Quando, em Outubro passado, dei uma volta por alguns dos chamados jornais de referência europeus como o Público, o El País, o Le Monde, o la Reppublica, o The Times ou o Die Zeit, que entre si têm algumas diferenças de orientação, a estranha uniformidade estava montada: a extrema-direita ia subir à custa da queda assinalável dos partidos «tradicionais» (sem exclusão de ninguém dos leques partidários), o nacionalismo subiria (termo manhoso que já nem englobava o eurocepticismo, menos ainda a rejeição das políticas de austeridade neoliberais), a xenofobia seria a reacção generalizada à crise dos emigrantes iniciada em 2005 e o anti-islamismo expressaria a rejeição do terrorismo.
Sobre outras questões poderemos reflectir noutra altura, mas a anunciada viragem à direita na Europa já não se verificou por duas vezes. Já tinha tremido quando, no final do ano passado, na Áustria, nas eleições presidenciais da Áustria, o anterior presidente dos Verdes, Van der Bellen, europeísta convicto, obteve, à segunda volta, 53,6% dos votos, contra os 46,4% do candidato da extrema-direita, Norbert Hofer.
Não querendo ignorar elevadas votações da extrema-direita em alguns países europeus, agora, os resultados das legislativas na Holanda confirmam a derrapagem dessa pretensa previsão, sendo de prever que o mesmo aconteça nas eleições de Abril/Maio em França e de Setembro na Alemanha.
A operação de lançamento da extrema-direita operada pelos grandes grupos económicos que detêm a posse dos grandes meios de comunicação social não foi, porém, uma aposta irreflectida. É-lhes interessante para agora e para um futuro.
«Sobre outras questões poderemos reflectir noutra altura, mas a anunciada viragem à direita na Europa já não se verificou por duas vezes.»
Preparam esse futuro de uma crise mais profunda onde a extrema-direita teria maiorias significativas por ter sabido aproveitar-se dos descontentamentos populares resultantes das políticas que esses mesmos grupos económicos e as instituições comunitárias que comandam levam a cabo. E a esquerda seria vítima de uma deslocação de votos para o centro. A extrema-direita teria o caminho facilitado se a esquerda não assumisse as diferenças que geram reais alternativas, rompendo com as políticas presentes e indo ao encontro das reivindicações populares.
Como aqui referimos no mês passado, «a esquerda, que justamente disso se reclama, tem prosseguido o combate contra as derivas comunitárias há muitos anos, prevendo acontecimentos e retirando lições do percurso de austeridade, da perda de soberania, do afastamento entre eleitores e dirigentes não eleitos das estruturas comunitárias, do agravamento das desigualdades entre países e em cada país, e do arrastamento de todos para agressões contra países terceiros que provocaram novos surtos migratórios», e contribuindo dessa forma para se credibilizar junto das camadas mais atingidas por essas políticas e conter a progressão da extrema-direita.
O resultado destas eleições na Holanda traduziu-se em razoáveis mudanças das representações parlamentares, como foram revelando as sucessivas sondagens.
O bloco de centro-direita que governa a Holanda foi formado até aqui pelo Partido Popular pela Liberdade e pela Democracia (VVD), de Mark Rutte, de direita, apoiante desta UE, fiel executante da sua política de austeridade e muito restritivo para com a imigração, e o Partido Trabalhista (PvdA), partido social-democrata, de centro, de Lodewijk Asscher, que alinhou com o seu parceiro de direita nas políticas de austeridade e cumprimento de outras orientações negativas da UE, como a eliminação de direitos sociais e de degradação dos padrões de vida da classe trabalhadora e reformados, e suscitando receios xenófobos. Ambos os partidos no governo foram penalizados com uma baixa assinalável da votação e representação parlamentar – o VVD e o PvdA, particularmente este, que passou de 38 para 9 deputados… Aguarda-se que Jeroen Dijsselbloem, ministro das Finanças deste partido trabalhista (!!!) retire as consequências e se demita de presidente do Eurogrupo, não esquecendo os portugueses a sanha com que os atacou.
Mesmo que o VVD tenha sido mais votado que o PVV, de extrema-direita, contrariando expectativas que tinham sido empoladas pela comunicação social, a sua queda foi de 41 para 33 deputados. Não tendo, semanas antes, garantida votação superior ao PVV e arriscando não ter papel relevante num governo saído destas eleições, o VVD captou para si slogans xenófobos e anti-islâmicos e beneficiou da confrontação com Erdogan. Isto depois de ter perdido o referendo em que os holandeses recusaram um tratado de associação com a Ucrânia.
De qualquer forma, o PVV, de Geerte Wilders, de extrema-direita, teve votação inferior às penúltimas eleições, passando de 24 para 20. Nessas eleições foi fortemente penalizado por ter provocado a queda de um governo minoritário do VVD, que apoiou na sua criação, ficando nas eleições seguintes com apenas 9 deputados. Isto é, o PVV agora recuperou apenas 11 dos 15 deputados que perdera. Geerte Wilders foi aliás dirigente do VVV, com Mark Rutte, de onde saiu para formar o PVV.
«se quisermos falar de viragens, em vez da viragem à direita que nos andaram a vender (...), devemos falar, sim, de viragem à esquerda»
Os partidos considerados do centro, no seu conjunto (PvdA, CDA, D66, CU, 50+) passaram de 70 para 52 deputados. Os de direita (VVD e UNL) passaram de 43 para 33. E os de extrema-direita (PVV e SGP) passaram de 18 para 20.
No seu conjunto, os vários partidos que se reclamam da esquerda (o Partido Socialista-SP, a Esquerda Verde-GL, o PvdD e o Denk) passaram de 21 para 33 deputados.
Portanto, se quisermos falar de viragens, em vez da viragem à direita que nos andaram a vender, e apesar da desproporção entre os dois grupos de partidos, devemos falar, sim, de viragem à esquerda.
É evidente que – mesmo que o PVV ficasse como o partido mais votado e com mais deputados – teria dificuldade em encontrar parceiros de coligação, isto porque, aparentemente, até agora, ninguém queria governar com o PVV.
O termo «populismo» foi usado na comunicação social em termos bem distintos dos que estão na sua origem a partir de situações na América Latina nos anos 30-60. Nestes casos, líderes carismáticos criaram a ilusão de uma relação directa com o «povo», que iludia o papel essencial do mundo empresarial, e arregimentava sindicatos, retirando-lhes o seu carácter de classe. Como as palavras, por si, não chegaram para manter a estabilidade dessa relação, os líderes populistas promoveram políticas sociais mais ou menos pontuais dirigidas às camadas sociais mais desfavorecidas e à classe média urbana. Em alguns casos apareceram claramente ligados à industrialização e urbanização, pondo em causa as oligarquias rurais que concentravam em si o poder e continham o crescimento económico.
Mas agora são os críticos das políticas desta integração europeia, da manutenção do euro, do pacto orçamental e também das políticas de austeridade que são «populistas»; são os que se batem contra as gritantes assimetrias sociais, contra a pobreza e a fome que são «populistas». Isto é, a esquerda que abraça estes objectivos seria «populista».
«A questão da UE, de estar nela ou não estar, vive de receios e muito pouco debate público pluralista.»
Como referimos atrás, a extrema-direita em vários países, para cumprir o papel que os grandes grupos económicos lhe destinam em futuras situações de profundas crises, que levem as populações a contestar abertamente o status quo e as suas instituições, terá que assumir alguns desses objectivos. Que o não fizesse é que seria de estranhar… Por isso, a comunicação social dominante passou a designar os seus líderes e partidos também como «populistas» e, para depreciar a esquerda, num golpe de grande desonestidade intelectual, a falar em populismos de «esquerda» e de «direita». Aos populistas de «direita» tratam carinhosamente com tendo saído do declínio dos partidos tradicionais e aos de «esquerda» como vivendo dos sonhos caídos com o muro de Berlim…
É neste quadro político e de resultados eleitorais que Mark Rutte irá ter agora a tarefa de formar uma nova coligação que sustente no parlamento o futuro governo.
Uma coisa porém é certa. Os eleitores votaram por coisas que levam a sério: a soberania, o retomar do controlo sobre os seus destinos, melhores condições de remuneração e de vida, e melhores serviços públicos de saúde, educação e segurança social. Aquilo a que alguns chamam «proteccionismo» é um conjunto de questões vitais, muito racional.
A questão da UE, de estar nela ou não estar, vive de receios e muito pouco debate público pluralista. À primeira impressão, mesmo assim, os holandeses não estão satisfeitos com o rumo da União Europeia. Depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, e da euforia pós-moderna que se apoderou da intelligentsia do sistema capitalista, a UE avançou com Schengen e a supressão das fronteiras internas e com o euro como moeda única, o que criou instabilidade entre os holandeses. Para eles, as fronteiras externas não estiveram controladas, como mostrou a crise dos refugiados. A Zona Euro parece-lhes muito instável e como um projecto político carente de racionalidade económica destinado simplesmente a assegurar o domínio alemão.
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