De que falam os media quando escrevem «metadados»? De uma ampla gama de dados de comunicações que vai da identificação do titular de um telefone (fixo ou móvel) à localização, data, hora e duração de uma comunicação, passando pelas identidades internacionais do subscritor (IMSI) e do equipamento (IMEI), o endereço de correio electrónico, o endereço do protocolo IP, entre vários outros elementos.
Na posse de tais dados, que os operadores de comunicações electrónicas já são obrigados a conservar por um ano, as «secretas» estariam em condições de saber exactamente quando, onde se encontrava, a que horas e durante quanto tempo é que o cidadão A efectuou determinadas conversações telefónicas, enviou mensagens de texto ou multimédia, ou remeteu mensagens de correio electrónico; assim como a data, hora, local e duração das comunicações recebidas pelo cidadão B com origem em A; ou quando, como e onde as reencaminhou para o cidadão C ou para o cidadão D.
Na posse de tais dados, as autoridades são capazes de saber muito mais sobre nós – onde, quando e com quem conversamos ou trocamos mensagens – do que a nossa memória será algum dia capaz de guardar e recordar-nos.
A conservação obrigatória daqueles dados foi determinada pela Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, que transpõe para a ordem jurídica interna a directiva n.º 2006/24/CE, do Parlamento e do Conselho, e faz parte do arsenal legislativo europeu apresentado como destinado a combater o terrorismo, a criminalidade violenta e altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a segurança do Estado, etc., mas que suscita profundas reservas em matérias de garantias de privacidade da vida dos cidadãos – e muito particularmente dos jornalistas.
De facto, como então alertou o Sindicato dos Jornalistas (SJ), apesar de a transmissão dos dados conservadores pelos operadores de comunicações às autoridades só poder ser ordenada ou autorizada por despacho fundamentado de um juiz, é evidente o risco de dados de comunicações de jornalistas com fontes confidenciais de informação virem a ser do conhecimento das autoridades, devassando-se assim o sigilo profissional.
Embora não tomassem conhecimento do conteúdo das comunicações, as autoridades estariam habilitadas a identificar facilmente as pessoas que passaram – ou poderiam ter passado – informações a jornalistas.
Graças ao trabalho persistente do SJ junto da Comissão dos Assuntos Constitucionais da Assembleia da República, foi possível um pequeno mas insuficiente progresso na defesa dessa garantia fundamental: Ao estabelecer que «a decisão judicial de transmitir dados deve respeitar os princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade, designadamente no que se refere à definição das categorias de dados a transmitir e das autoridades competentes com acesso aos dados», o diploma também consagra a «protecção do segredo profissional, nos termos legalmente previstos».
Contudo, como sublinhou a então Direcção do SJ numa mensagem ao Presidente da República pedindo o veto ao diploma, ao não fixar um dispositivo que permita aos titulares do sigilo tomar conhecimento prévio da transmissão de dados, para que possam opor-se a ela nos termos do seu Estatuto, a solução encontrada pouco passou de uma piedosa declaração de intenções.
Muito pior é, porém, o risco de os serviços secretos virem a ter acesso a tais dados, sem que se levante uma discussão ampla e informada sobre este tema. Chega a ser desconcertante os media assumirem
como seu um discurso securitário tendente a justificar a medida de entrega
às «secretas» do acesso a informações que a lei e a Constituição não
consentem, pois nem o SIS nem o SIED são órgãos de polícia criminal.
De facto, estabelece ainda a lei da conservação de dados que a transmissão de dados mediante requerimento do Ministério Público ou pela autoridade de polícia criminal competente «só pode ser autorizada por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves».
Em 22 de Julho de 2015, com os votos do PSD, do CDS e do PS, a Assembleia da República aprovou a revisão do regime jurídico dos Serviços de Informações da República Portuguesa, cujo artigo 78.º, n.º 2 escancarava o acesso dos oficiais do SISA e do SIED a «dados de tráfego, de localização e outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização».
Quem se recorda do caso do acesso ilegal a dados da facturação de comunicações telefónicas do jornalista Nuno Simas por parte de elementos do SIED condenados em Novembro, facilmente concordará quão útil teria sido disporem de um mecanismo de devassa «legalizada» àqueles dados, bastando para tal a autorização de uma comissão de controlo prévio composta por três juízes conselheiros.
Mediante dúvidas levantadas pelo Presidente da República, o Tribunal Constitucional pronunciou-se taxativamente pela inconstitucionalidade da norma, num extenso acórdão que invoca a proibição da ingerência das autoridades nas telecomunicações fora dos casos previstos em matéria de procedimento criminal, considera que a autorização da tal comissão não equivale ao controlo judicial no processo criminal e recorda que os oficiais de informações não podem intervir em processo penal.
O tempo passou. Na sequência do último relatório do Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações da República, o tema do acesso aos dados de comunicações voltou à agenda política. Porque, sublinhava, segundo uma citação num despacho da agência Lusa de 22 de Fevereiro passado, «as ameaças que os serviços de informações visam detectar e prevenir não desapareceram nem diminuíram».
Estava recuperada, na retórica europeia do securitarismo europeu à boleia de ataques e ameaças, pondo de quarentena ou eliminando direitos e garantias fundamentais, de que Portugal é fiel seguidor, a justificação para nova investida.
Agora com o governo de minoria PS a prometer ultrapassar a inconstitucionalidade de «forma mais imaginativa», segundo um despacho da Lusa do passado dia 13, pelos vistos nem que seja martelando na lei a entrada das «secretas» no processo penal…
Aguardemos, muito atentos. É neste quadro que se impõe um papel mais vigilante dos media. Em defesa dos direitos dos cidadãos e das garantias dos próprios jornalistas.
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