Áreas (des)Protegidas

A novidade neste ano de 2016 é a anunciada criação de estruturas «descentralizadas» para a gestão das Áreas Protegidas, numa «espécie de parcerias público privadas ou PPP» com autarquias e organizações não-governamentais do ambiente.

Mata da Albergaria, no Gerês
Créditos / UmOlharViajante

A nossa Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP) atravessa tempos atribulados. Criada em 1993 para integrar e coordenar as funções do Parque Nacional com as dos restantes Parques Naturais, Paisagens Protegidas, Reservas Naturais, Monumentos Naturais e Sítios com Interesse Biológico, pretendia-se dar coerência e uma capacidade acrescida para cumprir a sua missão de salvaguarda do património natural português, bem como de todas as suas inter-relações e interdependências com as dinâmicas humanas que lhes são mais próximas. Este seu papel integrador haveria de ser reconhecido mais tarde, em 2001, valorizado e reforçado, que foi quando passou a integrar a Rede Fundamental de Conservação da Natureza juntamente com os Sítios e as Zonas de Protecção Especial da Rede Natura 2000, a Reserva Ecológica Nacional, o Domínio Público Hídrico e a Reserva Agrícola Nacional, para além de outras áreas classificadas ao abrigo de compromissos internacionais.

Portugal passava a ter uma Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, dedicando uma substancial parte do seu território para tal e assegurando que os nossos recursos naturais estariam a salvo de outros interesses que não fossem os de todos. Nesse sentido, na década passada foram aprovados os Planos Especiais de Ordenamento do Território das Áreas Protegidas em falta. Com estes instrumentos de gestão territorial, o Estado assumiu as suas responsabilidades na salvaguarda do património natural e da biodiversidade, vinculando os particulares, directa e imediatamente, a regras de uso e alteração da ocupação dos solos, tais como as que determinam onde se pode ou não construir.

Estabelecidas as regras para os particulares, e as consequentes responsabilidades do Estado, impunha-se então a concretização de políticas públicas e de medidas que valorizassem esse património, ressarcindo as populações pelo papel fundamental que as suas propriedades e as suas práticas desempenham na salvaguarda da biodiversidade e de todos os processos e funções que lhe estão associados. Para isso seria necessário reforçar uma administração de proximidade que elucidasse e sensibilizasse as populações para o seu papel, bem como as auscultasse nos seus anseios e promovesse intervenções no sentido de ir ao encontro das suas aspirações. Ora acontece que foi exactamente o contrário o que fizeram os sucessivos governos.

Em 2007, o ministro do Ambiente considerou que a figura de um Director para cada Área Protegida, nomeado após concurso e com estatuto de director de serviço, era «altamente centralizador». Determina então o fim das Comissões Executivas de cada Área Protegida, até aí compostas por um presidente e um vogal escolhidos pelo ICN e um segundo vogal escolhido pelos municípios abrangidos por cada área classificada, com o argumento de que eram «uma fonte de equívocos» (in Público, 23/03/2007). Toda esta estrutura de gestão e administração de proximidade foi desvalorizada, passando um «técnico mais graduado» a responder perante um dos cinco directores dos departamentos criados pela aglomeração das Áreas Protegidas (AP) por critérios geográficos. Não bastando este desaparecimento do terreno, em 2014 o seguinte governo acentua ainda mais a desresponsabilização do Estado e o abandono das populações locais no que concerne ao Património Natural.

A nova Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos de Ordenamento do Território e do Urbanismo reduz o papel regulamentador dos Planos de Ordenamento das Áreas Protegidas à categoria de meros programas de ordenamento e gestão, promovendo a transposição das suas determinações para Planos de Desenvolvimento Municipal ou Intermunicipal da estrita responsabilidade das autarquias. Este processo, actualmente em curso, desresponsabiliza em definitivo o Estado da salvaguarda de um património que, para além da sua natureza nacional, tem também uma natureza sistémica e orgânica, apenas susceptível de ser gerido e valorizado em rede, ou não se tratasse de biodiversidade.

A novidade neste ano de 2016 é a anunciada criação de estruturas «descentralizadas» para a gestão das Áreas Protegidas, numa «espécie de parcerias público privadas ou PPP» com autarquias e organizações não-governamentais do ambiente (Expresso, 9/6/2016). Fazendo uma leitura muito enviesada, e até em sentido oposto, de um recente parecer do Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS), o governo pretende desresponsabilizar-se, abandonando em definitivo a regulação dos instrumentos de gestão territorial dos diversos componentes da nossa Rede Nacional de Áreas Protegidas. Pretende agora transferir a liderança, a regulamentação e a gestão de cada uma dessas AP para cada um dos municípios que as integram e que não têm, nem teriam que ter, a visão integrada necessária à salvaguarda do seu conjunto.

Será possível que se acautelem os valores naturais e os componentes mais ameaçados da nossa biodiversidade, como são os níveis tróficos mais elevados ou os sistemas aquáticos, com base nas diferentes e legítimas perspectivas, prioridades e práticas, de cada município?

Afinal será este o mesmo governo do ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que acaba igualmente de anunciar uma Rede de Laboratórios colaborativos de Montanha integrando as serras de Montesinho e da Estrela, e o Pico nos Açores? Será esta a forma de este governo honrar o recente reconhecimento internacional de um dos nossos investigadores em biodiversidade, no caso, o Prémio Rey Jaime I 2016 de Miguel Araújo?

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