Governos europeus investem no tráfico de refugiados

Governos europeus, faróis dos direitos humanos, financiam terrorismos com o dinheiro dos contribuintes e varrem o problema dos refugiados para debaixo do tapete, tratando-os como lixo.

CréditosFrancesca Agosta/TI Press/EPA / Agência Lusa

Não é oficial, porém é uma verdade comprovada: governos europeus financiam redes de traficantes no Norte de África para tentarem impedir que os refugiados cheguem às costas europeias.

A muitos poderá parecer indigno que damas e cavalheiros tão apessoados, fluentes como ninguém na homilia dos direitos humanos, assertivos sem rival no discurso da guerra contra o terrorismo, sejam capazes de untar as mãos de senhores da guerra, da tortura e do terror com o dinheiro dos contribuintes. Eles lá sabem por que o fazem, dirão alguns; pois bem, também nos convém apurar o que eles fazem, para melhor os conhecermos para lá da farpela e do verbo.

Há poucas semanas, o governo italiano, tão democrático que até veste as cores do Partido Democrático, um braço político da NATO situado «à esquerda» no «arco da governação», enviou dois credenciados espiões para negociar com os cappos da família mafiosa Dabashi, que têm quartel-general em Sebrata, no território que outrora se designou Líbia e hoje é considerado um «Estado-falhado», melhor dizendo, um não-Estado. Situação que resulta da operação devastadora conduzida por uma aliança militar não disfarçada entre a NATO e grupos terroristas ditos «islâmicos» das linhagens Daesh e Al-Qaida.

A família Dabashi é um exemplo de empreendedorismo orientado pelo mais elevado sentido da modernidade, extraindo proveitos múltiplos e gordos do caos implantado no território da antiga nação, que chegou a ser uma das mais prósperas de África.

Dois irmãos repartem a chefia do clã: um comanda a milícia Al-Ammu, ou Brigada do Mártir Annas al-Dabashi, constituída por cinco centenas de mercenários e parcialmente financiada pelo Ministério da Defesa de um governo sediado em Tripoli, o de Fayez al-Sarraj, reconhecido pela ONU e dito de «união nacional».

Existem pelo menos outros dois governos na antiga Líbia, enovelados entre centenas de milícias, grupos terroristas, gangues mafiosos, bandos de mercenários, traficantes multifacetados e empresas privadas de segurança. O outro irmão Dabashi chefia a Brigada 48, esta financiada pelo Ministério do Interior do mesmo governo.

As duas organizações mafiosas Dabashi obtêm as suas receitas mais compensadoras através do tráfico de refugiados. Administram campos de concentração para encafuar milhares de seres humanos que fogem das guerras fomentadas pela NATO e seus principais Estados membros no Médio Oriente, Eurásia e África, ora alegando combater ora apoiando grupos terroristas; nesses campos ditos «de acolhimento», a tortura, os abusos sexuais e as privações de necessidades mínimas como alimentação, saúde e higiene fazem parte do quotidiano e são métodos corriqueiros para extorquir os bens aos fugitivos como pagamento de viagens em embarcações que mal navegam com destino mais do que duvidoso às costas mediterrânicas europeias.

«Foi com estes empresários, expoentes de um neo-humanismo cada vez mais na moda, que os dois agentes secretos enviados de Roma se sentaram para negociar, e ao que parece com êxito.»

Os irmãos Dabashi administram ainda outro proveitoso ramo de negócio: a segurança do tráfico de petróleo nos campos de Mellitah, a oeste de Sebrata, que reverte em favor do governo de Al-Sarraj e, principalmente, da grande companhia petrolífera italiana ENI.

Foi com estes empresários, expoentes de um neo-humanismo cada vez mais na moda, que os dois agentes secretos enviados de Roma se sentaram para negociar, e ao que parece com êxito.

Os números de refugiados chegados às ilhas italianas estão a diminuir drasticamente, tal como já acontece nas ilhas gregas, aqui como resultado do negócio engendrado pelas mentes austeritárias da União Europeia com o tão democrático governo fundamentalista islâmico de Erdogan na Turquia. Um acordo com um patrocinador do terrorismo, membro estratégico da NATO, que custa três mil milhões de euros anuais aos contribuintes europeus.

Roma nega que tal trato tenha sido concebido e desmente até o envio dos seus espiões a Sebrata. Porém, o porta-voz da milícia Al-Ammu, Bashir Ibrahim, escolheu outra estratégia de comunicação. Existe «um acordo verbal entre o governo de al-Sarraj e Itália» para travar o embarque de refugiados, «em troca de equipamentos, barcos e salários», explicou.

Bashir não teve papas na língua: «os nossos esforços durarão o tempo que o dinheiro durar; se a ajuda parar a nossa brigada não terá meios para continuar a fazer o trabalho e retomará o tráfico de migrantes».

Aqui chegados, temos em confronto a versão de Roma, negando o acordo, e a dos mafiosos, pormenorizando o seu conteúdo.

Para desempatar, usemos o presidente francês e eminência do jet set Emmanuel Macron – cuja perda de popularidade consegue ser ainda mais veloz e a pique do que as de Sarkozy e Hollande.

Em recente cimeira sobre os refugiados realizada no Eliseu, com presença de França, Alemanha, Espanha, Itália, Chade, Níger e o governo Al-Sarraj, o presidente francês não conteve o entusiasmo e desnudou a estratégia de Roma. «O que foi feito entre a Líbia e Itália», descaiu-se Macron, «é um exemplo perfeito do caminho que devemos tomar».

Na verdade, esse é o caminho assumido não só pela Itália mas também pela União Europeia, conforme decisões tomadas na Estónia e que se transformaram em mais um assalto aos bolsos dos contribuintes europeus, uma humilhação às vítimas da austeridade e um desrespeito xenófobo e cruel pelos refugiados.

Bruxelas disponibiliza pelo menos 200 milhões de euros para reforço das guardas costeiras existentes no território da Líbia, além do envio de material, embarcações e navios de guerra próprios – decisões todas elas orientadas por um objectivo único: impedir a chegada de refugiados à Europa, independentemente do seu destino às mãos dos traficantes ou das autoridades dos países para onde forem reenviados, mesmo que isso viole disposições do direito internacional.

O uso do plural – guardas costeiras – não é um engano. No não-Estado da Líbia existe uma cumplicidade instalada entre os vários serviços de suposta vigilância da costa e o universo de milícias, gangues, seitas fundamentalistas e bandos de mercenários que se digladiam em todo o território, conforme reconhece um relatório divulgado pelo Conselho de Segurança da ONU em 1 de Junho deste ano. «Os contrabandistas, mas também os serviços de combate à imigração ilegal e as guardas costeiras estão directamente implicados em violações graves dos direitos humanos», lê-se no relatório com 305 páginas.

É a ordem natural das coisas ali deixada pela NATO. Pelo que se torna impossível destrinçar como funciona o quê neste ambiente nauseabundo onde confluem o tráfico de seres humanos, o crime organizado nas suas múltiplas facetas, o terror fundamentalista, o funcionamento corrupto e telecomandado das guardas costeiras.

«O tráfico de migrantes e de outras pessoas faz parte dos mesmos circuitos de outros tráficos, designadamente os tráficos de armas, de droga, de ouro», lê-se no relatório do Conselho de Segurança; rol de tráficos ao qual pode acrescentar-se, sem erro, o de petróleo. É, pois, para este magma formado por terrorismo, guerra, corrupção, tortura e morte que a União Europeia remete os seus milhões e envia os seus meios para «resolver o problema dos refugiados».

Olhemos para o caso dos irmãos Kochlaf, usado no documento da ONU como exemplo ilustrativo da mixórdia apodrecida em que se transformou a Líbia. Tal como os irmãos Dabashi, Mohamed e Walid Kochlaf comandam uma milícia, baptizada Nasr; são traficantes de refugiados, chefiam as forças de segurança dos campos petrolíferos de Zauia e dirigem operações de compra de combustíveis para contrabandistas.

Este sistema empresarial está interligado com as actividades do comandante da guarda costeira predominante em Zauia, Abd al-Rahman Milad, aliás Bija, cuja nomeação decorreu de um empenho influente, e convincente, dos irmãos Kochlaf e respectiva milícia, bastante activa no sector costeiro delimitado por Zauia, Zuara e Sebrata.

«As redes criminosas fornecem informações aos guardas-costeiros para impedirem os gangues rivais de terem êxito nas suas operações de contrabando; os guardas-costeiros estão mergulhados igualmente no tráfico de migrantes», explica o relatório do Conselho de Segurança.

«Se chegam agora menos refugiados às costas europeias isso significa que há governos da União a financiarem a ditadura islâmica de Erdogan na Turquia e a garantirem o enriquecimento de redes terroristas (...)»

Bija e os irmãos Kochlaf são um exemplo desta coordenação criminosa corriqueira que está na origem das constantes guerras entre milícias envolvidas no tráfico humano e de que as principais vítimas são, mais uma vez, os refugiados, frequentemente obrigados a regressar a terra já depois de iniciada a viagem.

Suspender a travessia e a fuga para a Europa dos que buscam a sobrevivência implica a alternativa inevitável do regresso aos campos de concentração das milícias, onde são alvos de novas manobras de extorsão se procurarem outras oportunidades de embarque; ou então vêem-se obrigados a desempenhar trabalho escravo nos campos petrolíferos, por conta das máfias e sem qualquer retribuição; podem ainda ser repatriados, com os inevitáveis riscos que tal decisão acarreta.

Governos europeus esfregam as mãos de satisfação e ufanam-se com o facto de este ano ter diminuído, e muito, o número de refugiados chegados à Europa, sem que haja alteração das situações dramáticas das quais fogem. Estamos a salvar vidas, mentem os tecnocratas de Bruxelas, Roma e Paris; ou de Berlim, onde parece já ter sido preenchida a quota de mão-de-obra sem direitos reclamada pela confederação patronal quando explodiu o drama dos desembarques massivos nas costas da Europa.

As proclamações de êxito no combate europeu à «crise dos refugiados» são uma fraude reles e desumana. Se chegam agora menos refugiados às costas europeias isso significa que há governos da União a financiarem a ditadura islâmica de Erdogan na Turquia e a garantirem o enriquecimento de redes terroristas, mafiosas e negreiras concentradas nos territórios onde eles próprios são responsáveis pelo caos existente.

Se chegam agora menos refugiados às costas europeias tal não significa que essas pessoas estejam sãs e salvas. O mais certo é serem submetidas a tortura, violações e outras sevícias, penarem com trabalho escravo ou sujeitarem-se a outras rotas tanto ou mais perigosas e letais do que a mediterrânica.

Governos europeus, faróis dos direitos humanos, financiam terrorismos com o dinheiro dos contribuintes e varrem o problema dos refugiados para debaixo do tapete, tratando-os como lixo. É a demonstração mais rasteira de xenofobia, de cruel discriminação, de agressão aos mais elementares direitos humanos.

Julgando que assim salvam as aparências, pregando eficácia e escondendo os métodos terroristas por que enveredaram, esses governantes da «nossa Europa» e da «nossa NATO» são mais criminosos do que os fora-de-lei que ajudaram a criar e agora financiam.

Entretanto, dissertam de cátedra sobre o Estado de direito.

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