A 14 de Julho, Dia Nacional de França, uma data carregada de simbolismo político, um atropelamento criminoso de mais de uma centena de pessoas foi levado a cabo por um francês de origem tunisina que ali vivia e vendia gelados, um «métèque», termo depreciativo de emigrante sem direitos imortalizado nos anos 70 pelo cantor Georges Moustaki. Contudo, ao contrário dos autores dos atentados de Paris, este «fundamentalista», comia carne de porco sem ligar a rituais islâmicos, mais virado para a bebida e o sexo, com cadastro na polícia por violência doméstica e delitos comuns, tendo andado em tratamento psiquiátrico. De resto, não deixou citações do Islão ou berros de Allahu Akbar, nem sequer um rabisco escrito contra infiéis de qualquer espécie, parecendo reflectir a fúria patológica de uma mente perturbada por outras causas.
Seguiu-se uma sequência de actos de terror na Alemanha, que pareceram reproduzir um mimetismo doentio e desviante de jovens emigrantes ou descendentes (muçulmanos ou não), que mereceram reservas, do governo alemão, quanto à ligação com organizações terroristas. Quer o emigrante afegão, que agrediu à machadada passageiros de um comboio na Baviera, quer o germano-iraniano mentalmente perturbado, alvo de bullying na escola e recém-convertido ao cristianismo, que matou a tiro jovens inocentes em Munique, parecem enquadrar-se melhor em atentados isolados de mentes desestruturadas, «à americana», e não são ainda claros os contornos do atentado do emigrante sírio que se fez explodir num restaurante em Ansbach, também ele com graves problemas psiquiátricos que já o tinham levado anteriormente a duas tentativas falhadas de suicídio.
E antes mesmo do mais recente e bárbaro assassinato, em França, do padre Jacques Hamel, executado por dois jovens que se declararam seguidores do Daesh, um deles com «um grande historial de perturbações psiquiátricas», já o governo francês tinha dado passos para acelerar o ambiente de guerra ao melhor estilo de Bush, «islamizando» o acto enlouquecido do «métèque» pouco religioso de Nice (a quem foi atribuída uma tão ridícula como súbita radicalização express), aproveitando para anunciar o prolongamento do estado de emergência e mais bombardeamentos que, nos dias seguintes, e segundo o governo Sírio, provocaram a morte de, pelo menos, 150 civis.
Na realidade há uma base patológica em muitos destes actos brutais, reflectindo a existência de grande tensão e revolta nas mais jovens gerações de árabe-descendentes. É essa revolta que aflora no traço comum de perturbações psíquicas orientadas para uma suicidária vindicta contra os países onde nasceram e/ou onde vivem. E é a essa complexa instabilidade e mal-estar que o governo francês se propõe responder com menos liberdades, menos direitos, menos democracia e mais bombas.
Parece pois haver uma firme vontade de usar o medo do terrorismo (patológico ou «verdadeiro») para prolongar o ambiente de tensão, seguindo uma estratégia facilitadora de uma deriva ainda mais autoritária da direita.
«Alguns antecedentes bastante esquecidos da "Liberté, Égalité, Fraternité" vivida por esses franceses de segunda, poderão, talvez, contribuir para uma melhor compreensão da violência actual.»
Sarkozy, que propõe a detenção de centenas de pessoas de uma nebulosa «lista S» e a deportação de cerca de 10 mil «suspeitos» constantes de outra mais abrangente, fazendo lembrar os tempos mais negros do anti-semitismo europeu, é bem a demonstração deste jogo perigoso em que o «centro» e direita dita «moderada» acabam por fazer a mesma política da Frente Nacional de Le Pen, que tanto afirmam combater. Assim, para o governo de Hollande como para a direita francesa, a melhor solução é manter a comunidade franco-magrebina ou árabe (e semelhantes), continuamente sob suspeita, mais policiada, mais revistada, mais interrogada, mais humilhada, mais desempregada, mais revoltada e, finalmente, mais presa ou mais expulsa.
Pode-se perguntar se não será essa uma lógica virada do avesso. Se não é exactamente por serem marginalizados, humilhados e perseguidos, que jovens de origem árabe ou magrebina se tornam mais atraídos pelo Daesh e/ou atreitos a acessos de loucura.
Alguns antecedentes bastante esquecidos da Liberté, Égalité, Fraternité vivida por esses franceses de segunda, poderão, talvez, contribuir para uma melhor compreensão da violência actual.
Um artigo de Ludo Simbille, de 2013 – Bavures policières mortelles: trente ans de quasi impunité?, analisa um inquérito à actuação da polícia francesa: «Em quatro décadas, 500 a 1000 pessoas morreram directa ou indirectamente na sequência de operações policiais. Perfil-tipo dos mortos: jovens dos bairros populares, de origem magrebina ou do norte de África».
Segundo os autores, encontram-se facilmente notícias de casos de asfixia, pancadas na cabeça, balas nas costas, mas também de utilização brutal de «armas não letais» como gás e o taser (uma pistola de choque eléctrico) e interrogatórios agressivos, causando mortes apresentadas, por vezes, como consequência de doenças «naturais». Como o caso, denunciado pelo movimento Vérité et justice pour Ali Ziri, de um velho magrebino de 68 anos, morto em Argenteuil em 2009 durante um interrogatório com a técnica de pliage (com o preso ajoelhado e as mão algemadas atrás, a cabeça é forçada a flectir até aos joelhos, o que o impede de gritar e respirar), cuja autópsia indicou «paragem cardio-circulatória multifuncional» e 27 hematomas em diversas partes do corpo. Ou o de Mahamadou Marega, morto em 2010 durante uma intervenção policial após ter sido encharcado de gás lacrimogéneo num elevador e electrocutado com 17 choques de taser.
Inúmeras queixas, ao longo dos anos, por mortes que ficam impunes, despertam manifestações de raiva no seio de comunidade magrebina e árabe. Mas para perceber que é o próprio aparelho de estado francês a deixar marcas de revolta na memória dessas minorias, é útil recuar mais.
A 17 de Outubro de 1961, em Paris, vinte mil argelinos ou com «aspecto mediterrânico» (a polícia guiou-se apenas pelo aspecto) que viviam na região, manifestam-se contra um recolher obrigatório só a eles dirigido, decretado pelo então chefe da polícia, Maurice Papon, nomeado pelo governo de De Gaulle. A manifestação é ferozmente reprimida, milhares de manifestantes são presos no Palácio dos Desportos e no Estádio Pierre Coubertin e aí espancados. Centenas (entre 150 e 400) são mortos a tiro, à pancada, afogados no Sena ou enforcados. Dias depois ainda há cadáveres a boiar no Sena.
O massacre é abafado pelos media e passa a ser um tabu do regime. Um livro de Paulette Péju e um documentário de Jacques Paniel sobre o massacre são apreendidos e retirados do mercado. Em 1966, De Gaulle aprova uma amnistia para «os actos cometidos na área de operações policiais», impedindo que se venha a fazer justiça.
Papon, condecorado com a Legião de Honra, só trinta anos depois será condenado, num outro processo, por ter cometido crimes contra a Humanidade, deportando Judeus para campos de extermínio nazi (ver Wikipedia – Massacre de Paris 1961).
A verdade é que por trás dos atentados contra vítimas inocentes que têm atingido algumas cidades europeias, existe um quotidiano de humilhação e violência, de discriminação social e económica de minorias étnicas, que corta cerce qualquer sentido de integração no país onde vivem, afectando mais as camadas mais jovens que se sentem sem referências nem raízes. É aí que a extrema-direita islâmica encontra terreno fácil para eventuais recrutamentos. É também num tecido social desestruturado que a extrema-direita «branca» arranja militantes e fomenta a violência e a xenofobia.
Travar esse círculo vicioso criado por políticas reaccionárias, socialmente desintegradoras e responsáveis por sucessivas guerras de agressão neo-colonial é a única forma de combater eficazmente o terrorismo. E essa é, também, a melhor manifestação de respeito para com as suas vítimas.
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