Da carestia dos transportes e dos «ciclistas» à «gente do Porto»

Teatro, cinema, livros, música, colóquios e o mais que se verá, neste ano de 2018 que acaba de nos abrir a porta, deixando entrar corrente de ar.

Créditos / Múltipla Escolha

Esta foi a semana em que a mobilidade dos trabalhadores portugueses ficou mais difícil, porque mais cara: 2,5% de aumento nos transportes públicos, sendo de 2% a percentagem de aumento médio nos transportes colectivos rodoviários interurbanos de passageiros em percursos inferiores a 50 quilómetros (Rodoviária), bem como nos transportes colectivos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto (Carris e STCP), incluindo transportes fluviais, e comboios urbanos e suburbanos em percursos inferiores a 50 km. Como não lutar para contrariar esta política?

Que andemos a pé ou de bicicleta, parecem dizer-nos. O que logo me traz à lembrança «Os ciclistas», um poema de Papiniano Carlos (1918-2012), precisamente neste ano de 2018, em que se comemorará, a 9 de Novembro, o centenário do nascimento do escritor.

Explorando o motivo, claramente simbólico, da bicicleta em movimento, o poema, como verá, estimado/a leitor/a, dir-se-á jogar com três dimensões: o imaginário do cinema (lembra-se do filme Ladrões de Bicicletas [1948], a obra prima de Vittorio de Sicca?), a imagem real – hoje memória – de multidões de operários atravessando as cidades em bicicletas e talvez ainda a iconografia associada ao militante comunista clandestino, tal como – posteriormente à escrita do poema – o encontraremos usando o velocípede, tanto nas ilustrações que Rogério Ribeiro realizou para Até Amanhã, Camaradas, como, claro está, nesta e noutras ficções literárias de Manuel Tiago (pseudónimo de Álvaro Cunhal).

Este é um ano em que deveremos, a meu ver, regressar à poesia e à ficção de Papiniano. Lembro três títulos principais: os contos de Terra com Sede (1946; 2.ª ed., 2004, Campo das Letras), o romance O Rio na Treva (Inova, 1975) e a poesia reunida/antologiada em A Ave Sobre a Cidade (Paisagem, 1973) – de onde extraio o poema «Os ciclistas».

Assinalo aliás que a Associação dos Jornalistas e Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto dispõe de uma recente reedição, fac-similada, do livro As Florestas e os Ventos: Contos e Poemas (1952), que pode encomendar telefonando ou escrevendo para esta colectividade.

Eis o poema:

Os ciclistas

Com um surdo rumor de escavadora
ressoa no subsolo a tua voz.
Muitos tapam os ouvidos delicados.
Outros escondem-se para a não ouvir.
E outros estremecem de pavor.
Mas, rápidos, os ciclistas pedalam
na bruma dos subúrbios ao teu encontro.
Rosto baixo, mãos no guiador, pés
bem firmes nos pedais, geram
o movimento, o ritmo alado
das máquinas frágeis que cavalgam
ao amanhecer. Perpassam como espectros
sob a bruma e juntam-se, confluem,
avançam como um rio poderoso
sobre a cidade adormecida.
Os ciclistas. Os que erguem os andaimes
e fazem girar os fusos dos teares.
Os que movem as gruas. Os que transportam
o dinamite nas mãos calosas.
Os que não sabem envelhecer de tédio
à mesa do café nem vivem de mercadejar
preservativos, palavras, casas pré-fabricadas.
Os que não sonham morrer em glória
como jovens deuses trespassados na batalha.
Os que não hão-de apodrecer, como muitos
de nós, roídos de lepra e desespero.

Eles merecem bem a tua voz, Orfeu.

Não se esqueça, porém, que Papiniano Carlos foi igualmente uma das vozes de relevo da nossa escrita para a infância, em obras como esse autêntico best-seller que é A Menina Gotinha de Água (1963; actuais reedições pela Porto Editora) e ainda O Cavalo das Sete Cores e o Navio (1977; 2.ª ed., Arca das Letras, 2006), Luisinho e as Andorinhas (1977; 2.ª ed., Campo das Letras, 2001), O Grande Lagarto da Pedra Azul (Caminho, 1986), A Viagem de Alexandra (1989; 3.ª ed., Arca das Letras, 2008), Era Uma Vez (Campo das Letras, 2001), Uma Estrela Viaja na Cidade (1958; 2.ª ed., Trinta por Uma Linha, 2010). A educadores, professores e bibliotecários deixo, de passagem, três ideias: Luisinho e as Andorinhas, evocando Beethoven, é oportuno em projectos que articulem literatura e música; A Menina Gotinha de Água, por seu lado, permite trabalhos de ligação entre ensino da língua e ensino das ciências; Uma Estrela Viaja na Cidade enquadra-se em projectos educativos centrados na defesa da paz e na condenação das escaladas militares e da guerra.

Recordo, ainda, que Fernando Lopes-Graça, Luís Cília e Carlos Mendes musicaram poemas de Papiniano.

Neo-realismo: um colóquio em Lisboa e uma exposição em Vila Franca de Xira; um workshop sobre vanguardas artísticas e Revolução de Outubro

Não se esqueça de que a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, através do seu Centro de Estudos Comparatistas, tem a decorrer formações sobre infância e neo-realismo e que, a 12 e 13 de Janeiro, aí terá lugar o importante colóquio internacional «Figurações da criança na literatura neo-realista», iniciativas que complementam a magnífica exposição «Miúdos: a vida, às mãos cheias. A infância do Neo-realismo  português», visitável no Museu do Neo-realismo (MNR), em Vila Franca de Xira. A curadoria é de Carina Infante do Carmo e Violante Florêncio. A não perder esta exposição que, por sua vez, tem a correr em paralelo um ciclo de cinema.

Trata-se, em suma, de um contexto em que não se deixará de falar de Papiniano Carlos, mas também do Redol de Constantino, do Soeiro Pereira Gomes de Esteiros, e, naturalmente, de Manuel da Fonseca, Ilse Losa, Sidónio Muralha, Matilde Rosa Araújo e de outros, certamente.

Refira-se, já agora, que, no âmbito da exposição «COSMO/POLÍTICA #1: A Sexta Parte do Mundo», patente também no MNR, realizar-se-á, a 6 de Janeiro, entre as 10h e as 13h, o workshop «Artes de Vanguarda». Aí se revisitará a arte das vanguardas e o contexto artístico da Revolução Russa. O workshop é orientado por Sandra Vieira Jürgens e integra, também, uma visita guiada à exposição, comentada pelas curadoras: Jürgens e Paula Loura Batista. A entrada é livre, sujeita à lotação da sala, mas as inscrições prévias devem ser formalizadas até 5 de Janeiro, através da recepção do Museu, por e-mail ou telefone (263 285 626).

Sim, chamavam-se The Doors e fazem 51 anos

No dia em que redijo este roteiro, passam 51 anos sobre a saída do primeiro álbum dos The Doors de Jim Morrison (voz), John Densmore (bateria), Robby Krieger (guitarra) e Ray Manzarek (teclas) – um dos expoentes do rock da West Coast norte-americana, nos anos 60 e 70 do século passado (sobrevivem Densmore e Krieger). E, tal como foi proclamado há um ano pelo mayor de Los Angeles, este (o dia 4 de Janeiro) é o Dia dos The Doors. Por isso, partilho um blues desta banda, na altura irreverente, dada à exibição (Morrison, sobretudo) e anti-belicista, que a polícia não poucas vezes incomodou, e cuja música viria a ser bem utilizada, por exemplo, nas bandas sonoras de O Caçador (1978), de Michael Cimino, e Apocalypse Now (1979), de Coppola, filmes centrados, como se sabe, na guerra do Vietnam e, importa dizê-lo, na derrota do imperialismo norte-americano e da sua vertigem belicista. O blues em causa é «Cars hiss by my window». (Devo confessar que, tendo crescido a ouvir numerosos intérpretes afro-americanos de blues, raramente me agradam os blues cantados por brancos, mas abro uma gostosa excepção para a voz de Jim Morrison neste tema, como sempre abri para o trabalho de Eric Clapton).

The Singles, caixa de dois CD editada em 2017, com os lados A e B dos singles da banda de Los Angeles e alguns extras, é pois a proposta de escuta que hoje aqui faço, precisamente no Dia dos The Doors.

Mais música: na rádio e ainda em Fânzeres/S. Pedro da Cova, Espinho, Lousada e Coimbra

Neste início de ano, não gostaria de deixar passar em branco o trabalho de serviço público, em prol dos ouvintes e da grande música e das artes em geral, desenvolvido pela Antena 2 e pelos seus profissionais.

Mas permita-se que chame a atenção para o magnífico programa de Rui Vieira Nery (domingo às 11h, repetição sábado às 14h), «O Tempo e a Música». Como se afirma na síntese informativa sobre a rubrica, trata-se de «uma abordagem das obras mais significativas da música erudita, representativas de um autor, de um intérprete ou de uma era, desde os primórdios do canto gregoriano à música dos nossos dias».

Marcados pela erudição, mas também pela comunicabilidade e pela simplicidade pedagógica da exposição e dos comentários, «O Tempo e a Música» é um programa merecedor de toda a atenção e divulgação. No presente ano, das várias propostas do programador, salientarei as séries dedicadas à música sacra do século XIX, à música norte-americana do século XX, aos duetos vocais e às composições para piano a quatro mãos.

Já aqui destaquei, e volto a fazê-lo, o programa do compositor e musicólogo Alexandre Delgado, «A Propósito da Música» (sábado às 11h, repetição 3.ª f, às 17h e 5.ª às 13h, na Antena 2). Trata-se de um verdadeiro exemplo de excepcionalidade no plano dos conteúdos e da forma. Rigor, saber técnico, histórico e estético, capacidade iluminadora dos comentários, sempre pedagógicos, e competência comunicacional são traços que cumpre realçar e valorizar.

A série, recentemente repetida, dos programas dedicados às cantatas de Johann Sebastian Bach e sustentados também, segundo creio, em Music in the Castle of Heaven – o livro do conhecido maestro John Eliot Gardiner (um dos maiores intérpretes mundiais da obra do kantor de Leipzig) – ficará, quero crer, nos anais da história da rádio portuguesa. Eu, aos sábados às 11h, levito. Convido-o/a, leitor/a amigo/a, a fazer o mesmo.

Se puder, não perca também «Raízes» (2.ª a 6.ª à meia-noite), o programa de Inês Almeida (uma das vozes mais rigorosas e profissionais, mais interessantes e captadoras de atenção da Antena 2). Sem concessões, este é um espaço de enorme qualidade e riqueza (inter)cultural dedicado às músicas do mundo.

E agora, leitor/a, algumas propostas musicais a norte que lhe podem parecer modestas, mas que nada modestas são, se atender aos contextos de origem.

Refiro-me, por exemplo, à actuação do trio de música de câmara Lacos. Inserida no 3.º Festival de Música de Fânzeres e São Pedro da Cova, com organização da sua junta de freguesia (progressista e de esquerda), acontecerá no próximo dia 6 de Janeiro, pelas 21h30, na Igreja Paroquial de Fânzeres.

Surgido na Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, o Trio Lacos é constituído por Miguel Ferreira (oboé), Valter Ponte (clarinete) e Cláudia Prata (fagote). A 13 de Janeiro, neste festival, actuará o Arquicoro, Coro da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, no Seminário Padre Dehon (21h30). A 14 de Janeiro, a Banda de Música da Associação de Cultura Musical de Lousada intervém na Capela de Nossa Senhora das Mercês (17h). A 19, será a vez de subir ao palco a Orquestra de Sopros da ESMAE, no Salão Paroquial de Fânzeres (21h30). No dia seguinte, tocará a Orquestra de Jazz da ESMAE, na Cripta da Igreja de São Pedro da Cova (21h30). Um festival a seguir com a atenção que merece – e que certamente agradece mais apoios (é já a terceira edição).

Atentemos, agora, na programação de uma cidade que é eminentemente musical, quer pelos seus importantes eventos nesta área quer pela sua Academia de Música/Escola Profissional de Música. Falo de Espinho. A 5 de Janeiro, às 21h30, poderá assistir, no auditório, a «A voz do alto», com a Orquestra de Jazz de Espinho, Ricardo Toscano no saxofone, e Daniel Dias/Paulo Perfeito na direcção musical. A 20 de Janeiro, às 21h30, estará em destaque o mestre do cavaquinho, Júlio Pereira.


Cito a informação disponível: «O trabalho de Júlio Pereira no âmbito da música tradicional portuguesa é conhecido de todos. Discos como Cavaquinho (1981), Braguesa (1983), Os sete instrumentos (1986) ou Miradouro (1987) marcaram os anos 80 e a música portuguesa. Em Praça do Comércio, o seu 22.º disco (Prémio Pedro Osório 2018 – SPA), o instrumento protagonista é o cavaquinho mas este é também o registo onde pela primeira vez Júlio Pereira toca o seu parente Madeirense, o braguinha.»

Finalmente, a 20 de Janeiro, às 21h30, no Auditório Municipal de Lousada, decorrerá um espectáculo de Capicua, no âmbito do ciclo Noites Acústicas.

Desçamos, entretanto, até Coimbra, para ver e ouvir Catarina Moura e Luís Pedro Madeira com o «Taleguinho», projeto de intervenção cultural para o público infantil, que regressa. É já no próximo sábado, 6 de Janeiro, com o excelente espectáculo musical «O Mundo ao Colo», no Teatro da Cerca de São Bernardo. Trata-se de um concerto que inclui músicas tradicionais de vários pontos do globo e que se destina a bebés e crianças até aos cinco anos e respectivos acompanhantes.

Teatro em Coimbra, Porto e Lavra (Matosinhos), e ópera no Porto

É já a 6 de Janeiro que terá lugar o último (em princípio) espectáculo de «Manuel, ou como se desenha uma casa», trabalho da companhia Teatrão, de Coimbra, baseado em textos da obra de Manuel António Pina, com recurso a desenhos da ilustradora e artista plástica Ana Biscaia. Não perca, se puder.

Estão abertas também as inscrições para a primeira sessão do ano do Clube de Leitura Teatral, que acontecerá a 9 de Janeiro (3.ª f, 18h30, entrada gratuita) e será dirigida pelo dramaturgo Abel Neves, no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra.

É igualmente de Coimbra e da Escola da Noite que vem, para o Porto, a Embarcação do Inferno, de Gil Vicente (Teatro Carlos Alberto, 17 a 21 de Janeiro).

The Rape of Lucretia, a ópera de Benjamin Britten, com encenação de Luís Miguel Cintra, subirá ao palco do Teatro Nacional de São João, no Porto, entre 5 e 7 de Janeiro.

Quanto a Elizabeth Costello, texto do prémio Nobel da Literatura J.M. Coetzee, prevê-se que esteja em cena no São João, de 18 a 28 de Janeiro. Protagonista: Cucha Carvalheiro; encenação: Cristina Carvalhal.

A companhia portuense Seiva Trupe, pela sua parte, leva O senhor Ibrahim e as flores do Alcorão, de Eric-Emmanuel Schmitt, em versão cénica e direcção de Júlio Cardoso e com interpretação de Fernando Soares e Miguel Batista, ao Auditório do Centro Social Padre Ramos, em Lavra, Matosinhos (Largo Dr. Fernando Aroso 23, Lavra). É a 26 de Janeiro, com entrada livre.

Bom cinema, graças aos Cineclubes (Porto e Joane)

Confira a óptima programação de Janeiro do Cineclube do Porto, aberta a todos mediante aquisição do respectivo bilhete, a preço módico, na Casa das Artes do Porto, sala Henrique Alves Costa – equipamento público gerido pela Direcção Regional de Cultura do Norte. Em Janeiro de 2018, o oportuno tema do ciclo é o Preconceito (filmes de Murnau, Fuller, Téchiné, Peele, Campillo, Peck e João Pedro Rodrigues).

Também na Casa das Artes, mas de Famalicão, a 11 de Janeiro, será exibido 120 Batimentos por Minuto, o filme de Robin Campillo (França, 2017) que igualmente passa no ciclo do Porto. A 12 de Janeiro, será a vez de Roda gigante (USA, 2017), de Woody Allen. Trata-se de iniciativas do Cineclube de Joane.

Ainda o balanço da Literatura e da leitura e alguns livros mais

No balanço que aqui publiquei, no dia 22 de Dezembro de 2017, comecei por advertir sobre imperfeições e insuficiências. Pois hoje termino, tentando acudir a algumas delas.

Aspecto central que não referi: a gratuitidade dos manuais escolares para o 2.º ciclo do Ensino Básico, aprovada para o presente ano lectivo, por iniciativa e proposta do PCP, dando continuidade à medida em vigor para o 1.º ciclo. O PCP propôs também que a gratuitidade para o 3.º ciclo vigorasse já para o próximo ano lectivo, mas esta proposta foi chumbada. Para além do intrínseco valor social e político da medida, porque falo disto aqui? Porque, para o bem e para o mal, grande parte da população escolar portuguesa tem os primeiros contactos e convívio com o texto literário pela via do manual escolar de Língua Portuguesa. Daí, também, a sua importância.

Recordo ainda que foram chumbadas a proposta do PCP de criação de um programa de apoio para actualização dos fundos documentais e para renovação das colecções das bibliotecas, bem como a proposta de recuperação do Programa de Itinerâncias Culturais, com vista à difusão do livro e de promoção da leitura em vários contextos.

Em matéria de livros, e embora refira obras todas elas, julgo, de 2016, é mais do que justo assinalar a atribuição do Grande Prémio de Tradução Literária Associação Portuguesa de Tradutores/Sociedade Portuguesa de Autores (APT/SPA) 2017. O primeiro prémio foi atribuído a António de Sousa Ribeiro, pela notável tradução de Os Últimos Dias da Humanidade, a obra do vienense Karl Kraus (Ed. Húmus e Teatro Nacional de S. João). Foram concedidas menções honrosas a Carlos Leite, pela tradução de Morrer Sozinho em Berlim, de Hans Fallada (Relógio D’Água), e a Maria do Carmo Figueira, pela tradução de A Vegetariana, de Han Kang (D. Quixote). António Sousa Ribeiro é professor catedrático (Estudos Germanísticos) da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (UC) e, citando informação contida no sítio do Centro de Estudos Sociais da UC, lembro que a obra traduzida, a qual, «na edição portuguesa, ocupa cerca de 900 páginas, constitui um dos textos fundamentais da literatura austríaca e europeia do século XX. Publicada em 1919 e, na versão definitiva, em 1922, apresenta, numa perspectiva satírica e a partir de uma feroz crítica antibelicista, o panorama multifacetado de uma sociedade em desagregação que sobrevive no paroxismo de uma cultura da violência.»

Lamentável esquecimento, no meu balanço de 22 de Dezembro, foi a não referência à saída, em 2017, de uma nova tradução de poemas do inigualável poeta grego de Alexandria, Konstantinos Kaváfis (1863-1933) (que antes já nos fora proposto em versões de Jorge de Sena e de Joaquim Manuel Magalhães/Nikos Pratsinis). É o segundo título do catálogo da editora Flop e intitula-se 145 Poemas. A tradução, feita a partir do grego, e a apresentação (em 392 páginas, impressas a uma cor: azul Grécia) são do poeta e prestigiado tradutor Manuel Resende. Indispensável.

Outra tradução de enorme importância publicada em 2017: de John Milton (1608-1674), O Paraíso Perdido seguido de O Paraíso Reconquistado (Húmus, 2017), tradução, prefácio e notas de Fernando da Costa Soares e Raul Domingos Mateus da Silva.

No campo do ensaio, deveria, no balanço de 2017, ter mencionado Luísa Dacosta – Espelhos de Palavra In Memoriam (Opera Omnia, 2017), três estudos pertinentes e cientificamente actuais de Ana Eustáquio, Helena Costa Carvalho e Robin Driver, prefaciados e posfaciados por Paula Morão, que organiza uma edição sóbria mas bela, de recorte académico, muito focada na vertente intimista, narcísica e de configuração identitária da produção da autora analisada. Um modo essencial, é preciso dizer, de manter viva a escrita de uma grande estilista, Luísa Dacosta (1927-2015), contista, diarista, cronista e escritora de ficções diversas (várias delas para a infância), de raízes transmontanas, mas sempre muito ligada a certos territórios de eleição, como foram o Porto, Matosinhos, A-Ver-O-Mar e Póvoa de Varzim. Eu acrescentaria também que é, agora, o tempo de começar a encarar e a revalorizar outras dimensões, menos egóicas e narcísicas, da obra de Luísa Dacosta, patentes quer nos seus magníficos livros de crónicas quer em outras obras narrativas.

Em matéria de revistas, o meu balanço de 2017 não deveria ter dispensado uma referência ao Caderno Vermelho n.º 25, um número desta revista editada pelo Sector Intelectual de Lisboa da ORL do PCP, essencialmente dedicado ao tema dos 100 anos da Revolução de Outubro (Arte, Ciência, Cultura). Datada de Setembro, sobre a revista só posso dizer que é de leitura imprescindível.

Imprescindível, também, é ler Textinhos, Intróitos e etc. (Pianola, 2017), de Vítor Silva Tavares. O ilustrador e designer Luís Henriques, Mariana Pinto dos Santos e outros amigos e conhecidos contribuíram amorosamente, pode-se dizer, para a preparação deste volume de lindíssima capa, que reúne o essencial dos pequenos mas sempre interessantes textos prefaciais que o editor Vítor Silva Tavares (1937-2015) escrevia para livros que ia publicando na sua editora, a & etc. Para aferir da relevância cultural desta singular chancela, será preciso lembrar que, dos portugueses, Tavares editou Pedro Oom, António José Forte, Herberto Helder, Ramos Rosa, Luís Pignatelli, Alberto Pimenta, Inês Lourenço e tantos outros, incluindo muitíssimos novos? No volume da Pianola, coligem-se portanto intróitos (mesmo de obras editadas por outras chancelas), mas também breves artigos vindos a lume em jornais ou na famosa e irreverente folheca/revista/jornal que deu pelo nome de & etc. (e que fez as delícias de muitos, como eu, nos idos de 70). Vítor Silva Tavares escrevia muito bem, escrevia com graça, humor, ironia e sentido do anedótico, e os poemas que compôs (um par de pequenos livros também aqui incluídos) são deliciosos de (re)ler, por vezes não ficando atrás de alguma da finíssima poesia satírica que Alexandre O’Neill produziu – ou não tivesse Vítor Silva Tavares sido um filho, já um pouco tardio, do surrealismo, mas bem à altura dos pergaminhos do movimento. A este propósito, é de recordar que na & etc. (além de chancela editorial, uma aventura gráfica admirável), Tavares editou Jarry, Peret, Ernst, Éluard, Prévert e muitos outros. Divirta-se, pois, leitor/a, a recordar este notável personagem da nossa cultura da segunda metade do século passado e de princípios do actual, e a ler as bem esgalhadas palavras que, desprendidamente, deixou dispersas por aí.

Vem de 2016, mas só o li em 2017: um livro infantil que, no fundo, é para todos, com ilustrações de qualidade de Maria João Castro. Trata-se de O Senhor Nunca e o Senhor Jamais (Afrontamento), livro de Francisco Duarte Mangas em formato de álbum, especialmente divertido e construído a partir de um engenhoso jogo linguístico de base sinonímica. No limite, vemos em acção uma «família de palavras», como refere o paratexto da contracapa, mas o narrador não deixa de aludir, desta inteligente maneira, a muitas famílias bem reais, em que a divisão, a desavença entre irmãos é a mãe de todos os conflitos, tantas vezes absurdos, inúteis e motivados pelos excessos narcísicos.

Permita-se, por último, que retome Gente do Porto (Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 2017), de Augusto Baptista, para insistir em como é belo, tocante e bem escrito este livro, de alguém que é simultaneamente escritor, artista visual (fotografia, ilustração, design) e produtor de livros de tangram – além de firme homem de esquerda (e atente-se, também, nas alusões políticas patentes, aqui e acolá, no texto).

Devo dizer que regresso à obra, porque a considero um dos melhores livros de prosa que li em 2017, e todavia enquadrado num género geralmente pouco valorizado: entre a reportagem, a crónica e a entrevista. Só que, no caso de Baptista, há sempre um estilo, e uma reconhecível dimensão literária na escrita – que é viva, enxuta, precisa, tão imbuída de humor como de contido mas tocante lirismo. Eu não conseguia parar de ler Gente do Porto, confesso, bebendo estas figuras reais (várias ainda vivas), tornadas memoráveis pelo traço de Augusto Baptista. Giza-se aqui uma galeria que abarca velhas figuras populares (da Ribeira, da Sé, da Baixa portuense), velhos ofícios, mas um ou outro novo, também – tais como uma carquejeira das Fontainhas, um pedinte, um fotógrafo dos antigos, um tocador de trombone, um professor de anatomia, um apaixonado pelo fado (outros por gatos), um ardina, um ponto de teatro, um designer, uma pintora naïf(ve), um especialista em medicina legal, um arquitecto inventor de prodigiosos objectos lúdicos, etc.. Há uma forte pulsão humanista e, ao mesmo tempo, social e até política no gesto de apresentar, descrever, conceder voz a esta gente. Muitas das figuras Baptista resgata-as, com indesmentível talento, do esquecimento, em toda a sua humanidade e pitoresco. Vai a tempo ainda de as salvar da desmemoriada voragem do «tsunami turístico», para recorrer à certeira expressão sua em nota prefacial. Restitui-nos, desse modo, um Porto de que ainda somos contemporâneos, mas um Porto, claramente, sob ameaça de extinção.

Não perca, leitor/a, este pequeno mas valioso livro, de preço em conta. Para o adquirir, procure-o na AJHLP (que o edita), à Rua Rodrigues Sampaio, 140, Porto. Alternativa: recorra ao telefone 222080565 (parte da tarde) ou solicite envio para [email protected].

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