As gémeas María Luisa e Valeska Jeannette viveram quase toda a sua vida em Itália, sob os nomes Adelia e María Beatriz, respectivamente. Nascidas em Abril de 1979, as filhas de María Soto Toro, então com 18 anos, foram imediatamente institucionalizadas num programa de amamentação artificial, por apresentarem um peso muito reduzido à nascença.
Uma assistente social, sem prévio aviso nem uma investigação sobre a situação, decidiu que a mãe não tinha condições económicas para criá-las. Como aconteceu a milhares de outras crianças durante a ditadura de Pinochet, María Luisa e Valeska Jeannette foram entregues para adopção, de maneira ilegal. Em 2022, a justiça investigava já o desaparecimento de 50 mil crianças no Chile.
Confrontada com o facto quando tentou ver as suas filhas, María Soto dirigiu-se ao Tribunal de Menores de Talcahuano para tentar recuperá-las, mas aí recebeu a notícia que viria a marcar a sua vida: as gémeas tinham sido enviadas para Itália e jamais regressariam. Seria o início de décadas de buscas, durante as quais se veio a juntar à organização Hijos y Madres del Silencio, que ajuda vítimas de adopções forçadas e tráficos de menores no Chile.
«Olá, o meu filho encontrou uma correspondência com o teu ADN em myheritage.com. Gostaria de saber se poderíamos ser parentes. Fui adoptada por uma família italiana en 1979, com a minha irmã gémea. A minha mãe adoptiva disse-me que o meu nome original era Valeska Toro. Será que me conheces?»
Ady Rose Pagnottella (Valeska)
Em 2021, por recomendação da organização, enviou uma amostra do seu ADN para uma base de dados nos EUA. Quatro anos depois e ao fim de 46 anos de buscas, os seus esforços foram compensados. A 14 de Março recebeu uma mensagem de uma italiana cujo filho, ao fazer uma pesquisa para conhecer os seus antepassados, descobriu ter 35% de correspondência genética com o perfil de María Soto. Estava quebrado quase meio século de isolamento.
María Soto Toro quer rever as suas filhas e fazê-lo no Chile, para que conheçam o pai e a terra em que nasceram, sem que tenha posses para o fazer por sua conta. Depois de tantos anos sem desistir, não vai parar agora. María vai a Santiago, à capital do país, para que, como diz numa comovente entrevista, «o Governo, o Estado, para quem foi tão fácil arrebatar as minhas filhas dos meus braços, tome a seu cargo» o reencontro com as suas meninas e com os cinco netos que agora descobre ter em Itália.
A organização chilena Hijos y Madres del Silencio, que este fim-de-semana realizou o seu V Congresso Nacional no Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago do Chile, em paralelo com o V Congresso Internacional sobre o Tráfico de Crianças para Adopções Ilegais, estima que, entre os anos 50 e 90, sobretudo entre 1973 e 1990 (durante a ditadura fascista de Augusto Pinochet), cerca de 20 mil crianças tenham sido roubadas (por instituições católicas ou as autoridades políticas e sociais do regime) às famílias para alimentar a indústria internacional de adopções, tendo como destino principal os países ricos da Europa.
A ditadura fascista e a sua sombra
«A ditadura chilena era profundamente classista», explicava, em 2024, Karen Alfaro, uma investigadora da Universidad Austral de Chile, ao Guardian. No fundo, o fascismo chileno estabeleceu «um sistema de desenvolvimento económico», baseado no neo-liberalismo, que se sustentava «à custa da eugenia contra as classes mais baixas». As «assistentes sociais eram pagas para emitirem falsas denúncias de abandono, médicos e enfermeiros eram pagos para emitirem certidões de nascimento que diziam que o bebé tinha morrido à nascença, enquanto os juízes eram pagos para aprovarem a transferência da custódia».
Alejandro Quezada, fundador da organização Chilean Adoptees Worldwide, numa outra reportagem realizada pelo Guardian, desta feita em 2021, aprofunda um pouco a caracterização das práticas da ditadura chilena: «para além de as vítimas serem pobres, muitas delas eram também membros da comunidade indígena Mapuche, um grupo que há muito é perseguido».
A ditadura fascista caiu há quase 35 anos mas a sua sombra mantém-se sobre a sociedade chilena actual, que ainda não conseguiu livrar-se da Constituição pinochetista (sucessivamente emendada, mas que continua a ser a base jurídica da sociedade). Subsiste também o neoliberalismo agressivo aplicado pelo fascismo, que justifica a permanência de práticas abusivas e mesmo ilegais que retiram crianças às suas mães naturais para alimentar o negócio das adopções, maioritariamente na Europa.
Contribui para uma boa ideia
Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz.
O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.
Contribui aqui