Escrever uma crónica num momento marcado pelo desaparecimento de um dos vultos maiores da História contemporânea, levanta uma natural hesitação: prestar homenagem a uma personalidade com essa rara dimensão corre o risco de repetir o que outros já disseram, escolher outro tema é passar ao lado de uma das personalidades mais marcantes do nosso tempo.
Talvez a melhor forma de evitar redundâncias seja recordar algumas marcas de Fidel Castro na minha própria memória, aproveitando reflexões despertadas nas suas curvas e cotovelos, procurando assim algum registo original.
Foi ainda na minha verde adolescência, nos últimos suspiros da primeira metade do século XX – quando a América Latina era olhada como um jardim tropical dos USA –, que comecei a conhecer os nomes maiores da revolução cubana, protagonistas do desembarque no Gramna e da guerrilha na Sierra Maestra: Raul Castro, Camilo Cienfuegos, «Che» Guevara e, no posto supremo, «el comandante» Fidel.
Jovens, generosos e barbudos, representavam a vitória da liberdade sobre uma pequena elite cleptocrática protegida pelos USA e pela máfia, expulsa de Havana no meio das festas da passagem de ano de 1959, com a entrada dos revolucionários e a fuga o ditador Fulgêncio Batista num avião com o ouro pilhado ao povo.
Logo na «Primeira Declaração de Havana» o novo governo mostrou ao que vinha, enunciando o que «a Assembleia Geral de Cuba proclama perante a América»:
«O Direito dos camponeses à terra; o direito do trabalhador ao fruto do seu trabalho; o direito das crianças à educação; o direito dos doentes à assistência médica e hospitalar; o direito dos jovens ao trabalho; o direito dos estudantes à educação gratuita, experimental e científica; o direito dos negros e dos índios à dignidade plena do homem; o direito da mulher à igualdade civil, social e política; o direito dos idosos a uma velhice segura; o direito dos intelectuais, artistas e cientistas a lutar, com as suas obras, por um mundo melhor; o direito dos Estados à nacionalização dos monopólios imperialistas, resgatando assim as riquezas e recursos nacionais: o direito dos países ao comércio livre com todos os povos do mundo; o direito das nações à sua plena soberania; o direito dos povos em converter as suas fortalezas militares em escolas e amar os seus trabalhadores, os seus camponeses, os seus estudantes, os seus intelectuais, o negro, o índio, a mulher, o jovem, o idoso, todos os oprimidos e explorados, para que defendam, por si mesmos, os seus direitos e destinos.»
Cuba, usando a expressão do general mexicano Profírio Diaz, estava «tan lejos de Dios y tan cerca de los Estados Unidos», e sua revolução alimentou muitas esperanças, muitos entusiasmos, muitas discussões, mas também muitos ódios e mentiras e o constante ataque do vizinho que não tolerava emancipações das suas «colónias».
Um ano depois, Kennedy, presidente dos USA, desencadeou o ataque frustrado da Baía dos Porcos (o nome foi apenas uma feliz coincidência) com os elementos mais reaccionários e mafiosos que a CIA conseguiu arregimentar.
A flagrante ilegalidade da administração Kennedy nessa fracassada agressão, assim como as posteriores tentativas de assassinar o presidente de Cuba, são hoje despudoradamente assumidas pelos próprios USA e pelos media «ocidentais» que quase a consideram um direito natural dos States.
Ao contrário dos partidos «socialistas» e «sociais-democratas» que traíram e traem o ideário de justiça social usado apenas para caçar votos, Cuba e Fidel cumpriram os princípios anunciados, mantendo a honradez e a dignidade, mesmo quando as dificuldades e a asfixia que o bloqueio imposto pelos USA e aliados (a «tentativa de genocídio de todo um povo», segundo Gabriel Garcia Marquez) podiam servir de álibi para a cedência.
Em Fevereiro de 1962, na «Segunda Declaração de Havana», discursando perante mais de um milhão de cubanos com a sua voz clara e cheia, «El comandante» denunciou os ataques a Cuba, condenando o criminoso bloqueio decretado pela Organização dos Estados Americanos, dominada pelos USA.
«Esse ano de 1962, foi para mim e para a minha geração, o ano de todos perigos. Numa cinzenta madrugada vi a PIDE invadir a minha casa e prender o meu pai (...)»
Anos depois, já estudante universitário, no prolongar da noite depois das reuniões dos Jovens Democratas de Aveiro no restaurante «Zé Biça», juntava-me em casa com alguns dos meus companheiros a ouvir a gravação – apanhada nas ondas livres da rádio pelo meu pai –, do longo e histórico discurso de Fidel que nos enchia a alma de vigor e esperança.
E foi a entoação da sua voz que primeiro me voltou à memória, ao saber da sua morte:
«A palavra de Cuba está apoiada por um povo inteiro; a palavra da representação de Cuba, ali onde falou para os povos e para a história, estava apoiada por um povo inteiro. Por isso a nossa palavra tem valor, por isso tem valor aos olhos do mundo, por isso tem valor perante a história! Porque os que lá falaram contra a nossa pátria as suas mentiras, fizeram-no apenas para repetir os slogans criminosos dos seus amos. E detrás das palavras vazias dos impugnadores da pátria cubana, não havia um povo; detrás estavam os assassinos de operários e de estudantes, de camponeses; detrás estava o mais corrompido, o pior das nossas nações irmãs. Povo não, mas ausência de povo, vazio de povo! Até quando terão a desvergonha e cinismo de falar de democracia? Até quando estarão usando, até desgastar essa coitada palavra, infeliz palavra de «democracia representativa? Representativa só da vontade do imperialismo, representativa só da exploração, representativa só da traição; democracia que é democracia da ausência de povo.»
«Se aquilo é democracia, o que é isto? Se aquilo onde existe a exploração do homem, se aquilo onde os homens são descriminados por motivo da raça, se aquilo onde os pobres são miseravelmente explorados e maltratados é democracia, o que é, então, isto? Se a democracia quer dizer governo do povo, então o que é isto?».
Esse ano de 1962, foi para mim e para a minha geração, o ano de todos perigos. Numa cinzenta madrugada vi a PIDE invadir a minha casa e prender o meu pai (no mesmo dia foram também presos Mário Sacramento, João Sarabando, Figueiredo Leite e outros democratas de Aveiro), agudizou-se a guerra colonial em Angola que rapidamente abriu novas frentes na Guiné e em Moçambique, e o risco de sobrevivência da Humanidade esticou-se ao máximo com a «Crise dos mísseis», em Cuba.
É difícil descrever às novas gerações a tensão então vivida. Nunca, desde aí, houve a sensação palpável de guerra nuclear eminente, vivida em horas de medo e angústia que contagiava até os sectores mais apáticos de um pobre e pequeno país da ponta mais ocidental da Europa, quase isolado do mundo.
O fim da crise despertou um suspiro de alívio embora não tivesse acabado com o clima de tensão permanente da Guerra Fria.
Se a URSS retirou os mísseis de Cuba, os USA tiraram os seus da Turquia, mas a soberania da ilha ficou garantida. Apesar do resultado, em alguns meios da esquerda, censurou-se o aventureirismo de Khrushchev que, independentemente das razões aduzidas, podia ter originado uma catástrofe mundial inimaginável, aquilo que se costuma considerar como um «desfecho não dialéctico da História».
A «heterodoxa» vitória da guerrilha da Sierra Maestra e o apoio popular que despertou, fez pensar poder ser repetida noutros países, nomeadamente na América Latina, dando origem ao que se chamou de «guevarismo». Despertar «um, cem, mil Vietnames», na palavra do seu protagonista maior, o famoso «Che», cuja morte, quando chefiava a guerrilha na Bolívia, chorei, numa noite em Coimbra, nos degraus da minha «República» com alguns amigos próximos.
A guerrilha cubana e a tese «guevarista» inspirou algumas tentativas fracassadas de tomada de poder (tendo talvez influenciado o falhado ataque ao quartel de Beja na noite da passagem de ano de 1961-62, liderado por Humberto Delgado, Manuel Serra, Varela Gomes, Edmundo Pedro e outros), por subestimação das diferentes condições objectivas e subjectivas nos diversos países onde foi tentada, não conseguindo despertar a mobilização popular, condição essencial para a vitória.
Nessa época, um livro editado no Brasil arranjado na «Unitas», cooperativa estudantil livreira onde se conseguiam obras proibidas, fez-me perceber melhor as razões desse fracasso. Chamava-se “Opções da Revolução na América Latina” e tinha um autor – Miguel Urbano Rodrigues – que imaginei brasileiro, argentino ou chileno, e só mais tarde soube ser português e irmão de Urbano Tavares Rodrigues, acabando por ter a honra de ser seu amigo.
Cuba atravessou grandes dificuldades, mas mesmo quando o apoio da URSS e do «Leste Europeu» desabou deixando a ilha num ainda maior isolamento, a sua vontade não cedeu. E, se houve pobreza, ela foi justamente distribuída por todos, sem que se observasse um aumento de milionários ou de salários obscenos com dificuldades de declaração ao fisco. De resto, o único milionário em Cuba é Fidel, segundo a revista Forbes que contabilizou como fortuna pessoal todas as empresas públicas cubanas, num bom exemplo de como se mente descaradamente para manipular a opinião pública.
Não se pode saber como seria Cuba sem o bloqueio que foi levado a um grau extremo e ainda hoje se mantém. Mas sabe-se que não se pode, com honestidade, fazer quaisquer juízos de valor sobre o desenvolvimento da economia cubana sem falar dele. E foi precisamente isso que fizeram Diogo Queiroz de Andrade, num ressabiado editorial do Público de 27 de Novembro, intitulado «Adiós, Ditador», e João Miguel Tavares, homem de direita que se diz «sério», na sua crónica, «Repitam comigo: Fidel é um ditador», no Público de 29 de Novembro.
«De resto, a mesma "democracia representativa" tão invocada para criticar Cuba, é mandada às urtigas pelos USA quando os resultados eleitorais na América Latina põem em causa os seus interesses.»
Acusações cheias de bílis, como seria de esperar vindas desse lado do espectro político nacional. Mas nem uma só palavra sobre o bloqueio. Nada. Textos que não ficarão para a História, para nenhuma história, a não ser a do jornalismo propagandístico cheio de preconceitos e falsidades.
O «Ocidente», que apelida Fidel de ditador e clama por democracia, não tem o menor pejo em reduzi-la à expressão mais formal e minimalista, esvaziando-a da participação popular e impondo regras distorcidas (50% ou menos de votantes nos USA; em Cuba, embora o voto não seja obrigatório, mais de 90% votam). De resto, a mesma «democracia representativa» tão invocada para criticar Cuba, é mandada às urtigas pelos USA quando os resultados eleitorais na América Latina põem em causa os seus interesses.
O governo socialista de Allende, que alcançou o poder no Chile através de actos eleitorais internacionalmente validados, foi derrubado pelo sangrento golpe militar de Pinochet, patrocinado pela CIA. Hugo Chavez, vencedor das eleições na Venezuela, presidente de um governo que nacionalizou o petróleo, foi momentaneamente apeado por um frustrado golpe militar apoiado pelos USA, que deu ainda tempo ao governo espanhol de Aznar para «meter a pata na poça» reconhecendo os golpistas, pondo a nu o seu desrespeito pela democracia e pela legalidade internacional.
«Só não há golpes nos Estados Unidos, porque lá não há nenhuma embaixada dos USA…» - diz uma velha piada latino-americana.
Toda esta ingerência golpista financiada pelo grande capital, veio, de resto, abafar a esperança numa via eleitoral e pacífica de transição para uma sociedade socialista, (que sempre interessou à esquerda) tornando mais compreensíveis as medidas tomadas por Fidel contra os participantes em conspirações e golpes por estarem «tan cerca de los Estados Unidos», o país que mais guerras de agressão desencadeou no último século.
As massivas manifestações de pesar do povo cubano pela perda do seu «Comandante», são o reflexo da justiça social e dos direitos colectivos alcançados, e do empenho revolucionário que, sob a sua direcção, garantiu trabalho, saúde, ensino, alojamento e segurança na velhice para todos, em condições de extremas dificuldades políticas e económicas que se prolongaram por décadas, sob permanente ataque dos que, sendo mais ricos, cortam esses direitos aos trabalhadores dizendo que «não são sustentáveis».
E por muito que repitam a palavra «ditador», tentando colá-la à generosa e heróica vida de Fidel, qualquer comparação com os incensados líderes europeus ou dos USA – sempre mergulhados em negociatas e tráfico de influências –, apenas os reduz à pequenez da sua verdadeira dimensão.
Podemos perguntar, como Fidel na «Segunda Declaração» atrás citada: «Até quando terão a desvergonha e cinismo de falar de democracia? Até quando estarão usando, até desgastar essa coitada palavra, infeliz palavra de "democracia representativa"?»
A democracia deve reflectir, com verdade, o voto e a vontade do povo. Não pode ser espartilhada em regras que a atraiçoam e lhe secam as virtudes ou abandonada quando incomoda os grandes interesses. Se for «representativa só da vontade do imperialismo, representativa só da exploração, representativa só da traição; democracia que é democracia da ausência de povo», não é democracia.
A verdade é que «El comandante» teve sempre «o povo inteiro atrás». Os que lhe chamam «ditador», não têm esse privilégio nem essa dignidade.
A História o imortalizará.
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