No dia 3 de Maio, as centrais sindicais reagiram com justa indignação a afirmações da presidente do CDS-PP, Assunção Cristas, no encerramento das jornadas parlamentares da sua bancada, realizadas em Ílhavo, distrito de Aveiro, a propósito das notícias sobre a publicação do regime jurídico transitório para a inserção de trabalhadores precários na Administração Pública e no sector empresarial do Estado.
A julgar pelas notícias, as jornadas pouco terão produzido digno de destaque e Assunção Cristas estava sem assunto que produzisse eco noticioso suficiente para assegurar a «presença» mediática do seu partido ao longo do dia (edições em linha, rádios e televisões) e nos jornais do dia seguinte.
Da memória dessa alocução, o que fica são afirmações segundo as quais os sindicatos passam a ter um poder de seleccionar e defender a integração dos trabalhadores precários que bem entendam – os que são sindicalizados, diz ela – e que estaríamos mesmo perante a «apropriação ilegítima da máquina do Estado»1. É assim que se vai «enriquecendo» o caldo de cultura de preconceitos e suspeitas mesquinhas contra o campo sindical…
O que aconteceu constitui um interessante caso de estudo sobre a comunicação política e a exposição dos media ao risco de manipulação e instrumentalização. De facto:
1. Assunção Cristas, jurista, professora de Direito, deputada, ex-ministra, presidente do partido com a quarta representação parlamentar, pretendeu comentar, com escândalo artificial, um facto que nada tinha de novo e sobre o qual lançou injustificadas suspeitas.
2. A líder do CDS-PP produziu um soundbite (uma ou várias frases de efeito com elevada probabilidade de serem reproduzidas nos media e dominarem o noticiário do dia) que honestamente não poderia sustentar se viesse a ser confrontada com o embuste.
3. Certamente mais preocupada em assegurar a notícia do elemento «novidade», mas também rendida à irresistível tentação do soundbite, a generalidade dos media, sem dar-se à maçada de verificar a veracidade das imputações, não cumpriu inteiramente a missão primeira do jornalismo – procurar a verdade, o que implica repô-la quando alguém a atraiçoa.
Trata-se, como bem ensinam Bill Kovach e Tom Rosenstiel2, da «disciplina de verificação», uma técnica (pessoal, não normativa…) que «é o que separa o jornalismo do entretenimento, propaganda, ficção ou arte». No pressuposto, bem entendido, de que «a primeira obrigação do jornalismo é para com a verdade», de que «o jornalismo deve manter-se leal, acima de tudo, aos cidadãos» e de que «a sua essência assenta numa disciplina de verificação»3.
«A propaganda selecciona ou inventa factos para servir um objectivo superior – a persuasão ou a manipulação», pois «apenas o jornalismo se concentra, em primeiro lugar, em apurar aquilo que realmente aconteceu», acrescentam Kovach e Resenstiel, que também não iludem um problema central: «Na era do ciclo noticioso de 24 horas, os jornalistas passam mais tempo a procurar algo para acrescentar às notícias existentes, geralmente interpretação, em vez de tentarem descobrir e verificar os novos factos de forma independente».
Que aconteceu? A sucessão de factos é bastante elucidativa.
Nesse dia, foi publicada a portaria que estabelece os procedimentos de avaliação de situações a submeter ao programa de regularização extraordinária dos vínculos precários, publicação de que a Agência Lusa deu justificada notícia, embora o Público a antecipasse na edição desse dia, enfatizando o «reforço do poder dos sindicatos».
A portaria e o seu interesse noticioso e social são muito claros:
– os trabalhadores em situação precária podem requerer a avaliação da sua situação junto de comissões de avaliação bipartidas (integradas por organizações sindicais representativas dos trabalhadores) nos vários ministérios;
– os dirigentes máximos dos órgãos, organismos ou entidades submetem às comissões a identificação das situações que não tenham sido apresentadas pelos próprios interessados; e,
– supletivamente, os sindicatos e as comissões de trabalhadores podem comunicar aos referidos dirigentes máximos «as situações de exercício de funções que correspondam a necessidades permanentes e sem o adequado vínculo laboral de que tenham conhecimento.
Ou porque tivesse estado demasiado atarefada com os afazeres partidários, sem tempo nem assessores para uma leitura objectiva das notícias e da própria portaria, ou porque lhe desse jeito fabricar um facto mediático que lhe garantisse suculenta presença nos noticiários, Assunção Cristas arremeteu contra Governo e sindicatos, roçando a calúnia.
Eis os três primeiros parágrafos do despacho da Agência Lusa logo publicado por muitos meios de informação em linha:
«A líder do CDS-PP, Assunção Cristas, acusou hoje o Governo de querer "institucionalizar a cunha" no processo de regularização de precários, admitindo que o partido possa chamar o ministro Vieira da Silva ao parlamento.»
«No encerramento das jornadas parlamentares do CDS-PP, Assunção Cristas disse que o partido está preocupado com várias situações de "atropelamento diário de regras" e apontou como exemplo o processo de regularização dos trabalhadores precários na função pública.»
«"Hoje somos surpreendidos com a notícia de mais um atropelo: o Governo vai dar a voz aos sindicatos para, não diria seleccionar, mas pelo menos meter a cunha", afirmou Cristas.»
Disse «surpreendidos»? Está visto que a líder do CDS-PP ou não frequenta ou não tem quem leia por ela o Diário da República. Uma Resolução do Conselho de Ministros de 28 de Fevereiro não podia ser mais clara ao estabelecer que «a avaliação dos requisitos para acesso» ao programa de regularização de vínculos «é efectuada, mediante solicitação do trabalhador interessado, por uma comissão bipartida a criar no âmbito de cada área governativa, com representantes» do Governo «e das organizações representativas dos trabalhadores». E também não leu notícias que já em Abril antecipavam o conteúdo da polémica portaria…
Lançando um labéu de suspeição sobre os sindicatos, na esteira de desprezo da Direita pelos trabalhadores e de ódio contra as suas organizações, Cristas foi mais longe: «Pergunto-me se os sindicatos se lembrarão dos que não são sindicalizados nesta selecção.»
Garantidos o tempo de antena e as frases de efeito, parte dos meios de comunicação social caiu na armadilha de praticamente circunscrever a notícia às afirmações da dirigente e deputada do CDS. Embora com breves referências às reacções das centrais sindicais e a extratos da portaria, não conseguiram repor a verdade com suficiente clareza e extensão. E o peso pendeu para o lado de Assunção Cristas.
Os títulos de jornais do dia seguinte são sintomáticos: «Pôr sindicatos a integrar precários é "institucionalizar a cunha", diz Cristas» (Público); «CDS alerta para "cunhas sindicais". UGT ataca Cristas» (Diário de Notícias).
Neste frenesim de câmara de eco dos soundbites, quase todos os media se esqueceram de informar os trabalhadores precários abrangidos pela portaria sobre os procedimentos a seguir para verem enfim sanada a profunda injustiça que os atinge. Só o Correio da Manhã deixa algumas dicas, ainda que com espaço modesto, e o jornal i dedica duas páginas ao assunto.
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