No dia 1 deste mês, vários órgãos de informação portugueses repercutiram, nas respectivas edições em linha, uma notícia do diário espanhol El Mundo (1), segundo a qual o auto-proclamado Estado Islâmico (EI) publicara, em Junho, nas redes sociais, um anúncio para o recrutamento de tradutores de português e de castelhano, entre outras informações, designadamente sobre os alegados «progressos» e as «ameaças» do EI.
Entre as participações nas caixas de comentários avultam, além de recorrentes manifestações de xenofobia, intolerância e de inspirações «humorísticas» mais ou menos forçadas, reacções muito críticas de leitores.
«Esta notícia é direccionada para aqueles que não tenham tido conhecimento do recrutamento ficarem a saber!», comenta um leitor do Diário de Notícias (2). Outra leitora pergunta se «o DN pode ser processado por apoio ao terrorismo», questionando se tal informação é notícia «só porque o El Mundo também faz», concluindo: «Que falta de sentido ético! Que falta de sensibilidade! Que estupidez!»
«Valha-me Deus!! Isto é notícia ou estão vocês a receber as candidaturas? Sinceramente ao que chega o nosso jornalismo!», indignou-se um internauta no sítio da Rádio Renascença (3). «Não querem divulgar mais os desejos do daesh? Assim, sempre desempenhavam melhor o papel de os ajudar!», questionou outro. E um terceiro protestou: «Esta é a tal notícia que não devia ser!»
«Coloca-se em discussão um problema central – o da responsabilidade ética dos jornalistas na ponderação, selecção, hierarquização, valorização, difusão e avaliação dos efeitos da publicação de factos susceptíveis de serem notícia.»
Justamente nos dias anteriores crescera, nomeadamente em França, um interessante debate entre intelectuais e responsáveis editorais sobre o que e como noticiar os acontecimentos – publicar ou não a identificação e as biografias dos implicados em actos violentos atribuídos ou reivindicados por aquele ou outros grupos. Objectivo: evitar a glorificação dos autores e procurar neutralizar o seu protagonismo pelo maior anonimato possível.
As citadas contribuições dos internautas, centradas no evidente risco de transformar os Media em instrumentos de propaganda e mesmo da legitimação desta, colocam em discussão um problema central – o da responsabilidade ética dos jornalistas na ponderação, selecção, hierarquização, valorização, difusão e avaliação dos efeitos da publicação de factos susceptíveis de serem notícia.
Muitas questões podem e devem ser equacionadas. Três exemplos:
– Até que ponto a divulgação de informações como aquela serve os interesses da propaganda do terror, instrumentalizando os meios de comunicação social e legitimando a «comunicação terrorista»?
– Ou, por outro lado, até que ponto o fluxo quase contínuo de certas «informações», distribuído através de Media «credíveis» mas que os jornalistas não conseguem confirmar e contrastar em tempo útil, serve interesses obscuros de qualquer um dos lados?
– Ou, ainda, será que os Media estão a ser manipulados na disseminação de mensagens tendentes a criar uma atmosfera cívica permeável a um discurso da demagogia securitária levando os cidadãos a aceitar acriticamente uma soma muito preocupante de restrições às suas liberdades – ou as dos jornalistas?
Um comunicado recente do Sindicato Nacional dos Jornalistas Franceses, significativamente intitulado «Prolongamento do estado de urgência e informação: uma deriva inquietante» (4), colocava em evidência dois problemas:
– os efeitos deletérios sobre a liberdade de informação, limitando a capacidade dos repórteres que investigam o terrorismo, ou mesmo de as condições em que vivem os cidadãos da «segunda zona»;
– e o enquadramento da prorrogação do estado de emergência por declarações belicistas do Presidente da República e do primeiro-ministro, retomadas por numerosos eleitos, tanto da esquerda como da direita.
Uma leitura atenta da torrente de notícias (umas instantâneas, nos directos, outras que deveriam ser mais ponderadas com tempo de recuo mais razoável) sobre os acontecimentos violentos do último mês fornece material suficiente para uma reflexão sobre riscos muito graves que os cidadãos já enfrentam de facto e que já não são mero produto de elaborações teóricas prospectivas.
«Há sérias razões para recear que os Media (...) estão a alimentar uma espécie de síndrome de "Pedro e o Lobo", atribuindo de imediato origem "terrorista" a actos que não revestiam de facto tal natureza.»
Há sérias razões para recear que os Media, «legitimados» em fontes oficiais que propagam toda a sorte de informações à velocidade vertiginosa do Twitter, ou escorados em «especialistas» que debitam opiniões apressadas, em directo ou em diferido, estão a alimentar uma espécie de síndrome de «Pedro e o Lobo», atribuindo de imediato origem «terrorista» a actos que não revestiam de facto tal natureza.
Ou, pior, estão a gerar uma ampla convicção de verosimilhança, reconhecendo em todos os actos violentos a probabilidade de serem, ou de poderem ter sido, de natureza terrorista, por muito que escasseiem evidências factuais – escrutináveis pelos jornalistas e/ou por fontes independentes (e aqui bate o ponto…) – sobre tal natureza e a motivação reais desses acontecimentos.
Um bom exemplo para discutir essas hipóteses e a atitude pouco cuidada dos Media é o caso do ataque num centro comercial em Munique, Alemanha, em 22 de julho, perpetrado por um jovem germano-iraniano de 18 anos, que abateu a tiro nove pessoas e acabou por suicidar-se.
Vítima da vertigem imediatista transformada em combustível da ingovernável nave mediática, a generalidade da comunicação social instantânea (televisões e rádios e jornais em linha «em directo») foi incapaz de precaver-se do dilúvio de rumores, informações falsas e manipulações grosseiras que transbordou do espaço público.
Do número exagerado de atiradores (inicialmente eram três) e sequestros imaginários em hotéis, à transmissão de imagens de arquivo com inúmeros mortos em ataques noutros locais há anos, ou de simulacros de operações policiais ou de socorro, tudo serviu para alimentar e credibilizar uma conveniente narrativa de terror.
Pode ter servido para acelerar as audiências e «visitas» do dia, e talvez tenha sido útil a interesses estranhos, mas não serviu nem os direitos, nem os interesses dos cidadãos, nem o objectivo da verdade.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui