Há dias assim. Dias de alma vaga. Em que não sabemos bem por onde começar. A Vida avassala-nos quando a não vemos como mercadoria. Não vale a pena repetir sempre as mesmas fórmulas se as circunstâncias mudaram, nem vamos abdicar de imaginar uma vez que seja só porque é mais fácil.
Devia ser algo como isto que teria em mente a cozinheira de uma Colectividade de Fontanelas, onde se comia polvo às quintas-feiras, a quem um dia ouvi exclamar: nem sempre nem nunca, expressão que repetia a propósito e a despropósito de quase tudo e que por estes dias me tem servido de inspiração e guia.
Vejamos: não vamos fingir que é possível estar sempre em festa, mas não concluamos daí que nunca a fruamos. A mecânica é esta e na sua aparente simplicidade encerra mais sentidos do que parece.
Novembro é o mês dos mortos e de todos os santos, no calendário tradicional, de que vamos perdendo a memória, talvez por estarmos todos um bocadinho mortos, o que não quer dizer que não façamos um esforço suplementar para respirar.
Inspira: saiu recentemente o número 3 da importante revista do movimento surrealista Phala (A Phala), um almanaque tendo por temas a ruptura inaugural e corpo/transgressão dirigida por Sérgio Lima. Está à venda na Paralelo W, na Rua dos Correeiros, mesmo ali ao pé do escritório do senhor Bernardo Soares.
Sai agora esta revista com um complemento português em que o grande homenageado é surpreendentemente Teixeira de Pascoaes, o grande descritor de sonhos, não o da incompreendida saudade, mas o das imagens surrealizantes, tão criativo que até inventou que teria nascido no dia dos mortos, que como é sabido, calha no dia a seguir ao Dia de São Nunca.
Para quem me continua a acompanhar: nesse mesmo dia 2, ainda em clave surrealista, estou a planear ir ao Nimas ver um raro filme do Alejandro Jodorowski, El Topo, deste grande artista chileno que poucos conhecerão como cineasta, embora alguns o prezem autor e até apreciem o seu maravilhoso livro A Dança da Realidade, que o pintor Délio Vargas me ofereceu, e talvez mais uns quantos tenham já lido a fantástica série de banda desenhada que assinou com Moebius, o Incal.
E por falar em BD, não esquecer o sempre anualmente imperdível Festival da Amadora. Só até 6 de Novembro. Em vários espaços da Cidade do Vasco Granja. Por estes dias também vale a pena visitar o bar galeria Irreal, ali ao Poço dos Negros onde há poesia e vinho, que sempre falta fazem.
Até Dezembro temos ainda a Trienal de Arquitectura de Lisboa, que este ano se denomina «A Forma da Forma», uma fórmula rigorosa de sugerir problemas complexos. A programação é rica, variada e profunda, com conferências, debates e visitas de estudo. Muitos motivos de reflexão em torno dos problemas urbanos, suas formas e conteúdos.
Por exemplo, eu acredito que a forma como chego às experiências culturais também faz parte delas. Assim, se vejo um filme ou uma peça de teatro no chamado centro da cidade e se saio de lá com a alma cheia, porque é que tenho de esperar uma hora para apanhar a carreira da rede da madrugada para a Damaia, que vem insuportavelmente cheia de gente e onde se não pode respirar?
Já inventaram até camionetas especiais onde o condutor vai hermeticamente isolado da população que vai deixando de tirar bilhete com a continuação e agravamento desta tortura. Todas as noites se repete isto. Mais valia que fosse nunca. Mas é sempre.
Talvez porque se pense que o pudor de andar de transportes públicos se não transformará em revolta, ou porque os suburbanos não mereçam melhor destino para já. Ou, mais prosaicamente, os gestores da Carris estejam preocupados em poupar em carreiras para poder investir em outras coisas: ovnis, se calhar. Ou nas suas carreiras. E de noite andam os noctívagos e as senhoras da limpeza, os que foram ao teatro e os que trabalham por turnos e não têm mais-valia para uberizar por aí.
Isto tudo a propósito da Arquitectura, porque a construção das cidades nos diz constantemente que há sempre sítios onde não é suposto pertencermos. O centro só nos quer como consumidores, não é? Talvez por isto, de certeza contra isto, é que tenhamos o bom orgulho tuga de contarmos com enormes arquitectos humanistas, arquitectos de Abril. Salvé Álvaro Siza!
Como não me quero deixar ir na melancolia outonal vou ficar por aqui, a ouvir o programa de rádio Vidro Azul, na Radar, do Ricardo Mariano, todas as segundas da meia-noite às duas. Parece que até dá para ouvir a qualquer hora pedindo à Senhora Dona Internet.
Era bom que muitas coisas nas nossas vidas não fossem nunca assim. Mas teremos sempre de fazer por isso.
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