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O teatro simbólico no lugar da rutura

Para que a curadoria de arte cumpra o seu papel essencial de mediação, sobretudo no que diz respeito à arte contemporânea, é essencial que seja consequente, transformadora e procure outros caminhos.

«Autorretrato (1900), Aurélia de Sousa (1866-1922) e «A casa» (1979), Helena Almeida (1934-2018). A exposição «Tudo o que eu quero - Artistas Portuguesas de 1900 a 2020» permanece na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, entre 2 de Junho e 23 de Agosto de 2021
CréditosManuel Palma / MNSR/DGPC/ADF

Um fascínio obsessivo por Maria Helena Vieira da Silva e um outro pelo autorretrato de 1900 de Aurélia de Sousa levaram-me à exposição Tudo o que eu quero, na Gulbenkian. Os curadores Helena de Freitas e Bruno Marchand propõem-se apresentar «duas centenas de obras de 40 artistas portuguesas produzidas entre o início do século XX e os nossos dias», numa exposição «incluída no Programa Cultural da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia».

Tudo o que eu quero é-nos apresentado como um conjunto de núcleos temáticos onde obras das artistas dialogam sobre as diversas dimensões da afirmação da mulher ao longo do último século. Se esta ideia parece um excelente ponto de partida para demonstrar como as relações de poder têm efeitos semelhantes na realidade e no ímpeto criativo de mulheres em tempos diferentes, o volume de obras que se apresentam tende a dificultar uma tarefa ousada, tendo em conta o número de artistas e as respetivas perspetivas que se pretendem colocar em diálogo.

«a curadoria de arte tem optado pelos «diálogos». Não são raras as exposições que se apresentam enquanto diálogos (entre o passado e o presente, entre espaços distintos, entre o tempo e o espaço, entre o espaço e o indivíduo, entre o tempo e a tecnologia, a arte figurativa e a arte contemporânea, a fotografia e a escultura, a literatura e a gastronomia)»

Nos últimos anos, a curadoria de arte tem optado pelos «diálogos». Não são raras as exposições que se apresentam enquanto diálogos (entre o passado e o presente, entre espaços distintos, entre o tempo e o espaço, entre o espaço e o indivíduo, entre o tempo e a tecnologia, a arte figurativa e a arte contemporânea, a fotografia e a escultura, a literatura e a gastronomia). As probabilidades de encontrar diálogos são inesgotáveis. Neste mundo, tudo dialoga e os curadores de arte foram os primeiros a perceber isso. Imaginem dirigir uma instituição qualquer, chegar uma pessoa que é especialista e dizer «este projeto é um diálogo entre este edifício e uma tribo amazónica que construía casas em altura». Muito giro, diriam. É sempre tudo «muito giro» ou «fantástico» para quem quer ocupar o espaço com coisas que entretenham e distraiam, para que a vida não seja monótona como um MBA na Católica.

Mas para que a curadoria de arte cumpra o seu papel essencial de mediação, sobretudo no que diz respeito à arte contemporânea, que tem outros códigos de interpretação, é essencial que ela seja consequente, que seja transformadora e procure outros caminhos. Se a curadoria se perde nos diálogos e esquece a consequência do que quer dizer, acaba por encontrar contradições que, no fundo, a ridicularizam e a tornam alvo de chacota – o inverso do que pretende. O despeito pela curadoria de arte não é nada que devamos ignorar, fechando-nos naquele lugar confortável onde concordamos todos uns com os outros.

«História Trágico-Marítima» ou «Naufrage» (1944), de Maria Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), faz parte da colecção do CAM da Fundação Calouste Gulbenkian (Inv. 78PE97) Créditos

Tudo o que eu quero constituía-se, aqui, como uma oportunidade para ser uma exposição sobre a emancipação da mulher e o papel transformador da arte na luta das mulheres dentro de uma relação histórica de poder. Mas a opção, que não se esconde, é outra: «uma reflexão sobre um contexto de criação que durante séculos foi quase exclusivamente masculino.» Claro: tudo o que eu quero. E, apesar disso, o início da exposição ainda nos dá algumas expectativas, quando Aurélia de Sousa dialoga (lá está) com Rosa Ramalho e Rosa Carvalho – três vidas tão diferentes que se cruzam – ou quando Vieira da Silva nos surge num pequeníssimo e intenso formato a iluminar toda a sala, cumprindo, quase sozinha, a missão da exposição. Aqueles dois primeiros núcleos seriam suficientes para demonstrar o papel da arte na agitação do poder dominante.

Acontece que, logo a seguir, ao entrar numa sala repleta de pinturas da absolutamente genial e única Maria Helena Vieira da Silva – a melhor artista do séc. XX – deparamo-nos repentinamente com mais um diálogo, desta vez com Sarah Affonso. E pergunta o leitor: mas que mal tem isso? Nenhum, não fora Sarah Affonso, dirigente da Mocidade Portuguesa, portadora de uma conceção sobre o papel da mulher, e as circunstâncias que determinaram o papel a que a mulher do seu tempo foi forçada a desempenhar, bastante diferente das demais. Até poderíamos aventar que essa foi a ideia dos curadores, mas creio que não. Nem os textos de parede, nem o catálogo indicam vestígios de qualquer intenção de confronto. A opção é sempre pelo diálogo, nunca pelo confronto. E assim encontramos, neste núcleo, uma artista brilhante e uma pintora razoável. Com uma, descobrimo-nos numa teia de inquietações e com a outra apreciamos a estética modernista. O horizonte destas artistas é objetivamente diferente e, portanto, tudo o que querem não é bem a mesma coisa, não coincide, nem nas circunstâncias, nem nas perspetivas. Que diálogo é, então, aquele? Descubra você mesmo.

A primeira edição de As mulheres do meu País, de Maria Lamas, foi publicada em fascículos entre 1948 e 1950 Créditos

A exposição avança para a arte contemporânea e traz-nos uma perspetiva sobre a história da arte em Portugal bastante interessante. A diversidade dos formatos também vai aumentando e isso enriquece muito esta experiência da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia – uma instituição sempre pronta para o diálogo. Da escultura à poesia concreta, passando pelo vídeo e pela instalação sonora, Tudo o que eu quero também nos faz viajar pela arte contemporânea, mostrando a qualidade das artistas portuguesas. No entanto, cada uma, ao seu estilo, vai-se desviando de um papel de luta coletiva, entendendo a luta das mulheres como um processo individual, de afirmação. É isto que, no fundo, desilude.

No meio dessa desilusão, damos de caras com um núcleo exclusivamente dedicado a Maria Lamas e a As mulheres do meu País. É natural que se pense, então, que algo pode mudar, um pouco como os governos do PS quando estão aflitos com a aprovação do orçamento do estado: «Maria Lamas chegou ali para centrar a discussão, agora é que vai acontecer o progresso!» Ainda emocionado com a exclusividade do núcleo e com a possibilidade de uma terceira via (nunca aprendemos), não me apercebi de imediato que, mesmo em frente, somos agredidos por uma obra de Joana Vasconcelos, a artista que já despediu trabalhadoras precárias após terem sido mães (como assim, uma artista que despede?).

É difícil acompanhar esta curadoria, Não só a intenção dialogal se dilui ao longo da exposição, como não se sente, em momento algum, uma consciência política e a necessidade de um confronto – é o Fim da História (da Arte).

«indissociável da relação de poder entre homem e mulher é um modelo que tem implicações nas relações sociais e culturais, que nos explica porque é que Sarah Affonso se pode dedicar aos filhos e abandonar a pintura e que outra mulher tenha de lutar na precariedade para sustentar o recém-nascido contra uma patroa-artista para quem as tragédias dos outros são indiferentes»

Sem objetivos consequentes, chegamos ao fim desta aventura e apercebemo-nos que artistas como Alice Jorge e Tereza Arriaga – artistas que integraram o movimento Neorrealista – não têm lugar entre as referências da arte do séc. XX e XXI. É uma pena. Qualquer uma das duas pintoras traria para esta exposição um elemento central que acompanha a luta das mulheres neste e noutros séculos: a luta de classes. Poderiam, por exemplo, dialogar com a artista que explora trabalhadores demonstrando que indissociável da relação de poder entre homem e mulher é um modelo que tem implicações nas relações sociais e culturais, que nos explica porque é que Sarah Affonso se pode dedicar aos filhos e abandonar a pintura e que outra mulher tenha de lutar na precariedade para sustentar o recém-nascido contra uma patroa-artista para quem as tragédias dos outros são indiferentes.

De que nos adianta a ideia de diálogo se a mediação a que nos propomos serve para fazer tábua rasa da verdadeira relação de poder que oprime e que explora, que coloca mulheres umas contra as outras, que permite que umas tenham o que querem com sérios prejuízos para as outras?

Não deixa de ser natural que esta exposição integre o Programa Cultural da Presidência Portuguesa do Conselho da UE. Falamos, claro, de uma organização para quem os direitos humanos não têm nada a ver com a pobreza, o défice de serviços públicos, a habitação, a insuficiência energética, a igualdade salarial, o acesso à educação e aos cuidados de saúde, à educação sexual e à cultura. No fundo, é a cultura dominante a assumir o seu papel de uma forma subtil e descomprometida, manipulando os visitantes com uma falsa premissa – a de que é suficiente ser uma exposição com mulheres.


O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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