O ensino artístico é coisa recente no ambiente educativo do nosso país. Já não é coisa rara mas, ainda assim, demora a ascender à categoria de direito, pelo tanto tempo que se demorou na galeria dos privilégios educativos. Nada novo, infelizmente – na geração dos nossos avós, o acesso ao mundo das letras e dos números era coisa reservada a poucos.
A classe dominante sabe que o esclarecimento das almas é um poderoso gerador de inquietações, e que a ignorância é garantia de adesão ao discurso único e assertivo, sobretudo se for embrulhado em véus de entretenimento. Por isso é que o ensino artístico público chegou a 25 de Abril de 1974 circunscrito a, literalmente, meia dúzia de escolas entre a Música e a Dança, o Teatro e as Artes Plásticas – o estritamente essencial para guarnecer os ofícios da cultura essencial e, ainda assim, com o risco de surgimento de «lopes-graças» e «ciprianos dourados» e «bernardos-santarenos» que tanto trabalho deram aos guardiões do fascismo.
A educação artística, a que o ensino artístico é devedor de paternidade, é um produto da sociedade democrática. Ainda que no plano da oferta dita generalista pouco se tenha avançado, permanecendo os currículos da educação pré-escolar e de início do ensino básico à espera da entrada das artes nos saberes das nossas crianças. Claro que vai havendo um ou outro professor «jeitoso», capaz de incorporar na sua prática educativa os desafios e os prazeres da criatividade, mas isso são as exceções que confirmam a regra da aridez educativa.
Seja como for, e acompanhando as outras esferas do conhecimento, aquilo que até há pouco era considerado um luxo vai-se transformando em necessidade. Hoje, a aprendizagem das Artes desperta o interesse de milhões de cidadãos, entre pais e filhos, nem que seja pela suspeita do seu benefício para a concentração infantil, a facilitação do cálculo matemático, o mero enriquecimento do currículo – ainda assim, uma vontade genuína e empenhada. Vontade que, só por si, vem permitindo a centenas de jovens cavar o ganha-pão mesmo que, à saída do ensino superior artístico, encontrem os escolhos de um país que dedica à Cultura 0,1% do seu Orçamento do Estado.
Depois dos quadros técnicos e científicos qualificados, as governações de Portugal desprezam, sem mais explicações, a disponibilidade dos artistas para o serem. Para o que faz falta nunca há dinheiro.
«Com efeito, os alunos das nossas escolas do ensino regular não têm direito à educação artística, que vive há já alguns anos em intenções governativas que demoram em fazer entrar a Arte na sala de aula.»
Não chegámos ainda à necessidade (à urgência) de melhoria do acesso ao ensino artístico, e já estamos a falar dos seus antes – a escola que demora –, e seus depois – o trabalho que não se estimula. É que a primeira razão de ser do ensino artístico é poder assumir-se elemento valorizador de um sistema educativo em que a educação artística generalizada possibilite a cada cidadão o contacto com a figura que nasce do barro, a personagem que nasce da encenação, a experiência do traço no papel, o passo de dança, a melodia conquistada na vibração de uma corda esticada.
Com efeito, os alunos das nossas escolas do ensino regular não têm direito à educação artística, que vive há já alguns anos em intenções governativas que demoram em fazer entrar a Arte na sala de aula. Mas não é por falta de vontade de aprender, nem por falta de gente para ensinar. É por falta de políticas, ou pela adoção de políticas de remendo, como as desastradas Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC).
Todos os tempos têm seu rastilho, e o do ensino artístico tem demorado a acender. Mesmo assim, na paisagem artística da Cultura portuguesa circulam centenas de jovens despertados para as artes nas práticas educativas levadas a cabo em contexto associativo, privado e do Poder Local, às vezes suportadas pelo Estado mas irregularmente distribuídas ao longo do território nacional. Com efeito, das pouco mais de 100 escolas de ensino artístico apoiadas pelo Estado (música, dança e artes visuais) só pouco mais de uma dezena são públicas; e, mesmo estas, situadas quase exclusivamente no litoral e a norte do Tejo (nas Ilhas, uma na Madeira e três nos Açores).
O final da década de 1980 marca o início do alargamento do acesso à aprendizagem artística, particularmente na área da Música. Importa realçar, a propósito, o papel das escolas profissionais de música, impulsionadas por um organismo estatal sedeado no Porto – o GETAP – que viria a criar uma nova perceção do que poderia ser educar musicalmente, fundando-se um Portugal musical paralelo, que viria a alimentar, e salvar do tédio, um ensino superior débil e impreparado.
Para o salto, cujo impulsionador direto foi o músico e professor José Luís Borges Coelho, muito contribuíram as novas abordagens da educação instrumental produzidas por professores/músicos imigrantes dos países socialistas do Leste europeu, herdeiros de um sistema de ensino socialista e, portanto, virado para o acesso generalizado mobilizador de milhares de profissionais – professores e artistas – que a recuperação capitalista fez sobrar. O que foi feito na música traduz-se hoje em centenas de jovens, capazes como nunca antes para o desempenho das tarefas artísticas num terreno profissional minado pelas ilusões mecenistas que foram justificando a ausência de OGE.
Chegados a este ponto, impõe-se a criação de uma rede nacional de ensino artístico, a par de uma verdadeira reforma da educação artística na qual se dê à música, ao teatro, à dança e às artes visuais o relevo a que as nossas crianças e jovens têm direito.
O momento de conceber o Orçamento do Estado é uma boa ocasião para ter em conta o essencial.
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