Há também visões distintas sobre como se deve organizar a sociedade.

Contudo, recordo que o presidente russo habilmente soube recuperar e valorizar a memória do passado soviético, sobretudo na preservação dos símbolos e dos monumentos, abdicando de confrontar uma história que é querida para uma parte substancial da população. Depois do desastre dos anos 90, com uma economia em colapso e com um presidente que abdicou da sua soberania, os russos parecem apostar na estabilidade económica e na preservação das suas fronteiras.

Dizes, a certo ponto, que não pertences a lado nenhum. É um contraste grande com a realidade no Donbass, onde tanto a população como alguns dos combatentes internacionais estão imersos numa luta de morte pelo direito a pertencer ao seu lugar

Mesmo que permaneça essa sensação de não pertencer a lado nenhum e ao mesmo tempo ser de todo o lado, ter um lugar donde se é também é um direito. Respeito muito a luta dos povos pela sua independência e autodeterminação e muitos desses combatentes estrangeiros acabaram por encontrar naquela luta e naquela terra o seu espaço. Foram recebidos de braços abertos por quem combatia e acabaram por obter a nacionalidade por parte das autoridades separatistas. Faz lembrar o título do enorme livro do jornalista Joseph North, Nenhum Homem é Estrangeiro [No Men Are Strangers, de 1958]

A luta que se trava no Donbass está muito longe de ser meramente uma disputa de territórios. Como mencionas n'A Guerra a Leste, há um confronto grande em termos de toponímia: Bakhmut mudou de nome para Artyomovsk em 1924, homenageando o revolucionário bolchevique Fyodor Sergeyev (Artyom). Voltou a mudar com a leis de descomunização de Poroshenko, em 2016. A recente conquista da cidade ditou a recuperação do nome soviético: Artyomovsk. No terreno, o confronto é muito ideológico?

«Respeito muito a luta dos povos pela sua independência e autodeterminação e muitos desses combatentes estrangeiros acabaram por encontrar naquela luta e naquela terra o seu espaço.»

Eu não diria que isso é sempre visível mas está presente. As tropas russas classificam o inimigo de fascista e essa é uma escolha que revela uma opção ideológica. Uma das consignas mais comuns no Donbass, mesmo que praticamente todos só saibam falar apenas russo, é «no pasarán», repetindo aquilo que aprenderam dos combatentes estrangeiros inspirados na guerra civil de Espanha.

Há bandeiras imperiais russas, bandeiras nacionalistas, bandeiras soviéticas, bandeiras religiosas. Do outro lado, nas minhas visitas às posições conquistadas às forças ucranianas encontrei simbologia neonazi em bandeiras, em murais, em autocolantes, também propaganda nacionalista. Há batalhões neonazis a combater pela Ucrânia que envergam todo o tipo de parafernália fascista. Aqui incluo estrangeiros, incluindo portugueses. Mas há ainda, sobretudo nas zonas mais mineiras e industriais, o culto do trabalho e do operariado, herança soviética.

Foi morto (poucos dias antes desta entrevista), o norte-americano «Texas», de Austin, nos EUA (que se juntou, após 2014, ao lado separatista) alegadamente por militares russos. Referes os encontros que tiveste com ele nesses oito meses. No final do livro destacas ainda a morte, em combate, do colombiano Alexis Castillo. O que estas pessoas procuraram no Donbass?

Tanto um como outro decidiram partir para o Donbass para combater o fascismo. As ondas do impacto do massacre de Odessa, na Casa dos Sindicatos, onde meia centena de manifestantes anti-Maidan morreu queimada, baleada e espancada, chegaram a todo o mundo.

O Alexis juntou-se às milícias separatistas inspirado pelas Brigadas Internacionais compostas por antifascistas de todo o mundo que combateram o franquismo nas trincheiras de Espanha em 1936. Foi contra a vontade do Partido Comunista dos Povos de Espanha, no qual militava na época. Aderiu posteriormente ao Partido Comunista de Donetsk.

O «Texas» tinha uma trajectória diferente. Talvez procurasse também a redenção pessoal. Esteve preso por posse de drogas, tinha servido no exército norte-americano. Depois contou-me que tinha encontrado o seu lugar. Era uma personagem muito peculiar. Houve outros tantos que caíram em combate. E na minha última viagem conheci um combatente brasileiro, que ascendeu a capitão do exército russo, de alcunha «MacGyver».

«Num jardim, em frente a uma escola, há várias sepulturas improvisadas. Numa das covas abertas, a espera de um cadáver, há uma placa: este lugar já está reservado». Há uma geração inteira de jovens e crianças que só conheceram a guerra, que dura já há 10 anos. Reparaste nalgum impacto desta realidade na juventude?

Quem tem agora 20 anos, tinha 10 quando a guerra começou. E se tem 20 anos, a não ser que esteja a estudar, está a combater na linha da frente. É uma absoluta falta de perspectiva de vida.

Conheço muitos que optaram por partir para a Rússia e começar a vida num lugar onde há alguma esperança. As aulas são à distância há cerca de dois anos, os órfãos foram transferidos para territórios seguros dentro da Rússia, as brincadeiras na rua são sempre limitadas.

Vi corpos de crianças em pedaços, famílias desfeitas. Da última vez, um só bombardeamento ucraniano atingiu uma casa no bairro de Petrovsky onde morreram três irmãos pequenos. A mãe já tinha perdido o marido na guerra e agora perdeu todos os filhos numa única noite. Ficou sem casa. É este o grau de barbárie. 

Acompanhaste, primeiro, a destruição e, meses depois, o início do processo de reconstrução de Mariupol. Na tua primeira visita, quando chegaste perto de Azovstal, presenciaste o enterro de civis nos canteiros da cidade. Foi a tua experiência mais violenta nos oito meses no Donbass?

Foi a experiência mais intensa porque foram dias seguidos de combates comigo nas ruas a absorver tudo o que via. Nunca tinha estado num cenário deste tipo. Havia mortos enterrados em qualquer lado mas também havia mortos nas ruas, nas praias, dentro de edifícios. Depois acompanhei a trasladação de muitos desses cadáveres para cemitérios nos arredores. Mas diria que um dos dias mais duros foi em Donetsk quando um bombardeamento das forças ucranianas provocou a morte de mais de uma dezena de civis numa praça movimentada da cidade. 

Ainda em Mariupol, relatas o momento em que mandaste uma mensagem a uma familiar de uma senhora na cidade, avisando-a de que a mesma estava viva. Estamos um pouco habituados, no Ocidente, a pensar nos jornalistas como fotógrafos da National Geographic, que não devem intervir com os sujeitos que observam. 

«As minhas reportagens televisivas podiam não ser fartas em qualidade estética mas a vontade e o empenho em fazer o melhor jornalismo possível estavam lá.»

Naturalmente, a guerra não pode ser um jardim zoológico. Há situações em que não podemos ser meros espectadores. E esta era uma delas. Fiz bem mais do que isso. Com outro camarada jornalista, salvámos a perna de uma mulher vítima de uma mina anti-terrestre colocada pelas forças ucranianas fazendo-lhe um garrote. Trata-se do mais elementar dever de ajudar o próximo em situações de desastre. Com isso não estava a tomar partido de ninguém ou a ajudar alguma das forças militares. Estava tão somente a ajudar civis.

«Éramos um pouco piratas». A certa altura, acabas por imprimir uns papeis a dizer PRESS e colas no material em segunda-mão que encontras. Este jornalismo improvisado, sem meios e agarrando as oportunidades à medida que vão surgindo (como fazes várias vezes ao longo dos teus oito meses de trabalho) consegue ir mais longe do que o jornalismo tradicional, que estaciona os repórteres em hotéis longe da frente?

Trata-se mais de vontade do que de capacidade. De facto, um jornalista de uma grande estação televisiva de um país como os Estados Unidos pode viajar num carro blindado com seguranças privados e toda uma equipa que o assessora na produção das reportagens. Mas, ainda assim, não havia nenhum daquele lado.

Com os nossos parcos recursos, apesar de haver naturalmente dinheiro envolvido porque não é barato arranjar um condutor, e é justo que assim seja porque aquela gente está a arriscar-se como nós, procurávamos estar onde estavam os acontecimentos. Éramos muito atrevidos, digamos assim. As minhas reportagens televisivas podiam não ser fartas em qualidade estética mas a vontade e o empenho em fazer o melhor jornalismo possível estavam lá. 

Foi essa qualidade do Donbass, de lugar pária, que atraiu este «jornalista outsider»? Habituado a estar no outro lado, nos bairros de Caracas, em áreas controladas pelas FARC, juntos dos independentistas bascos e agora nas regiões separatistas da Ucrânia

Sem dúvida. Eu gosto de dar voz a quem não tem voz. 

Oito meses no Donbass depois, ainda acreditas que «o Jornalismo deve servir para fazer do mundo um lugar melhor»?

Independentemente do estado actual do jornalismo, continuo a acreditar que deve servir para fazer do mundo um lugar melhor. Para morder os pés dos poderosos e denunciar injustiças. Para dar aos cidadãos toda a informação que precisam para construir as suas opiniões e posições em absoluta liberdade.

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