Esta semana, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, condecorou, a título póstumo, com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito, António Champalimaud. Ora este «título», é destinado a galardoar «actos ou serviços meritórios praticados no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas, que revelem abnegação em favor da colectividade». Não deixa de ser irónica a escolha, quando falamos de alguém que, no seu percurso de vida, acumulou uma brutal fortuna assente nas benesses do Estado e na exploração do povo português e dos povos das colónias, passando por vários negócios obscuros.
Vale a pena lembrar alguns elementos desta personagem a quem Marcelo quer destacar «filantropia». No regime fascista, a economia era dominada por oito grupos económicos de grande dimensão, entre os quais se encontrava o grupo Champalimaud. Na altura, estes grupos eram autênticos conglomerados, ou seja, não eram nem grupos exclusivamente industriais nem exclusivamente financeiros - estendiam a sua actividade e domínio por diversos sectores da actividade económica.
Citado muitas vezes como o homem mais rico do país, construiu o seu império empresarial durante o regime fascista. Estendeu os seus negócios a Angola, Moçambique e ao Brasil, onde manteve outro império empresarial, na altura em que era governado por uma ditadura militar. Inicialmente, os materiais de construção, o imobiliário e a exportação de vinhos eram os seus três negócios-chave. Ainda em 1952 as suas empresas juntam-se ao Grupo CUF, reforçando a posição quase monopolista desta empresa na indústria portuguesa. Em 1954, fundou a Siderurgia Nacional. Um ano mais tarde Salazar publicou um alvará em que atribuiu à empresa o exclusivo da exploração, por dez anos, de vários minérios de ferro e aço – um verdadeiro monopólio legal.
A sua estratégia de diversificação de negócios passaria ainda pela indústria da celulose. Realizando investimentos constantes, as empresas de Champalimaud eram as maiores clientes dos bancos e seguradoras, que começa a ser a sua área de negócio. Em finais de 1974, procurou sabotar a Revolução de Abril, tendo desviado fundos do Banco Pinto & Sotto Mayor para a abertura de contas pessoais e secretas em Londres. Tudo isto combinado em reuniões e encontros participados por futuros responsáveis ministeriais dos governos cavaquistas.
Regressado a Portugal em 1992, conseguiu readquirir 51% da Mundial Confiança, por 18 milhões de contos, comprou o Banco Pinto & Sotto Mayor por 37,2 milhões de contos, e assumiu o controlo dos bancos Totta & Açores e do Crédito Predial Português, aproveitando o processo de privatização das empresas públicas encetado pelo governo de Cavaco Silva. Ao conjunto das suas participações, juntou ainda o banco de investimentos Chemical Service. Tudo no espaço de dois anos e com a ajuda de polémicas decisões ministeriais que evitaram dispendiosas ofertas públicas de aquisição ao magnata. E os seus negócios continuaram na área financeira, e com meandros obscuros nas suas vendas.
Marcelo Rebelo de Sousa defendeu que esta «é uma homenagem justa» a António Champalimaud, «que a serena distância histórica converte em inadiável», considerando que «a democracia portuguesa nunca reconheceu devidamente a envergadura da sua decisão fundadora». A filantropia de ter deixado dinheiro para a construção de uma Fundação dedicada à biomédica, não pode apagar, ainda por cima num contexto em que se premeia «mérito», a exploração a que esta personagem sujeitou milhares de pessoas para erguer o seu império. Não pode apagar as suas promiscuidades com o regime fascista e com vários governos, que fizeram com que fosse o Estado a contribuir para a sua imensa fortuna.
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