O desporto, e particularmente o futebol, é visto como uma poderosa ferramenta de coesão. Apesar da sua natureza competitiva e da criação de rivalidades, é reconhecido o seu papel no fomento de um sentimento de pertença, seja na aproximação em torno de um clube/cor/atleta, na experiência partilhada dos espectadores com a prática que se traduz numa comunhão entre indivíduos que extravasa outro tipo de vínculos. Esta visão esbate-se quando se percebe existir uma relação entre o desporto e a violência doméstica.
Durante o Campeonato Europeu de futebol masculino de 2024, uma competição que fomenta uma identidade comum entre todos os adeptos de futebol dos diferentes países participantes, diversas associações inglesas de protecção de mulheres vítimas de violência, como a Trevi ou a Next Chapter, lançaram campanhas para aumentar a consciência sobre o crescimento de agressões e outros crimes que as mulheres sofrem durante estas competições às mãos dos seus parceiros. Também em Portugal, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima fez uma parceria com o Futebol Clube do Porto, em 2024, com o lançamento de uma camisola sob o lema «O roxo é para vestir e não para marcar», em véspera do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres.
Esta percepção da correlação entre as duas questões tem merecido algum estudo. Num artigo científico1 publicado pela Universidade de Lancaster, em 2014, em que se analisou os incidentes de violência doméstica no Condado de Lancashire e os dias em que a Inglaterra jogou nos Mundiais de 2002 a 2010. O que o estudo descobriu é que em dias de jogo os casos de violência doméstica aumentavam 26% em casos de vitória ou empate da selecção e 38% em caso de derrota. Ainda se notou um aumento de 11% de casos no dia a seguir ao jogo, atribuído maioritariamente a incidentes quando os parceiros só regressam a casa de madrugada ou de manhã. Durante o mês de Junho de 2010, numa área sensivelmente com a mesma população da Área Metropolitana do Porto, o dia com maior incidentes ocorreu no dia em que a Inglaterra foi eliminada pela Alemanha nos oitavos-de-final do Mundial, com 140 ocorrências, e estas são apenas as que foram reportadas à polícia, que, como se sabe, é um número muito abaixo do real.
Um outro estudo2 feito a mando do governo escocês sobre a matéria explorou possíveis causas para o fenómeno. Um dos elos de ligação entre casos de violência no futebol e em violência doméstica é o consumo de álcool, e o estudo sublinha como este pode amplificar emoções, como a agressividade, embora se refira que a violência, sobretudo a violência doméstica, subjaz motivos mais profundos na dinâmica das relações. Um deles é a forma como homens agressores encaram a sua «masculinidade», em que o controlo e a agressividade fazem parte constitutiva da mesma, e como ela se exprime no contexto da violência doméstica quando essa masculinidade é reforçada ou frustrada quando assistem a jogos.
«Durante o mês de Junho de 2010, numa área sensivelmente com a mesma população da Área Metropolitana do Porto, o dia com maior incidentes ocorreu no dia em que a Inglaterra foi eliminada pela Alemanha nos oitavos-de-final do Mundial, com 140 ocorrências, e estas são apenas as que foram reportadas à polícia, que, como se sabe, é um número muito abaixo do real.»
É esta identificação com o futebol que se torna parte fulcral da vida para muitos, que liga esta identidade masculina ao desporto, e o torna num lugar onde o sexismo é reforçado. Algo que é fácil de notar na linguagem usada, por exemplo, seja na simples caracterização de jogadores aos cânticos entoados contra os adversários. O estudo, apesar de não fazer conclusões contundentes por falta de dados e outros estudos sobre o tema, lança luz que a forma como se vive e respira o futebol pode reforçar comportamentos e mentalidades que estão nas causas da violência doméstica e que, nos dias de jogos, cria-se um clima propício para o aumento de agressões.
Para além dos motivos elencados pelo estudo, há uma ideia muito fomentada na cultura futebolística que também contribuirá para esta triste realidade. Existe no desporto uma grande romantização em torno da importância do mesmo, colocando o futebol como acima de tudo. Os adeptos reveem-se na mítica frase de Bill Shankly, lendário treinador do Liverpool, quando afirmou que o futebol não é um caso de vida ou de morte, é muito mais sério que isso. A paixão e devoção dedicada a jogadores, clubes e selecções é quase sempre pintada de forma positiva, escamoteando que, para muitos, esta forma de encarar o futebol nada tem de romântico e é tão real como carne, colocando a modalidade acima de tudo o resto, amigos, família, e parceiros incluído. Quando o bem-estar pessoal depende do sucesso em campo, a arbitrariedade de um resultado paira ameaçadoramente sobre milhares de vítimas de violência doméstica.
Para lá das campanhas de alerta sobre a questão, a que este artigo pretende também dar o seu contributo, é necessário tomar medidas activas para que o futebol fique desassociado à violência doméstica, e até possa influenciar positivamente a sua erradicação. Pegando no estudo realizado, torna-se evidente que é preciso continuar a abrir o desporto às mulheres. No campo, nas linhas laterais, nas bancadas e na imprensa, a mulher tem vindo a reclamar o seu espaço, e isso é imprescindível para transformar a cultura do jogo, para que na tal identificação com o futebol não ocorra a perpetuação de mentalidade e práticas sexistas.
Para além disso, como adepto de futebol, acho que a importância do mesmo na sociedade tem que perder centralidade. A identificação, prática e apoio devem servir para unir e integrar todos os quantos queiram estar envolvidos na modalidade. Quando a vivência do futebol é motivo ou justificação para a divisão, agressividade gratuita e demais comportamentos anti-sociais, então este perde a sua beleza. Não há golo ou troféu que esteja acima da dignidade da pessoa humana. Bonito de se ver é quando o Manel e a Maria vão à bola.
- 1. Kirby, S., Francis, B., & O’Flaherty, R. (2014). «Can the FIFA World Cup Football (Soccer) Tournament Be Associated with an Increase in Domestic Abuse?» Journal of Research in Crime and Delinquency, 51(3), 259-276.
- 2. Crowley, Annie & Brooks, Oona & Lombard, Nancy. (2014). REPORT No.6 /2014 «Football and Domestic Abuse: A Literature Review
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