Paro a olhar uma montra de relógios num dia abafado de Verão, ajeitando o boné e olhando por cima dos óculos a tentar ler a fila de pequenas letras alinhadas de um mostrador. E o que vejo faz-me pensar nas palavras vulgares que vão entrando na rotina dos dias, ganhando as «novas qualidades» de que falam Camões (e Marx), acabando por marcar uma época em que, por serem tão repetidas, definem uma conotação temporal e ideológica, depois de esvaziadas do seu conteúdo.
Nessa floresta de enganos, o «rigor» e as «regras», conceitos frequentemente associados, têm um lugar de destaque, talvez por estabelecerem, a priori, uma ideia de honestidade cumpridora, limpa e exacta, pouco latina e muito germânica, a acreditar no que tantas vezes se ouve.
E aí começam as interrogações, porque esses estereótipos podem levar-nos a admirar o rigor com que alemães «normais» contabilizavam os judeus que amontoavam em vagões a caminho dos campos de extermínio, ou o rigor do registo clínico das bárbaras experiências que faziam com prisioneiros indefesos.
Contudo, já que estamos a falar de rigor, temos também de referir que o povo alemão não engoliu tão bem o Fuhrer como por vezes se diz, já que nunca o partido nazi conseguiu ter a maioria absoluta em eleições, e os que resistiram corajosamente à «Nova Ordem», sujeitos a torturas e ao sacrifício da própria vida, eram também alemães, a maioria dos quais de um grande partido operário, talvez por isso esquecidos na «História Ocidental» que costuma reduzir a resistência ao III Reich ao atentando bombista de um pequeno grupo de oficiais desesperados, já com a guerra perdida.
«A verdade é que as diversas formas de "rigor" e de "regras", da nova ordem neoliberal dos partidos do "arco do poder", acabaram por inquinar os nossos últimos anos»
De qualquer forma, a imagem do rigor e da ordem faz-nos pensar na precisão alemã e nos seus automóveis, no «carro do povo», o Volkswagen, que Hitler prometeu a cada família para ganhar votos, deixando o cumprimento da promessa para depois da guerra, pelo que, os que nele acreditaram, acabaram sem carro, sem casa, sem comida e, muitos, sem vida.
Ora foi a Volkswagen com «das Auto!» (o automóvel!) por baixo – na publicitária arrogância do orgulho germânico que nem a traduz –, uma das marcas a abalar essa fama de rigor, ao aldrabar de forma manhosa as regras do controlo de poluição, fazendo com que nos testes tudo estivesse bem, sem se importar depois de gasear os humanos à vontade.
«Das» Poluição. «Das» Falsificação. «Das» Aldrabice. Uma habilidade alemã com um cheiro a vigarice do Sul.
A esses maus hábitos hunos, podemos juntar outras traficâncias, como a da Siemens nas olimpíadas gregas e da Ferrostaal com chorudas «comissões» para impingir submarinos, que também não seguiram, propriamente, as boas regras do rigor e da decência. Mas aí foram os hunos a untar as mãos aos seus amigalhaços do Sul, o que poderá ter significado quanto ao papel histórico assumido pelas respectivas «elites»: umas compram o direito de pernada, outras vendem-se por um prato de lentilhas dizendo que «não há alternativa».
A verdade é que as diversas formas de «rigor» e de «regras», da nova ordem neoliberal dos partidos do «arco do poder», acabaram por inquinar os nossos últimos anos: das «criativas» baixas do desemprego (apagando os que desistem, os que não se apresentam, os que não preenchem a burocracia ou os que fazem estágios sem interesse e sem saída), à promoção dos cinco anos de licenciatura a mestrado (aumentando, num ápice, o número de mestres); da diminuição dos cidadãos sem médico de família (apagando os que não foram ao Centro de Saúde durante três anos), à avaliação da produtividade cirúrgica só pelo número (sem diferenciar a extracção de uma unha de uma complexa operação ao fígado), ou à classificação dos institutos de investigação como o Centro de Estudos Clássicos de Lisboa (sem que, nos 16 membros do júri, houvesse um único especialista da área).
«É essa mesma mitologia do "rigor" e das "regras", apregoada pelos governos da troika e prolongada pela subserviência dos pequenos tentáculos das chefias intermédias, que faz lembrar a irracionalidade servil de Vichy»
E não podemos deixar de invocar os exemplos-mãe de todos os rigores: o das agências de rating (Fitch, Moody's, Standard & Poors) que deram o triplo A da máxima segurança a empresas de crédito e bancos americanos atafulhados de bolhas especulativas, dias antes de todos falirem com estrondo, ou o rigor com que o general Colin Powels, representante dos EUA na ONU, justificou a invasão do Iraque mostrando as fotografias de armas de destruição maciça que afinal não existiam, repetindo a forma como desencadearam a guerra ao Vietnam do Norte em alegada resposta a um ataque a navios americanos no famoso «incidente do Golfo de Tonkin» que, afinal, segundo os arquivos da National Security Agency tornados públicos, em 2005, também nunca aconteceu.
Quase tudo se acaba por saber ou reconhecer...anos depois!
Por isso, ainda vamos perceber o rigor do inédito «doping de Estado» com que a Rússia, apesar de já não ser vermelha (nem nada que se pareça), foi excluída dos Jogos Olímpicos do Rio.
Em meados de Julho, surgiu, na ordem do dia, o rigor dos 0,2% de desvio do défice, com ameaças da «europa» ao ex-bom aluno que timidamente ameaça desviar-se das «regras» e se desmancha em explicações. E embora o 3% do limite seja um numero etéreo e inexplicado, de um rigor sem rigor, violado pelos grandes com o ar displicente de quem pode e quer, é bom que a gentinha do Sul perceba como se joga esse jogo de domínio. Porque afinal, como dizia Müller, o cínico mas realista oficial SS da série Uma aldeia francesa da RTP 2, as regras devem servir a quem manda.
E é essa mesma mitologia do «rigor» e das «regras», apregoada pelos governos da troika e prolongada pela subserviência dos pequenos tentáculos das chefias intermédias, que faz lembrar a irracionalidade servil de Vichy.
Tal como então, a supervisionar um tempo de «exigência» cheio de números transviados e estatísticas marteladas, tivemos gente com perfil a condizer, como o suado «doutor» Relvas, das trinta e cinco equivalências; o competente engenheiro Sócrates, do inglês técnico ao domingo e das casas-mamarracho da Guarda; Passos Coelho, da Tecnoforma, formador em segurança do pessoal de aeródromos desactivados; Victor Constâncio, cujas primeiras palavras balbuciadas na infância, para espanto dos pais, foram «É preciso apertar o cinto», depois governador do Banco de Portugal que «vigiou» a fraudulenta falência do BPN e BPP e foi promovido para fazer o mesmo na «europa»; ou o seu sucessor Carlos Costa e o nosso ex-presidente Cavaco, que nos sossegaram a todos porque o BES estava sólido e entregue a boa gente, como os Espírito Santo, os donos disto tudo que puseram a «funcionar o Moedas», agora em funções na Comissão Europeia; ou Durão Barroso, antigo presidente da dita, que saltou para a administração da Goldman Sachs, o banco de piratas que «aldrabou» a (distraída) União Europeia nas contas da Grécia, irmão de armas do Deutch Bank (cujo maior accionista privado é um fundo da casa real do Qatar), multado por contornar as regras, o que nos faz voltar ao afamado rigor alemão.
«O que dizer do ex-presidente alemão, Christian Wulff, que se demitiu, em 2012, acusado de suborno e tráfico de influências? Rigor no desempenho do cargo? Um disfarçado latino?»
Mas não haverá, em tudo isto, um desvio genético dos morenos do Sul que contagia alguns arianos mais puros? Não existirá a marca de um povo que dizem depressivo ou bipolar e que tanto dá azo a ladrões como a gente do pelotão da frente dos que, na Europa, se esfolam mais horas a trabalhar, ao contrário do que afirma (com pouco rigor) a Big Merkel alemã, a quem o presidente Marcelo se apressou a prestar vassalagem?
E o que dizer do ex-presidente alemão, Christian Wulff, que se demitiu, em 2012, acusado de suborno e tráfico de influências? Rigor no desempenho do cargo? Um disfarçado latino?
Apesar do fenómeno parecer estar mais na essência do sistema do que numa sua pontual degenerescência, temos de convir que o contributo do ex-chanceler Schröder, ao saltar directamente do governo germânico para a empresa russa Gazprom, constituiu um estimulo para a actuação do «nosso» Durão Lusitano, proporcionando-lhe um lugar de relevo na gloriosa epopeia das maiores transumâncias do público para o privado, ultrapassando, de uma só penada, os ex-ministros Maria Luís e Paulo Portas, bem posicionados no ranking desta brilhante globalização.
Um leve encontrão, de um qualquer turista distraído, faz-me ajeitar os óculos e acordar dos oníricos ensaios sobre o rigor e as regras em que estava a desaguar, regressando a aspectos mais comezinhos do nosso tórrido Estio.
Mas, já agora, como o leitor pode querer comprar um relógio à prova de água, aconselho-o a não se fiar no rigor da referência «water resistant - 50 m», pensando que pode mergulhar com ele à vontade. Consulte o Google e verá que, conforme as regras definidas pela International Satandardization Organization (ISO 2281/2010), apenas pode tomar banho de chuveiro e, no máximo, dar umas braçadas à superfície. Para mergulhar, não dá. Nem a 1 metro. Acredite. O melhor é deixá-lo a seco. Por uma questão de rigor...
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