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O olhar de José Rodrigues

De José Rodrigues fica toda uma obra inigualável – espécie de acrescento de sublime à infinita beleza do mundo. Um mundo feito de homens e mulheres concretos, que a dimensão dramática da sua arte nunca soube nem quis ignorar.

Desenho de José de Rodrigues para «Variações sobre um corpo: Antologia de poesia erótica contemporânea», organizada por Eugénio de Andrade
Desenho de José de Rodrigues para «Variações sobre um corpo: Antologia de poesia erótica contemporânea», organizada por Eugénio de AndradeCréditoslivropelacapa.blogspot.com

Tristeza, funda tristeza na partida de José Rodrigues, aos 79 anos, hoje, 10 de Setembro de 2016. Um notabilíssimo escultor, um admirável desenhador e pintor, um original criador de espaços cénicos para teatro (trabalhou com o Teatro Universitário do Porto, o Teatro Experimental do Porto, a Seiva Trupe, o Teatro Experimental de Cascais).

José Rodrigues, ouso dizer, era um daqueles contemporâneos que em pouco tempo acederam ao lugar dos clássicos. O seu traço, o seu trabalho criador evidenciam um estilo que se tornou inconfundível. O talento de que deu mostras no desenho a carvão e na escultura fizeram-no perseguir a beleza, é certo, mas uma beleza que transportava em si, quase sempre, qualquer coisa de transgressor e, não raro, de trágico (de lorquiano, apetece-me dizer) – como se observa na sua série de Cristos, nas suas «anjas», mas também na busca, lograda, de uma representação da esfera erótica no desenho e na escultura. Uma atitude, acrescente-se, de alguma ousadia, sobretudo no Portugal do antes do 25 de Abril, susceptível de ser apreciada, por exemplo, nos sedutores desenhos de luz e sombra para Variações sobre um corpo: Antologia de poesia erótica contemporânea, organizada por Eugénio de Andrade e editada pela Inova em 1972.

O amor à terra, aos elementos – que tão inscrito ficou nos objectos escultóricos que nos legou – e a sensualidade da sua arte favoreceram a aproximação entre José Rodrigues e certos escritores, muito em especial Eugénio de Andrade, com quem manteve duradoura amizade e cumplicidade artística e com quem colaborou em obras diversas. A título de exemplo, recordo aqui a magnífica edição, de 1995, desse livro seminal da poesia portuguesa do século XX que é As mãos e os frutos (1.ª ed., 1948), publicada pela Campo das Letras e pela Fundação Eugénio de Andrade, com direcção gráfica de outro amigo, Armando Alves. Mas igualmente deu frutos, editoriais ou de outro tipo, a amizade do escultor com artistas da palavra como Luísa Dacosta, Mário Cláudio, Albano Martins, Luandino Vieira, Nuno Higino e muitos outros. José Rodrigues tinha apreço pelos poetas e amor à poesia.

Nesta hora, não faltará quem recorde, e bem, o imenso talento do homem solidário e amigo (fazia da amizade um culto), de posicionamento antifascista e democrático, disponível para a intervenção artístico-cultural e sociopolítica e para a partilha, receptivo aos jovens, aberto a conhecer novos artistas de qualidade, que sempre soube estimular e apoiar. Ninguém esquecerá que na juventude pertenceu ao chamado grupo d’Os Quatro Vintes, juntamente com Armando Alves, Jorge Pinheiro, Ângelo de Sousa (tão peculiares todos e cada um eles, tão notáveis artistas todos eles). Lembrar-se-á a acção pedagógica como professor e membro da direcção das Belas Artes do Porto; e a co-fundação da Cooperativa Árvore, de que foi director durante tantos anos, bem como da Bienal de Vila Nova de Cerveira. Referir-se-á a iniciativa de dar corpo à Fábrica Social – Fundação José Rodrigues, criando uma nova centralidade sócio-artística na Fontinha – histórico bairro operário do centro do Porto, onde, na Rua das Musas, nasceu, em 1900, o poeta José Gomes Ferreira. Mas será lembrada também a generosidade militante do artista, que sempre o levou a apoiar, de várias formas, as causas da esquerda e a situar-se, invariavelmente, ao lado dos interesses do povo, em defesa da liberdade, da democracia e da paz, sem descurar a exigência de uma política cultural sustentada e consistente.

Pela minha parte – convivi com o artista por diversas vezes (por exemplo no Convento de San Payo, perto de Cerveira, um dos seus ateliers-museus, ligado à Associação Cultural Convento de San Payo, outra das suas criações) e com ele partilhei algumas mesas de intervenção cívica ou cultural, por exemplo na Cooperativa Árvore –, pela minha parte, repito, gostaria de guardar outra coisa: o inconfundível olhar de José Rodrigues. Esse olhar que, tal como as suas mãos, sabíamos ser dotado de um poder transfigurador, quase mágico. Mas um olhar ao mesmo tempo demorado, inquiridor, não raro de uma funda solidão e de uma dor que dos seus olhos nunca se dissipava por inteiro, sobretudo nos últimos anos (traços que detectamos nos seus Cristos, auto-retratos quase, alguns deles). E tudo isto sem pôr em causa a proverbial cordialidade do artista, o seu sentido de humor e a sua irreverência, o seu notório amor à vida e à Natureza.

De José Rodrigues, desse grande-criador-em-permanência, fica-nos uma saudade imensa. E fica toda uma obra inigualável – espécie de acrescento de sublime à infinita beleza do mundo. Um mundo feito de homens e mulheres concretos, que a dimensão dramática da sua arte nunca soube nem quis ignorar.

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