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Cheque-Psicólogo: Ensino Superior

É apenas uma ilusão, pois não só esta medida não promove uma real defesa dos direitos da população, como ainda perpetua a desigualdade de oportunidades já existente. 

Créditos / noticias.up.pt

Contexto: «O Cheque-Psicólogo foi uma medida criada pelo Ministério da Juventude e Modernização e Ministério da Educação para facilitar o acesso aos serviços prestados por psicólogos, pelos estudantes de instituições de ensino superior portuguesas, visando a promoção da sua saúde mental e bem-estar, o seu desenvolvimento e adaptação em situações com potencial impacto na sua vida académica.

O apoio contempla a atribuição de 12 Cheques-Psicólogo (i.e., 12 sessões com um profissional da Psicologia).»

Porque é que esta não é a solução?

Há vários fatores que mostram como esta medida falha no seu objetivo principal. Falha tanto com a população-alvo que pretende atingir, os estudantes do ensino superior, como com os próprios profissionais da psicologia. 

Em primeiro lugar, esta medida não resolve os problemas reais da falta de acesso a cuidados de saúde mental no nosso país. A atribuição de apenas 12 consultas de psicologia por pessoa é insuficiente para haver um processo de acompanhamento psicológico eficaz. O que a medida defende é que, no final dessas sessões, se o profissional achar necessário, pode encaminhar o paciente para um acompanhamento no SNS. Ora, atualmente, que condições é que o SNS oferece ao nível da saúde mental? Uma lista de espera de meses para uma primeira consulta, com uma falta de profissionais demarcada, encontrando-se os mesmos sobrecarregados, desgastados e desvalorizados na sua profissão. Não seria prioritário um maior investimento no SNS, que conseguisse satisfazer as necessidades da população ao nível da saúde mental?  Não deveria ser antes este o caminho a ser feito? Sendo para isso essencial a contratação de mais psicólogos e a valorização das suas carreiras. Parece que este governo prefere colocar «pensos rápidos» nas situações em vez de resolver os problemas estruturais da saúde no país.

A par disto, há ainda outra grande falha nesta medida do «cheque-psicólogo», que se prende com o facto de excluir vários estudantes, nomeadamente estudantes que apresentem sintomas com duração superior a um ano e seis meses, que apresentem consumo problemático de substâncias e comportamentos aditivos, estudantes com diagnóstico de perturbação da personalidade, entre outros. Como assim, estamos a excluir precisamente os alunos que mais necessitam de apoio? Como é que estes estudantes obtêm ajuda? Uma medida que exclui em vez de incluir é por si só anticonstitucional, na medida em que vai contra o acesso universal e geral a cuidados de saúde que a Constituição defende. O governo justifica este critério de exclusão dizendo que é suposto ser uma medida preventiva. Então vamos ignorar todos os estudantes que já estão num estado mais avançado de problemas de saúde mental e que já precisam de uma intervenção? Onde estava a prevenção destes casos? O país claramente falhou a estes jovens e parece querer continuar a falhar, ao não resolver os problemas de base da saúde em Portugal.

Ao nível dos profissionais da psicologia encontramos também graves problemas com esta medida. Um deles prende-se com os critérios definidos pela Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) para a adesão dos psicólogos, que define como requisito obrigatório o psicólogo possuir a especialidade em Psicologia Clínica e da Saúde e/ou Psicologia da Educação. Ora sabemos que a obtenção desta especialidade envolve uma série de etapas que são difíceis e morosas de se concretizar, sendo poucos os profissionais especialistas e tendo, na sua maioria, uma idade mais avançada. Ou seja, à partida há uma exclusão quase automática de psicólogos mais novos, em início de carreira, que sabemos que podem ser tão ou mais competentes, e que são os que sofrem uma maior precariedade a nível laboral.

«Então vamos ignorar todos os estudantes que já estão num estado mais avançado de problemas de saúde mental e que já precisam de uma intervenção? Onde estava a prevenção destes casos? O país claramente falhou a estes jovens e parece querer continuar a falhar, ao não resolver os problemas de base da saúde em Portugal.»

Por outro lado, e sublinhando outro dos problemas que esta medida acarreta para os profissionais, o valor das sessões e a forma de pagamento das mesmas mantém as já conhecidas dificuldades dos profissionais desta área: instabilidade salarial, vínculos precários, falsos recibos verdes e incentivo ao empreendedorismo. Ou seja, em vez de haver uma melhoria das condições de trabalho dos profissionais e uma valorização da sua profissão, o governo escolhe manter o status quo, não contratando profissionais, mas sim aproveitando-se dos seus serviços de forma temporária e pouco estável.

Esta medida pressupõe ainda que seja o próprio psicólogo a definir, com base em apenas duas sessões iniciais, se o estudante cumpre ou não os requisitos para usufruir do «cheque». Como é que um profissional avalia o cumprimento desses critérios tão vagamente definidos? Se o estudante apresentar ideação suicida, mas sem ainda nenhuma tentativa, por exemplo, isto confere risco de suicídio? E estas situações tão sensíveis são possíveis de avaliar em apenas duas sessões? Esta decisão difícil de tomar acaba por terminar em um de dois cenários, ambos insuficientes: se o estudante cumprir os critérios, tem direito apenas às restantes 10 sessões de acompanhamento; se não cumprir, «é encaminhado para outros serviços de apoio». A questão coloca-se mais uma vez: que serviços de apoio? O problema central que continua a não ser resolvido é a incapacidade de resposta do SNS aos cuidados de saúde mental. 

No fundo, o «cheque-psicólogo», tal como tantas outras medidas equivalentes, como o «cheque-dentista», por exemplo, é apresentado numa ótica de «igualdade de oportunidades», como uma fachada de propósito social em que estamos a possibilitar o acesso a cuidados de saúde a pessoas que não o conseguem pagar. No entanto, esta é apenas uma ilusão, pois não só esta medida não promove uma real defesa dos direitos da população, como ainda perpetua a desigualdade de oportunidades já existente. Porque um estudante que não tenha recursos financeiros está sujeito a ter de se candidatar a esta medida, ser submetido a uma avaliação de duas sessões em que pode acabar sem qualquer acompanhamento, e só depois pode eventualmente usufruir de 10 sessões de psicologia, sendo por si só insuficientes para a maioria das questões psicológicas. Enquanto isso, um estudante de uma classe social e económica mais elevada não tem qualquer dificuldade, pois tem um acesso garantido a qualquer serviço de saúde mental, basta conseguir pagá-lo. Só um SNS público, universal e gratuito combate as reais desigualdades e permite um acesso justo e digno aos cuidados de saúde, neste caso, de saúde mental.


 A autora escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90)

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