Peço emprestado o título deste texto ao Presidente da República, que cito de cor e relativamente fora de contexto. Mas os contextos harmonizam-se, e não apenas porque «isto anda tudo ligado», como canta o Sérgio Godinho e um dia titulou o saudoso Eduardo Guerra Carneiro.
Por isso não cito Marcelo de Sousa para já a propósito da hecatombe no Centro de Portugal mas do Mali – o país africano onde morreu um militar português em missão «da União Europeia», como se diz oficialmente para explicar o que não tem explicação.
Uma morte é sempre uma tragédia; mas esta morte envolve mais tragédias, como se já não bastassem a dolorosa perda da vida do sargento-ajudante Paiva Benido, o sofrimento dos seus familiares e amigos, a incredulidade dolorosa dos portugueses em geral.
Ela traduz a tragédia de um País que recuou mais de 43 anos em direcção a anos negros e sangrentos do seu passado recente. Pior do que enviar cidadãos para as matanças «nas nossas colónias» é mandá-los perder a vida para defender as colónias dos outros, sejam quais forem os argumentos que se invoquem – sendo estes, no caso do Mali, de uma debilidade e, ao mesmo tempo, de uma arbitrariedade confrangedora; e quando se fala do Mali devemos acrescentar o Afeganistão, a Bósnia-Herzegovina, a República Centro-Africana, a vergonhosa colonização do Kosovo pela NATO.
O que as tropas da NATO fazem no Mali, ao serviço «da União Europeia» e defendendo interesses específicos do neocolonialismo francês, é supostamente estabilizar um regime político que garante a exploração, a exportação e o contrabando de ouro do terceiro maior produtor africano deste metal precioso. Tal como acontece em relação aos diamantes da República Centro-Africana.
Basta consultar as estatísticas para se apurar que a produção, a exportação e o contrabando de ouro do Mali cresceram exponencialmente com a intervenção militar «da União Europeia». Principalmente o contrabando, funcionando com base na mais cruel e insensível exploração infantil, e cuja envergadura se pode avaliar por este facto: só o ouro maliano que entra anualmente nos Emirados Árabes Unidos excede em muito a produção oficial reconhecida pelo governo do Mali, o que leva a supor que este país funciona também como placa giratória do contrabando aurífero realizado em nações adjacentes.
O negócio corre tão bem e é tão prometedor que os tradicionais refinadores suíços de ouro – metal precioso sempre igual, seja legal ou de sangue – estão em vias de instalar refinarias no próprio Mali, cujo funcionamento será guardado pelo exército regular, pelos vistos em situação de treino permanente pelas «tropas da União Europeia», entidade à qual a Suíça, sempre «neutra», não pertence.
Os meios oficiais e oficiosos nacionais desdobram-se agora em esforços para culpar unicamente os radicais islâmicos de uma al-Qaida regional pela morte do sargento-ajudante Paiva Benido.
Mas para que a verdade seja ampla, tão completa quanto possível, deve recordar-se também que entre os mentores e municiadores dessa al-Qaida estão, por exemplo, figuras como Abdelhakim Belhadj, que a NATO designou como governador militar de Trípoli depois da operação conjunta da força aérea atlantista e de milícias terroristas islâmicas para «libertar» – e destruir – a Líbia. Cargo que ocupou durante pouco tempo, antes de ser encarregado, pelo longo braço da senhora Clinton, de criar e organizar os terroristas «moderados», e os outros, que assumiram a tarefa de destruir a Síria.
Belhadj está de novo na Líbia e, segundo a Interpol, é chefe do terrorismo islâmico do Magrebe, pelo que a sua actividade se estende, sem qualquer dúvida, ao Mali.
«Basta consultar as estatísticas para se apurar que a produção, a exportação e o contrabando de ouro do Mali cresceram exponencialmente com a intervenção militar "da União Europeia".»
É difícil, pois, destrinçar, as tragédias em que Portugal está envolvido, por via das suas «amizades» externas, para lá do drama da morte do sargento-ajudante Paiva Benido, porque «isto anda tudo ligado».
Por este caminho chegamos directamente às palavras do Presidente da República tomando como ponto de partida a frase que dá título a este texto.
As tragédias de que fala Marcelo Rebelo de Sousa seriam ainda bem mais amplas e gravosas se não fossem a solidariedade e o altruísmo dos cidadãos portugueses; porque se estivéssemos à espera da solidariedade concreta das nossas «amizades» externas, por certo continuariam a morrer pessoas e a arder as florestas e outros bens públicos e privados.
Vieram aviões de Espanha, França, quiçá de Itália, é certo. Seríamos ingratos se não o reconhecêssemos; mas seremos parvos se não ficarmos atentos às facturas a pagar – e às mil e uma maneiras de isso acontecer.
O primeiro-ministro realça, frequentemente, a solidariedade de dirigentes de todos os Estados membros da União Europeia que tem recebido no telemóvel. Talvez tenham chegado também mensagens de outros países do exterior da União Europeia – isso já não sabemos. Seja como for, as palavras de conforto, até as do presidente da Comissão Europeia e do comissário Moedas, são muito bonitas mas não apagam fogos nem salvam vidas.
Mas, ao que consta, a União Europeia preocupa-se com a hecatombe em Portugal – não sejamos então radicalmente injustos.
Diz-se que Bruxelas, graças a um surto de generosidade, está a encarar a possibilidade de os prejuízos causados pelos incêndios no Centro do país – não sei como se contabiliza uma vida humana perdida – não entrarem nas contas para apuramento do défice final deste ano. Quanta magnanimidade!
Bem podem o Presidente da República e o primeiro-ministro insistir, e bem, que em primeiro lugar estão as pessoas; em Bruxelas, como sempre, o euro e o défice estarão sempre primeiro, depois logo se vê o que fazer com os seres humanos.
O vice-presidente da Comissão Europeia, Jyrki Katainen, assegura por seu lado que o «Fundo de Solidariedade» pode cobrir até 95% dos prejuízos da catástrofe portuguesa; veremos o que haverá de sólido nesta promessa, sabendo-se que circulam notícias segundo as quais tal fundo será accionado se os prejuízos atingirem os 500 milhões de euros. Estamos muito longe de tais apuramentos, tanto mais que o fogo continua activo.
Diz-nos a experiência que da União Europeia devemos esperar sanções, castigos e insultos mais do que «apoios», sobretudo quando estão em causa delicadas situações humanas e humanitárias.
Este caminho poderá levar-nos ao início do texto, ao facto de as Forças Armadas Portuguesas terem regressado a guerras coloniais, agora no âmbito de «amizades» e compromissos que não foram democraticamente chancelados pelos portugueses e dos quais os portugueses acabam por ser vítimas, inclusivamente pagando com as próprias vidas por conta de interesses alheios – e quantas vezes desumanos.
No Mali estão forças ditas «da União Europeia» apenas por uma questão de bandeira, porque o âmbito operacional é, de facto, o da NATO.
«A NATO não tem como missão salvar vidas e acudir às populações, não é para isso que os cidadãos dos Estados membros são espoliados de milhares de milhões dos seus rendimentos.»
E da NATO todos nós sabemos o que esperar: agressão, defesa de grandes interesses económico-financeiros e morte – como nos revela o por demais conhecido histórico da organização.
Daí que ninguém no seu perfeito juízo ousasse sugerir que meios atlantistas fossem usados para combater a tormenta que continua a assolar o Centro de Portugal.
A NATO não tem como missão salvar vidas e acudir às populações, não é para isso que os cidadãos dos Estados membros são espoliados de milhares de milhões dos seus rendimentos.
Seja-nos permitido, porém, evocar um pouco de soberania nacional passível de ser roubada à ganância leonina dos compromissos e «amizades»; além de invocar a reconhecida dignidade dos militares das forças armadas portuguesas.
Mesmo que à revelia da União Europeia e da NATO, é obrigação do governo e das forças armadas estabelecerem um sistema funcional e automático de enquadramento dos militares no quadro de protecção civil em situações de calamidade nacional como a que agora vivemos. Um sistema que, uma vez posto em acção, permita uma resposta rápida, sem atropelamentos nem casuísmos e no qual cada sector conheça, de modo elementar e expedito, as missões a desempenhar.
Para os portugueses, uma conjugação deste tipo seria bastante mais útil, humano e de interesse nacional do que o envio de destacamentos coloniais para o Afeganistão, o Kosovo, o Mali ou outros endereços.
E mesmo que, ao acudir a uma calamidade em Portugal, se registasse a tragédia de uma morte como a do sargento-ajudante Paiva Benido, conheceríamos os interesses envolvidos e valorizaríamos, com toda a clareza, os custos de tal sacrifício.
Assim, tal como as coisas se passaram fora de portas, temos que voltar a conviver com os penosos comunicados oficiais que julgávamos enterrados há décadas, culpando «turras» e «bandoleiros» por culpas próprias, ainda que os criminosos sejam designados agora como «fundamentalistas islâmicos» ou qualquer outra variante de «al-Qaida».
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