O eventual envolvimento dos EUA no golpe falhado na Turquia de 15 de Julho e as subsequentes conversações deste país com a Federação Russa, que incluíram uma nova atitude de Ancara em relação ao Presidente Bashar Al-Assad, criaram expectativas positivas que a posterior intervenção turca na Síria não parecem confirmar.
Importa ter em conta a agilidade da diplomacia russa para a paz na Síria mas também que os EUA são velhas raposas, capazes de fazer alguns pinotes, e os vínculos anteriores EUA/Turquia/NATO só dificilmente credibilizariam perspectivas iniciais positivas. E sobre Erdogan, há tanto tempo entre o atlantismo, o anti-secularismo e o terrorismo, a falta de credibilidade parece não ter a quem pedir meças…
Há mesmo comentadores que vão ao ponto de considerar as purgas nas Forças Armadas e na sociedade turcas como um engenhoso plano em que a CIA colaborou com Erdogan para afastar destes organismos todos os que se opunham a uma intervenção na Síria ou como a «mise-en-scène» de um falso golpe de Estado. Também há os comentadores que consideram que a Turquia está a fazer jogo duplo com a Rússia e os EUA para atingir os seus objectivos na Síria de criar um cinto de segurança interno no território sírio ao longo da fronteira sul com a Turquia.
Existem especialistas que perguntam o que é que Ancara fará depois lá. Enquanto as suas operações foram realizadas «sob o pretexto de lutar contra Daesh», existiu a especulação de que isso pouco teria a ver com o motivo real. A Turquia quer proteger-se da sua própria população curda e de ser obrigada a tratar os curdos com dignidade básica.
Henry Kamens, especialista em Ásia Central e do Cáucaso, escreveu no passado 28 de Agosto num artigo para o site do New Eastern Outlook, «a melhor maneira de conseguir isso é ajudar a criar um novo Estado curdo, como os EUA há muito tempo desejam, em termos tão favoráveis para a Turquia e os EUA, quanto possível». A estratégia norte-americana, segundo o autor, é «deixar os turcos ocuparem território na Síria, que de outra forma teriam caído nas mãos das Forças Curdas de Defesa Popular (YPG), apoiadas pelos EUA, que têm sido a ponta de lança para garantir ao Daesh o controlo das zonas fronteiriças. Isso também significa que um Estado curdo «legal» pode ser estabelecido no território ocupado por poderes «legais», ao invés de um Estado pária criado por terroristas, acrescenta.
«Para esta intervenção na Síria, o presidente turco conseguiu obter o apoio de Washington e "terá torneado quaisquer obstáculos que a Rússia ou o seu aliado sírio" poderiam criar a tal intervenção sem precedentes.»
A ofensiva militar, a que o autor chama «incursão turca ilegal num país soberano, apoiado por os EUA», é projectada para matar dois coelhos com uma cajadada: «como recompensa por ajudar a criar o novo Estado curdo patrocinado pelos EUA a Turquia fica com rédea livre para ir atrás dos curdos que controlam a área no momento», diz Kamens.
Do ponto de vista turco, os curdos estão a tentar roubar território turco. Do ponto de vista dos EUA, eles estão a ter sucesso com o regresso do Daesh e a criação de um Estado curdo contíguo, e não o Estado curdo imaginado pelos EUA.
O autor sugere que agora os EUA estão a usar os curdos como um meio de fazer regressar a Turquia ao redil. Explica que Ancara está preocupada com o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), com sede no seu território, que se estaria a tornar numa força política real, com o apoio da Síria e do Iraque. O autor sugere que, «ajudando os EUA a criar um Estado curdo controlado por curdos, poderia garantir que nenhuma parte da Turquia se tornasse desse estado (coisa que já esteve prevista em anteriores projectos de Curdistão desenhados pelos EUA)».
O movimento serve para reparar as relações com os EUA, ajudando a cumprir o seu plano e, ao mesmo tempo, não comprometeria a sua nova amizade com a Rússia, uma vez que está apenas lutando contra os terroristas, e não contra o governo sírio, que a Rússia apoia.
Essa solução garantiria o controle do comércio de petróleo regional e um pretexto para reduzir ainda mais os direitos dos curdos da Turquia. O autor também assinala o «timing suspeito» da ofensiva. «Ele está relacionado com as eleições nos Estados Unidos e dá um impulso para os EUA, o governo Obama e sucessor preferido de Obama, Hillary Clinton. Mas também dá aos militares turcos a luz verde para fazer o que eles têm esperado ansiosamente», afirma.
Uma visão semelhante é partilhada pela revista Newsweek, que também chama a atenção para a recente visita do vice-presidente Biden para Ancara, onde se encontrou com Recep Tayyip Erdogan em 23 de Agosto. «Talvez a maré esteja agora a subir em Washington, na sequência da reunião Erdogan-Putin (9 de Agosto)».
«A Casa Branca ajudou a preparar a visita de Biden com sua resposta ao atentado terrorista de 20 de Agosto num casamento em Gaziantep, que observou estarem os EUA com o povo turco e com eles defender a sua democracia em face de todas as formas de terrorismo». Para Kamens, os EUA têm agora de «aproveitar este momento» e «encontrar uma maneira de superar o impasse quanto à extradição do Sr. Gulen», caso contrário Ancara vai «cair nos braços de Putin (...)».
Para esta intervenção na Síria, o presidente turco conseguiu obter o apoio de Washington e «terá torneado quaisquer obstáculos que a Rússia ou o seu aliado sírio» poderiam criar a tal intervenção sem precedentes.
Aviões de guerra norte-americanos deram cobertura aérea a militantes sírios dirigidos por Ancara para tomarem ao Daesh a cidade fronteiriça de Jarablus. O vice-presidente dos EUA, Joe Biden, em Ancara, no primeiro dia do assalto prometeu apoio total de Washington à Operação «Escudo do Eufrates».
Erdogan disse que a operação teve como objectivos a «limpeza» da zona fronteiriça de terroristas do Daesh, bem como empurrar combatentes curdos anti-Daesh para o leste, através do Eufrates, para o seu reduto no Nordeste da Síria. A milícia curda, composta principalmente por Unidades de Protecção Popular (YPG), também conhecida como Forças Democráticas da Síria (SDF), tem até agora sido apoiada por Washington. O patrocínio americano pareceu ficar em dúvida esta semana, com Biden a emitir um aviso severo de que ele acabaria se os curdos não recuassem para leste.
Contrariando o eventual apoio russo a esta operação, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia afirmou que estava «muito preocupado» com a escalada militar da Turquia. As autoridades sírias foram mais longe e condenaram a implantação turca ao longo da fronteira uma «flagrante violação da soberania síria».
A Rússia e a Síria têm todo o direito em estar alarmadas. Apesar da retórica de Erdogan, alegando que a reconquista de Jarablus era «para derrotar terroristas» e «para proteger a integridade territorial da Síria», o facto inevitável é que as forças turcas, com o apoio dos EUA, já instalaram militantes sírios próximos de ambos no controle de uma cidade síria e território envolvente. A Turquia diz que quer estabelecer uma «zona segura» ao longo do lado sírio da fronteira que se estende por 100 quilómetros de extensão e 30 de profundidade. Não está claro se o exército turco vai ficar em território sírio para impor esta zona. Pode retirar-se e deixá-la entregue a militantes sírios apoiados por Ancara, incluindo os combatentes do chamado Exército Sírio Livre e combatentes turcomenos. Estes militantes estão supostamente em oposição aos jihadistas do Daesh, mas o seu principal objectivo é travar uma guerra contra o governo sírio do presidente Bashar al-Assad e os seus aliados estrangeiros - Rússia, Irão e Hezbollah.
Erdogan terá que clarificar para que lado cai em definitivo: ou para os EUA, para acabar com o regime sírio e transformar a Síria num novo Iraque, Afeganistão ou Líbia, ou juntar-se aos que querem contribuir para a paz na região e para o desenvolvimento, ombreando com a Síria, Irão, a Rússia e a China.
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