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|luta antifascista

Lutas Sociais no Distrito de Santarém (Apontamento)

Para além de dar conta dum conjunto de acções e lutas no distrito de Santarém, durante a ditadura fascista, este texto pretende relevar a importância da preservação da memória histórica para a continuidade das lutas do presente.  

Créditos / entrelinhasentregente.blogspot

Com a colecção de dados históricos que aqui se apresentarão, podemos, desde logo, apreender que as conquistas dos povos não se fazem da noite para o dia. Por vezes, para maiores avanços, os recuos são incontornáveis, permitindo a reorganização e o reforço. A Revolução do 25 de Abril de 1974 foi o resultado de todo um processo de lutas e de sofrimento, de afirmações e de contradições. Esse extraordinário marco histórico não é o final de uma História, que se quer em movimento progressivo, sem retornos às obscuridades da ditadura fascista.

O governo fascista foi o governo dos monopólios e dos latifundiários. Grande parte dos latifúndios eram território do Ribatejo. A contradição entre classes sociais assume, ali, uma agudeza idiossincrática ao proletariado rural, e, por isso, terreno mais que fértil para o brotar de duras batalhas contra a carestia de vida e por condições de trabalho dignas. 

Natural de Coruche, Manuel Ferreira Quartel, que viria a ser um destacado militante comunista, em 1917, descreve, desta forma, a vida do proletariado rural:

«No inverno, à hora em que os nossos exploradores se deitam, temos nós que levantar-nos para aquecer o magro caldo que nos há-de servir de refeição ao almoço. –  E quantas vezes não temos que sair dos tugúrios que habitamos, calcando o gelo a pé descalço ou debaixo de tempestades terríveis, ocasiões em que a própria natureza nos convida ao repouso, passando um dia inteiro com os farrapos encharcados para auferir uns míseros cobres com que temos de pagar o caldo que há pouco foi aquecido, o qual, quando chega a ser comido, já está, quase sempre, frio como o próprio gelo que calcamos. (...) Vem o verão. Debaixo de um sol abrasador, muitas ocasiões, asfixiados pelo calor, caímos redondamente, sem sentidos. Dias há, que apenas repousamos, em cada 24 horas, duas, três ou quatro, o máximo; e trabalhos há que executamos arriscadíssimos, tais como tiragens de cortiça, poda de arvoredo, ceifas de trigo, etc. Em qualquer destes trabalhos andamos sujeitos a decepar um pé, mão ou dedos, ou sujeito(s) a uma queda que nos vitime ou nos impossibilite do trabalho três, quatro, cinco semanas e mais.»1

Estas condições de vida miseráveis perpetuaram-se nas décadas seguintes. Melhorando em alguns aspectos graças às lutas dos trabalhadores. É de dar nota que, ao contrário dos trabalhadores da indústria e do comércio, que tinham conquistado o horário de 8 horas, em 1919, durante a I República, os trabalhadores do campo viriam a conquistar esse direito apenas em 1962, durante a ditadura fascista. 

As lutas do passado servem de mote à agitação das massas no presente (seja ele qual for) e são semente para conquistas futuras, que florescem regadas a muito suor, sangue e lágrimas. Nas vésperas da ditadura militar (iniciada em 1926), em 1924, Quartel dirige-se aos trabalhadores rurais de Coruche, em O Comunista, do qual foi redactor principal:

«Fez este mês 13 anos que a classe rural do concelho de Coruche, conseguiu, devido a um colossal movimento grevista vitorioso, sacudir um pouco a grilheta de escravo, que havia séculos a manietava e a libertou um pouco mais daquela escravidão a que estava submetida, que mais pareciam os rurais servos da gleba do tempo do feudalismo, que trabalhadores livres.»2

«As lutas do passado servem de mote à agitação das massas no presente (seja ele qual for) e são semente para conquistas futuras, que florescem regadas a muito suor, sangue e lágrimas.»

Entre 1923 e 1926, as comemorações do 1.º de Maio, que, desde o séc. XIX até aos dias de hoje, representam importantes jornadas de luta, sofrem duras vagas de repressão. Era transversal ao país a impossibilidade de fazer referência ao PCP nos comícios comemorativos, sendo essa uma condição para a participação de representantes das várias organizações de trabalhadores – os trabalhadores tinham de comemorar segundo as imposições dos patrões. No distrito de Santarém, em 1924, há comícios em Abrantes, Tomar e Torres Novas. Em 1925, há comícios em Santarém e em Torres Novas, onde, nesta última localidade, arruaceiros se infiltraram entre a assistência com o intuito de gorar a luta dos trabalhadores que aquela efeméride representa. Em 1926, o número de comemorações do 1.º de Maio com envergadura, a nível nacional, reduziu-se, e, no distrito de Santarém não existiram.3

A 28 de Maio, desse mesmo ano, uma ditadura militar dá início a um período de 48 anos de opressão fascista.

A repressão não aniquilou a luta dos trabalhadores. Por exemplo, em Março de 1935, os agricultores do Cartaxo manifestam-se contra a Federação Vinícola e destroem a propaganda da União Nacional, o partido único do regime que, à época, já se autodenominava de «Estado Novo» – rótulo que, hoje em dia, serve de identificação a vários produtos de branqueamento do fascismo.

É indesmentível a intensificação da luta, a partir da década de 1940, em grande parte proporcionada pela reorganização de 1940/41 do PCP, que resultou no seu reforço, permitindo o fortalecimento das suas organizações nas empresas, ampliando-se as vias de esclarecimento, unificando a classe operária. O ascenso da luta antifascista é notório. 

«Ao contrário dos trabalhadores da indústria e do comércio, que tinham conquistado o horário de 8 horas, em 1919, durante a I República, os trabalhadores do campo viriam a conquistar esse direito apenas em 1962, durante a ditadura fascista.»

O governo fascista apoia a Alemanha nazi, enviando alimentos e outras mercadorias, enquanto o povo passa fome e vê as suas condições de vida e de trabalho agravadas. Pelo pão, e contra esse envio de géneros para alimentar o nazi-fascismo, surgem poderosos movimentos de massas. Em 1943, a população de Espinheiro-Alcanena mobiliza-se, toca o sino a rebate e impede a saída do azeite; os camponeses de três ranchos em Almeirim manifestam-se, exigindo aumento salarial. Em 1944, os camponeses da Golegã e de Riachos param uma semana, exigindo mais pão; os camponeses de Espinheiro e Monsanto (Alcanena) organizam um protesto contra a falta de géneros; os operários agrícolas do Vale de Santarém declaram-se em greve contra as novas condições de trabalho; os operários agrícolas de Alpiarça exigem novas condições de trabalho. Quando, finalmente, a Alemanha nazi é derrotada, em 1945, as populações de Almeirim, Alpiarça e Santarém comemoram, clamando por democracia, eleições livres e a libertação dos presos políticos.

A luta de massas prossegue com a força que só o povo tem, não se limitando ao operariado agrícola. Em 1946, os mineiros de carvão em Rio Maior concentram-se em protesto contra a falta de géneros; comissões de mulheres da Azinhaga, Alcanena e Chamusca apresentam às autoridades um protesto contra a falta de géneros. Também as mulheres de Vale de Cavalos e Tomar, nesse mesmo ano, exigem o pão que é delas por direito. Em 1949, operários têxteis, entre os quais mais de 100 mulheres, concentram-se no sindicato, em Tomar, exigindo que seja dada posse ao legítimo presidente eleito em Assembleia-Geral. Estes são apenas alguns exemplos das batalhas reivindicativas dum povo amordaçado e analfabeto, de homens que só serviam para trabalhar, de mulheres sem direitos e escravizadas pelos costumes patrocinados por uma igreja bafienta e cúmplice do regime, de crianças com fome e sem infância. Do lado oposto da luta de classes, a ínfima parte detentora do capital, refastelados no conforto das suas casas, com tempo para o ócio e dinheiro para luxos que, para eles, tal como para alguns hoje, valiam mais que a vida humana.

Em 1950, em Alcanena, o desemprego era de 70%. A importação de borracha para o calçado leva a que os curtidores dessa localidade obriguem o sindicato a protestar. Em 1952, os operários agrícolas de Alpiarça, Almeirim e Samora Correia conseguem aumento do salário. Em 1954, 300 operários agrícolas de Benavente, unidos na praça de jorna, arrancam aos agrários um aumento de salário para o trabalho nos meloais e nos milhos. Outros 100, nesse mesmo ano, em Salvaterra de Magos, conquistam o aumento do salário. A luta vale a pena e as grandiosas acções de luta da década de 50 estão aí para o provar. As jornadas de luta do final desta década, a partir de 1957, ganham uma maior intensidade que desemboca na conquista das 8 horas de trabalho no campo, em 1962, pondo fim ao horário de trabalho medieval, dito de «sol a sol». O Couço, Coruche e Alpiarça são localidades que tiveram papel decisivo na discussão, na organização, no desenvolvimento e direcção da histórica luta das 8 horas.

«Em 1957 foi elaborado um caderno reivindicativo com três pontos, a reivindicar junto do Instituto Nacional do Trabalho (INT) e dos agrários:

Trabalho garantido;

Salário mínimo de 30$00 para o homem e 20$00 para a mulher;

Horário das 8 horas de trabalho.

Com o desenvolvimento da discussão e da luta, a exigência das 8 horas – a reivindicação mais sentida – ganha grande prioridade em relação aos pontos 1 e 2 do caderno. Multiplicaram-se as reuniões e plenários, a formação de Comissões de Unidade. Em 1960 foi formada uma Comissão Coordenadora da luta com membros de outras comissões dos três distritos do Alentejo, do Litoral Alentejano e do Ribatejo (Couço/Coruche). As condições amadureciam para o arranque final da luta

No entanto, nenhuma conquista dos trabalhadores pode ser tida como dado adquirido. As lutas por melhores condições de vida e de trabalho continuam, como continua a opressão e a fome. As lutas intensificam-se e o dia do trabalhador, ao longo dos vários anos, dá-lhes o invólucro para relevar o significado. No 1.º de Maio de 1963, operários agrícolas e da construção civil do Couço faltam em massa ao trabalho e confraternizam na aldeia. Em 1965, para comemorar o 1.º de Maio, em Alpiarça, há greves dos operários agrícolas e da construção civil; também no Cartaxo, os operários da fábrica Moli, fazem greve para comemorar o dia do trabalhador; em Santarém, a greve é feita na maioria das fábricas. 

As mulheres vão assumindo progressivamente um papel mais activo na luta antifascista, catalisadas pela indignação em relação à sua condição de escravas do lar e objectos de função reprodutiva. Em 1970, com perto de 100 pessoas, realiza-se um colóquio para comemorar o Dia Internacional da Mulher – em 1971, são 200 as pessoas que assistem a um colóquio com o mesmo mote, também em Santarém. Em 1973, em Alpiarça, é com uma greve geral de trabalhadoras de vários sectores que se comemora o Dia Internacional da Mulher.

Nas vésperas do 25 de Abril, em Fevereiro de 1974, Torres Novas é palco de greves nas suas maiores empresas, operários das oficinas da Empresa Claras, da Fábrica Costa Nery e da Fábrica Metalúrgica do Nicho paralisam por melhores condições de trabalho. Também na Metalúrgica Duarte Ferreira, no Tramagal, a greve visa melhores condições de trabalho. Em Março, um abaixo-assinado dos tratoristas do concelho de Alpiarça exige um aumento do salário, como o exigem, usando a greve como instrumento, os operários da Sociedade Industrial de Concentrados, na Golegã, e os trabalhadores da Fábrica Efatex, no Cartaxo.

O distrito de Santarém foi palco de importantes lutas antifascistas, tal como hoje é espaço de intervenção por melhores condições de vida. Muitas lutas ficaram por referir, e uma pesquisa mais aprofundada traria à tona outras tantas4, no entanto, o principal objectivo deste texto, como já se apontou, é realçar que, tanto ontem como hoje, a luta por uma vida melhor, por uma sociedade mais justa, é um caminho íngreme, demorado e doloroso, com a necessidade de um extremo empenho e coragem para enfrentar as forças que nos querem travar o passo.

«O distrito de Santarém foi palco de importantes lutas antifascistas, tal como hoje é espaço de intervenção por melhores condições de vida.»

As casas não começam a ser construídas pelo telhado. Sem a organização e mobilização das massas, as conquistas que melhoram a vida dos povos ficam mais difíceis de serem atingidas. Mas também é preciso conteúdo para que as formas de luta tenham efeito, e esse conteúdo é conseguido através da organização e empenho que muitas mulheres e homens, sob a égide do que é justo, tiveram (e têm) nas várias fases da história, conhecendo as realidades concretas do povo, mostrando soluções estruturadas e fundamentadas – não enveredando por meros remendos superficiais, instantâneos e voláteis. 

Começámos por citar Manuel Ferreira Quartel, e acabamos este artigo também com uma citação sua, que julgamos ser verdadeira hoje, como o era há mais de 100 anos:

«Pois bem: tudo conquistaremos, se, por ventura, a nossa acção for unificada, isto é, se deixarmos de andar desunidos, se em vez de formarmos as nossas queixas aqui e além, aos dois e ou três, isoladamente, nos juntarmos, como um só homem, (...)5, para num entendimento comum convertermos em realidade, amanhã, o que hoje não passa de uma aspiração.»

  • 1. Quartel, M. F. (1917). É preciso despertar (À Classe Rural). Germinal n.º 17-18.
  • 2.  Quartel, M. F. (1924). Aos trabalhadores rurais de Coruche. O Comunista, Ano I, nº 21.
  • 3.  Cf. Fonseca, C. (1990). O 1.º de Maio em Portugal. 1890-1990. Crónica de um Século. Edições Antígona.
  • 4. A participação de indivíduos do distrito de Santarém nas eleições presidenciais de 1969 (ou as de 1958, em que um natural do distrito, Humberto Delgado, teve um papel fundamental de combate ao regime) ou no III Congresso da Oposição Democrática, em 1973, em Aveiro, seriam pontos a abordar numa investigação mais ampla e aprofundada.
  • 5. Omitimos «numa força poderosa dentro das nossas Associações de Classe», para dar um carácter mais universal à citação, subscrevendo a sua validade tanto no particular como no geral. Quartel, M. F. (1917). É preciso despertar (À Classe Rural). Germinal n.º 17-18.

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