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Abel Prieto: «É preciso criar uma cultura e um pensamento antifascista» (I)

Primeira parte de uma entrevista de Flor de Paz a Abel Prieto, presidente da Casa das Américas, em que se aborda o neofascismo e analisa algumas questões a ele associadas, nomeadamente as redes sociais.

Abel Prieto, na Casa das Américas, em Havana Créditos / cubaenresumen.org

Flor de Paz (Resumen Latinoamericano): Nas últimas duas décadas assistimos a um ressurgimento do nazismo e do fascismo, e das heranças do franquismo em Espanha; como se explica este florescimento?

Abel Prieto: Basta olhar para as eleições que acabaram de ter lugar para o Parlamento Europeu, essa extrema-direita fascista teve uma vitória eleitoral importante, e este caso é muito marcante.

Tenho lido muito sobre o assunto, tenho procurado muita informação, há muitas análises e avaliações. Ignacio Ramonet deu uma conferência aqui, na Casa das Américas – transmitimo-la no YouTube – sobre as estratégias da nova extrema-direita para conquistar o poder.

Ele insiste que não devemos confundir esta extrema-direita com a de Hitler, Mussolini, Franco; qualitativamente, existem traços que as diferenciam. E explica – e outros estudiosos do assunto concordam – que depois de todos estes anos de neoliberalismo, o modelo que começou a ser aplicado com grande rigor nos anos 80 do século passado, teve no Chile de Pinochet uma espécie de balão de ensaio terrível.

Quer dizer, juntamente com os crimes de Pinochet vieram os especialistas, os economistas da Escola de Chicago, para impor essa experiência em que o Estado é reduzido à mínima expressão e é o mercado que impõe as suas leis. Então, face ao estabelecimento do modelo neoliberal, não faltaram as hesitações, as cautelas e a mediocridade da esquerda ou da pseudo-esquerda que se deixou capturar por esta doutrina e não deu respostas alternativas ao mercado implacável imposto em todas as áreas e que tem vindo a criar um efeito de desespero.

Capa de 'La era del conspiracionismo. Trump, el culto a la mentira y el asalto al Capitolio', de Ignacio Ramonet // cubaenresumen.org

Há muitas pessoas que se sentem sem classe; as classes médias – diz Ramonet com muita eloquência – faliram e caíram numa espécie de vazio identitário e sentem-se encurraladas. Estão muito angustiadas com o fenómeno da migração; a rejeição da migração é uma das molas que alimentam as fileiras do novo fascismo, a ideia de que os imigrantes vão ocupar empregos, que vão receber ajuda dos governos, para obscurecer a raça branca, para trazer a miscigenação, os costumes detestáveis, medíocre, selvagem, bárbaro. É como a famosa fábula da invasão dos bárbaros que nos vêm invadir. A isso opõem-se as teorias da supremacia branca, do ódio ao que é diferente, às mulheres, aos movimentos feministas, contra os quais têm uma fúria verdadeiramente raivosa.

Há um teórico de Milei, chama-se Agustín Laje (com j), que tem um livro intitulado A Batalha Cultural; é um livro interessante porque revela que existe doutrina por trás de um energúmeno como Milei. Este indivíduo fala do lesbo-feminismo neomarxista; imagina bem que tipo de designação encontrou para odiar e apresentar argumentos contra o feminismo.

«a rejeição da migração é uma das molas que alimentam as fileiras do novo fascismo, a ideia de que os imigrantes vão ocupar empregos, que vão receber ajuda dos governos, para obscurecer a raça branca, para trazer a miscigenação, os costumes detestáveis, medíocre, selvagem, bárbaro. É como a famosa fábula da invasão dos bárbaros que nos vêm invadir.»

Esse desespero, essa incerteza, essa falta de respostas, alimentou as fileiras do novo fascismo; a política tradicional promete e promete e não cumpre nada, e é tremendo o número de jovens que se juntam a movimentos neofascistas e seguem demagogos neofascistas.

Os votantes de Milei têm menos de 30 anos; a maioria dos eleitores de Javier Milei são jovens. Mas, em Espanha, o Vox alimenta-se de adolescentes, de rapazes que estão a dar os primeiros passos na política odiando as mulheres, os imigrantes, os negros, os árabes, aqueles que têm uma orientação sexual diferente da ortodoxa, os LGTBI, as comunidades gay. O fascismo dá a estas pessoas desorientadas e confusas a ideia de que fazem parte de uma comunidade.

Uma jornalista judia norte-americana, Talia Levin, infiltrou-se em grupos neonazis nos Estados Unidos e narrou os seus dias com este tipo de pessoas muito ferozes…, aqueles que invadiram o Capitólio. Ela diz que aquilo que muita gente procura é entender as coisas de forma simples, que os nazis dizem o que é mau e o que é bom de uma forma muito simples, sem nuances, e chegam a essas pessoas em busca de respostas simples, elementares, primitivas, face à encruzilhada que vivem todos os dias.

La era del conspiracionismo. Trump, el culto a la mentira y el asalto al Capitolio, de Ignacio Ramonet, é um livro que recomendo. É apaixonante porque explica o papel das redes sociais no crescimento de grupos de ódio e grupos neonazis. É publicado em Cuba pela Editorial Ciencias Sociales.

As redes – onde se manifestam muitos jovens atraídos por grupos fascistas – são espaços ideais para que floresça este tipo de doutrina e congregações, porque nelas não se raciocina: reage-se com raiva, com ódio e instiga-se a um confronto mais brutal.

Há um estudioso italiano, Leonardo Bianchi, que chama ao Instagram «FascioInstagram», porque diz que esta rede social está cheia de imagens de Mussolini, de adolescentes a fazer a saudação nazi, a fotografar-se em locais onde o Duce, Mussolini, fez algum discurso famoso.

De repente, eles abordaram a história desta doutrina – genocida, racista, brutal – idealizando-a. Olha que problema, em Itália muitos jovens tiram selfies com casacos da Società Sportiva, que é um clube desportivo; mas qual é a sua sigla? SS, para se referir às SS hitlerianas. Trata-se de um olhar absolutamente acrítico deste fenómeno, procurando razões para o idealizar, exaltar.

Há também outra causa, a cultural. O mundo está a retroceder intelectualmente, lemos cada vez menos, analisamos cada vez menos o que lemos; é aquilo que dizia Alessandro Baricco – o grande escritor italiano, […] grande romancista e grande ensaísta – que hoje as pessoas navegam sobre a informação, como nas pranchas de surf, nunca aprofundam, seguem sempre pela superfície.

«Há também outra causa, a cultural. O mundo está a retroceder intelectualmente, lemos cada vez menos, analisamos cada vez menos o que lemos»

E ele está cheio de razão sobre isso; é verdade que a tendência é ver as manchetes e passar para outra coisa. A imagem do mundo está fragmentada na sociedade actual e, ao mesmo tempo, a tendência para a superficialidade causa enormes danos.

Não faltam alertas no mundo de hoje sobre o modo como os nossos adolescentes – e digo os nossos: não só os cubanos, mas no mundo em geral – têm mais dificuldades de aprendizagem, de expressão oral, naquilo a que se chama compreensão leitora, que é ler um texto e depois ser capaz de explicar a mensagem do que se leu.

As pessoas podem ler ou pensar que leram, decifrar aqueles sinais, mas depois não conseguem explicar o que leram, o que o autor lhes quis dizer. No contexto deste retrocesso cultural e intelectual que vivemos, que é uma verdadeira crise cultural, é fácil fazer florescer uma doutrina muito primitiva cujos slogans são muito simples.

Há muita gente a reler o famoso livro de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, Os Princípios da Propaganda. Quando lês aquilo, apercebes-te de que podes aplicá-lo às redes sociais. Porque são os mesmos princípios que hoje influenciam sempre as redes: repete as mensagens, torna-as muito simples, não faças o público pensar, analisar nada, têm de ser mensagens muito básicas, reiterá-las, de modo que a mentira se vai tornar verdade.

Por outro lado, há o aspecto positivo dessas tecnologias. Eu não teria conseguido reunir a informação que tenho sobre este novo fascismo sem acesso à Internet. De modo que proporciona facilidade, mas ao mesmo tempo cria vício.

Há alguns dias que circula na imprensa espanhola a ideia de um projecto de lei que foi levado ao Conselho de Ministros de Espanha para obrigar os fabricantes de telemóveis, tablets e dispositivos com acesso à Internet a acrescentarem um aplicativo a que chamam controlo parental. Significa que os pais podem controlar o que os adolescentes consomem e influenciar essa dependência de algum modo; há que dizê-lo assim: é uma droga.

Ontem, li um texto de dois psicólogos norte-americanos que analisaram casos de adolescentes com depressão profunda e tentativa de suicídio, e estes estudiosos concordam que em 2012 houve um crescimento deste indicador, segundo registos internacionais, mas particularmente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha.

O problema tornou-se evidente, sobretudo, em raparigas adolescentes que tentaram o suicídio ou caíram em depressão terrível. E 2012 é o momento do boom das media sociais, quando mais pessoas entram nas redes e começam a partilhar [coisas].

Então, se há uma meninita que é gorda, que se sente muito complexada, inferior, porque o modelo de beleza que lhe é imposto por todos os meios é o da magreza, como o de uma barbie, ela precisa dos likes, [dos] «gosto», porque tem muita noção da aprovação da comunidade que a segue nas redes, o que é muito típico da adolescência.

Há um analista que diz que o adolescente tem de olhar continuamente para o telemóvel para ver se gostaram de alguma foto que ele publicou, se recebeu algum elogio ou insulto. E são submetidos a esta pressão particular num momento tremendamente contraditório e complexo, em que tentam construir a sua personalidade, compreender o mundo, compreender-se a si próprios.

Marcha do Batalhão Azov e outros grupos neonazis em Kiev, em Outubro de 2017 // cubaenresumen.org

Tudo isso ajuda estes grupos neofascistas, de extrema-direita – que se apresentam como muito viris, muito duros, com um tipo de discurso agressivo e anti-sistema – a monopolizar o sentimento de descontentamento.

A casta, como Milei designa os políticos, sente que no discurso dos fascistas há uma crítica mais dura, mais aberta àquilo que os faz sentir-se mal, humilhados.

É um conjunto de temas e questões que têm a ver sobretudo com o facto de o mundo de hoje, culturalmente, estar a convencer-nos o tempo todo de que o capitalismo é a única forma de imaginar a ordem social. Aquilo que dizia Paulo Freire: «O grande triunfo cultural do capitalismo é que os pobres se culpam a si mesmos pela sua miséria, que nunca culpem o sistema.» E é verdade, eles conseguiram essa vitória. Tem a ver com aquela colonização cultural que, através das redes, sequestra a subjectividade de milhões de pessoas.

«Aquilo que dizia Paulo Freire: «O grande triunfo cultural do capitalismo é que os pobres se culpam a si mesmos pela sua miséria, que nunca culpem o sistema.» E é verdade, eles conseguiram essa vitória.»

E há toda esta emigração deslumbrada em direcção a um reino de supostas oportunidades, de suposta felicidade, onde as pessoas até se colocam nas mãos de traficantes de seres humanos, uma coisa arriscada, terrível. Temos isso em Cuba, em toda a América, também no mundo do sul.

De modo que as tecnologias, que já não são assim tão novas, têm sido um instrumento excepcionalmente útil para este novo fascismo. Hoje, o papel das redes sociais na promoção destas ideias, na promoção dos seus líderes, é insubstituível.

Ao mesmo tempo, a gestão do emocional tem sido muito importante para o novo fascismo: voltar-se para aquela componente que vai além do racional e tem a ver com o emocional; isso tem muita influência nas pessoas, especialmente nos jovens, nas pessoas sem esperança, nas pessoas confusas, desorientadas, que perderam a fé em tantas coisas.

Continuam a utilizar o suporte do livro, como é o caso dos dois grandes teóricos (se é que se pode chamá-los assim) de Milei: Agustín Laje e Nicolás Márquez, que utilizam ferramentas tradicionais de promoção cultural e incorporam novas ferramentas com muito êxito.

Flor de Paz: Há ligações entre o pensamento nazi-fascista nos Estados Unidos e as suas variantes na Europa?

Abel Prieto: A tese de Ramonet é que Donald Trump influenciou bastante o novo fascismo nos Estados Unidos e na Europa para se tornar algo naturalizado. Ele diz que no passado as pessoas tinham vergonha de dizer que se sentiam atraídas por um candidato de extrema-direita, que eram partidárias de um partido ou grupo neonazi.

Trump exaltou o orgulho de estar na extrema-direita do espectro político, o orgulho de ser racista, de ser um nacionalista extremo e furioso; esse fanatismo que existe em torno de Trump influenciou o mundo inteiro, foi um inspirador do novo fascismo. Nesse sentido, Milei é como um pequeno clone de Trump.

A diferença que pode haver entre o fenómeno do neofascismo nos Estados Unidos e na Europa é que os neofascistas americanos não estão interessados ​​em figuras como Franco ou Mussolini. Em Espanha, porém, o franquismo é muito importante para o Vox. Mas mesmo para o Vox é muito significativo, além de descolorir a imagem de Franco, limpar os horríveis vestígios deixados pela conquista e colonização da América. Lembre-se que inventaram o conceito de iberosfera.

Quando López Obrador disse que o rei de Espanha devia pedir desculpas pelo genocídio que os espanhóis cometeram com a conquista e a colonização da nossa América, o Vox reagiu com tremenda violência e promoveu homenagens a Hernán Cortés sempre que possível. A sua busca por um passado honrado, por antepassados ​​honrados, passa por Franco, mas chega a Hernán Cortés e chega aos ferozes conquistadores e colonizadores.

Andrés Manuel López Obrador, presidente do México // pagina12.com.ar

É uma mentalidade peculiar e é muito curioso que se queiram misturar com as questões da América Latina. O Vox tem organizado fóruns continuamente; fez um na Colômbia alguns meses antes da vitória de Petro, quando as sondagens começaram a indicar que o Pacto Histórico e Petro poderiam vencer. O Vox foi até lá com todos os fascistas deste continente para realizar uma terrível cimeira de extrema-direita; também o fizeram no Peru e no México. Eles têm estado a mexer-se.

Flor de Paz: Querem reformular a história a seu favor.

Abel Prieto: Sim, fazer uma releitura da história. Há uma história tremenda que me abala. Foi no cemitério de La Almudena, em Madrid, onde o regime franquista fuzilou mais de 3000 pessoas. Havia ali um memorial que tinha um verso de Miguel Hernández: «porque soy como el árbol talado, que retoño: porque aún tengo la vida» em letras de bronze, e os 3000 nomes dos fuzilados, dos que se identificaram, porque haverá outros que jamais serão identificados.

Então, a Câmara Municipal de Madrid, de maioria ultra-conservadora e de extrema-direita, decidiu arrancar aquele fragmento do verso e colocou ali: «Paz, reconciliação, amor, a todas as vítimas de conflitos ideológicos», como se prestasse homenagem às vítimas do franquismo e às vítimas dos comunistas, dos republicanos.

Eles chamaram a isso ressignificação histórica; o Município no seu documento oficial disse que era preciso dar um novo significado ao monumento de La Almudena e aquilo que fizeram foi anulá-lo, em absoluto.

Flor de Paz: São formas de negacionismo face ao genocídio do fascismo? Como podemos compreendê-los à luz das evidências fornecidas pelas provas documentais?

Abel Prieto: Bem, Milei é um negacionista dos grandes crimes da chamada ditadura civil-militar da Argentina, que não existiu nos anos 30 do século passado, nem em torno da Segunda Guerra Mundial. São crimes muito próximos no tempo, mas já existe uma corrente negacionista. Trinta mil pessoas foram assassinadas, dizem que estão desaparecidas, mas na verdade desapareceram para morrer, para serem assassinadas.

Flor de Paz: Será que esse movimento que já está instalado em ambos os continentes continuará a ganhar força?

Abel Prieto: Aqui, na nossa América, a vitória de Claudia Sheinbaum no México foi muito importante, porque neste país existe uma extrema-direita dura. Construíram uma candidata, fabricaram uma coligação, até dos Estados Unidos chegou a infâmia de que López Obrador tinha contactos com o narcotráfico, uma coisa verdadeiramente vergonhosa para tentar prejudicar moralmente um dos maiores líderes da nossa América, mas não conseguiram prejudicar a sua sucessora, Claudia Sheinbaum. E tem uma enorme importância que depois do grotesco triunfo de Milei, num país tão politicamente culto como a Argentina, Claudia e a Quarta Transformação tenham vencido, inspirada em López Obrador e na sua grande obra nosso-americana, a vocação latino-americanista e anti-imperialista de López Obrador e do México.

Lula venceu no Brasil, mas por goleada, como dizem os apoiantes do futebol, com uma margem relativamente estreita. E Bolsonaro e os seus apoiantes, fanáticos também, continuam por lá. No Brasil existe esse perigo. Há uma área da população brasileira onde há pessoas pobres, o que é outro fenómeno novo, porque não são só os jovens que estão em risco. Um amigo italiano da Rede em Defesa da Humanidade contou-me, e depois confirmei-o em textos que li: nos subúrbios das grandes cidades, pessoas humildes, da classe trabalhadora, que tradicionalmente votavam no Partido Comunista, agora votam no fascismo.

Fidel estava obcecado sobre como lutar contra os pobres da direita, como dar argumentos às pessoas; sobre o modo como eles, através de confusões, mentiras e distorções, conseguem convencer uma pessoa humilde que não tem nada a esperar de um demagogo fascista a seguir essa loucura.


Abel Enrique Prieto Jiménez (Pinar del Río, Cuba, 11/11/1950). Político, escritor, editor e professor. Ex-ministro da Cultura de Cuba, actual presidente da Casa das Américas, em Havana.

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