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Como beneficiam as grandes empresas desta crise?

Uma conjuntura adversa, onde os canais de distribuição se encontram restritos pelos mesmos do costume e não existem alternativas para contrabalançar as contas, afecta sobretudo os trabalhadores.

CréditosMário Caldeira / Lusa

Ao longo do surto de Covid-19, várias foram as empresas que se mobilizaram em verdadeiras campanhas filantrópicas para auxiliar os mais diversos países e sectores. É certo que, numa primeira análise, poderíamos facilmente concordar que este tipo de iniciativas são verdadeiras e genuínas acções sociais e que, de facto, nesta altura todos devemos ajudar a combater o dito inimigo comum.

Na Europa e nos EUA, multinacionais como a Unilever ou a Nestlé anunciaram importantes medidas de ajuda a sectores como a hotelaria, restauração e cafés, disponibilizando várias centenas de milhões de euros para este efeito. Dado o estado geral da pandemia, estas medidas parecem quase contraproducentes, tendo em conta que estes são os sectores que terão mais dificuldades em voltar à normalidade, com uma taxa de recuperação bastante lenta em consequência do forte impacto que sofreram. Se retirarmos o carácter solidário, não parece haver mais nenhum motivo para estas multinacionais lançarem este tipo de campanhas.

Todo esta aparente solidariedade até nos faz esquecer que no ano passado, a Nestlé, por exemplo, anunciou nos EUA o lay-off de 4000 pessoas a ser realizado até Outubro, tendo como pretexto a reestruturação da sua estrutura logística. Na altura, a Covid-19 não era uma opção argumentativa para o efeito. Já este ano, e apesar das adversidades, a empresa anunciou recentemente um crescimento de 4,3% nos primeiros três meses de 2020, salientando que se tratou do crescimento mais acentuado nos últimos cinco anos na Europa e nos EUA. Tudo isto manifestou-se recentemente numa subida importante das acções da empresa em bolsa de 1,4%.

«A ironia e o desconforto apenas surgem quando comparamos o tratamento e as condições laborais de que esses trabalhadores têm sido alvo nos últimos anos e os confrontamos com os rasgados elogios que têm recebido.»

Em Portugal, as parcas subidas da bolsa estão intimamente ligadas com a corrida aos supermercados e concentram-se, sobretudo, no sector da grande distribuição. Todos os dias somos recordados, pelas várias vias da comunicação social, que o seu contributo na situação actual é decisivo para o bom funcionamento do País. É, de facto, verdade que os trabalhadores do sector da distribuição alimentar têm desempenhado um papel de grande importância no decorrer da pandemia, e o agradecimento de que têm sido alvo é mais do que merecido.

A ironia e o desconforto apenas surgem quando comparamos o tratamento e as condições laborais de que esses trabalhadores têm sido alvo nos últimos anos e os confrontamos com os rasgados elogios que têm recebido. Há, presentemente, uma espécie de clarividência sobre a relevância do seu trabalho por parte de todos, que tanto jeito teria dado em lutas anteriores.

É certo que cadeias de distribuição, como a Jerónimo Martins, anunciam o pagamento de um prémio suplementar superior ao de anos anteriores. Contudo, é de lamentar que este benefício seja pontual e que seja preciso uma pandemia desta ordem de grandeza para enaltecer de forma mais significativa a força de trabalho.

Para além dos incentivos, outra das grandes bandeiras utilizadas pela grande distribuição contra a pandemia é a aposta na produção nacional. Basta fazermos uma pesquisa rápida nos sites das principais cadeias para encontrar percentagens elevadíssimas de fornecedores nacionais.

Algumas cadeias, como a Jerónimo Martins ou a Auchan, falam em números superiores a 80%. É importante salientar que esta bandeira não é nova. Desde meados do ano 2000 começámos a assistir a inúmeras campanhas e iniciativas de promoção de consumo de produtos de produção nacional, como é o caso do Movimento 560, criado em 2005 com o objectivo de promover marcas e produtos fabricados em Portugal.

Este movimento chegou a desenvolver uma campanha onde defendia que um cabaz de compras de 100 euros por mês de produtos portugueses teria efeitos muito positivos na economia, e que esta acção ajudaria mesmo a criar postos de trabalho!

«e no meio desta pandemia os números para a grande distribuição são positivos, por que motivo não se verificam números semelhantes do lado dos produtores?»

Agora, com a Covid-19, esta manobra de marketing ganha um peso substancialmente maior, dado o estado actual da economia. Todos sabemos que quanto melhor for passada esta mensagem pela grande distribuição, maior é a probabilidade de atrair consumidores mais patrióticos.

É verdade que a produção nacional se encontra num estado de franca debilidade e que os efeitos nefastos desta pandemia não auguram nada de bom para os próximos tempos. Para além do estado actual da economia também a apreensão quanto aos desenvolvimentos futuros é um factor de preocupação. Contudo, as elevadas percentagens de fornecedores nacionais descritas pela grande distribuição e os seus mais recentes resultados financeiros levantam uma questão: se no meio desta pandemia os números para a grande distribuição são positivos, por que motivo não se verificam números semelhantes do lado dos produtores?

É estranho como o aumento do consumo devido à pandemia se traduz apenas nos números da grande distribuição e não numa melhoria significativa das empresas da indústria alimentar nacional que são, em grande medida, os seus principais fornecedores.

Todos sabemos das sentenças desde há muito impostas pela grande distribuição aos produtores e que os obrigam a absorver uma boa parte do risco do negócio. Factores como os elevados prazos médios de pagamento a fornecedores, taxas e penalizações de venda, restrições de políticas de preço e repartição de lucro penalizam o agente produtor.
Em muitos casos, estas situações agravam-se tanto mais quanto maior for a dependência do produto de uma ou mais cadeias de distribuição.

«grupos de grande dimensão tem maior capacidade financeira para suportar prazos médios de pagamento maiores e têm, igualmente, maior capacidade negocial, o que os coloca em melhor posição para forçar a grande distribuição a partilhar o risco.»

Para além disso, o produtor tem muitas vezes que acompanhar preços e promoções e assumir quase na sua totalidade o valor do produto. Porventura, são estes os motivos (entre outros) que não nos permitem identificar quais os sectores ou empresas da indústria alimentar que conseguiram acompanhar o crescimento da grande distribuição e tenham apresentado igualmente bons resultados.

Como vimos no início, a nível internacional é mais fácil encontrar exemplos de empresas, como a Nestlé, que apresentaram índices de crescimento por via do aumento da procura. Sabemos que grupos de grande dimensão tem maior capacidade financeira para suportar prazos médios de pagamento maiores e têm, igualmente, maior capacidade negocial, o que os coloca em melhor posição para forçar a grande distribuição a partilhar o risco.

Analisando, à luz disto tudo, as medidas propostas por estas empresas tendo como principal objectivo revitalizar canais de distribuição como hotéis, restaurantes e cafés, estas parecem agora fazer mais sentido.

Mais do que uma acção solidária, os grupos económicos têm significativo interesse em reabilitar tão cedo quanto possível estes canais de distribuição, uma vez que eles representam um parceiro de negócio bem mais acessível, por apresentarem uma capacidade negocial mais baixa e em que o conjunto de critérios de negócio é estabelecido pelo vendedor e não pelo comprador: prazos de entrega, quantidades mínimas de encomenda, políticas de preços, etc.

Assim, tal como para as grandes multinacionais do sector alimentar, também para a produção nacional é importante ter um conjunto de canais de distribuição diversificado e que apresente características diferentes para que, desta forma, não fique refém da grande distribuição para o escoamento dos seus produtos.

«para a produção nacional é importante ter um conjunto de canais de distribuição diversificado e que apresente características diferentes para que, desta forma, não fique refém da grande distribuição para o escoamento dos seus produtos»

Já todos tínhamos percebido que, durante esta pandemia e nas empresas ligadas à grande distribuição, o esforço está a incidir fundamentalmente nos trabalhadores, em especial sobre os que têm vínculos laborais mais precários. Sabemos, igualmente, que teremos de lutar muito para impedir que os danos na vida das pessoas não sejam irreversíveis. Mas falta-nos perceber qual será, a longo prazo, o impacto de uma conjuntura adversa onde os canais de distribuição se encontram restritos pelos mesmos do costume e não existem alternativas para contrabalançar as contas nos trabalhadores das empresas de produção nacional.

No imediato, uma coisa já podemos constatar: fruto das exigências habituais das cadeias de distribuição e da ganância dos seus parceiros, assistimos com tristeza a casos como os da Avipronto, na Azambuja, ou o da Raporal, no Montijo, dois importantes fornecedores da grande distribuição, onde os trabalhadores se viram forçados a continuar a operar mesmo sem as condições mínimas de segurança e saúde no trabalho.


António Ribeiro é gestor de logística.

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