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Dilemas de uma (des)União

O confronto latente no seio da União Europeia (UE), fruto das suas próprias contradições, pode ser também uma operação de marketing dos governos reaccionários da Hungria e Polónia?

CréditosMPD01605 / CC BY-SA 2.0

No momento em que se discute o orçamento plurianual e a chamada «bazuca» financeira, é intenso o debate em torno do bloqueio ao consenso necessário para a sua aprovação, por parte da Hungria e da Polónia, que entraram em choque com a subjugação das transferências de Bruxelas ao programa de «protecção do orçamento da UE em caso de deficiências generalizadas no que diz respeito ao Estado de direito».

Independentemente da condenação de projectos políticos reaccionários, como os que estão em curso naqueles dois países, impõe-se a questão: o confronto, por parte das instituições da UE – que ameaça com fugas em frente – com as soberanias nacionais dos Estados-membros, pode conferir força à auto-promoção de governos e projectos de extrema-direita?

Veja-se que, se parece que na UE se negoceia com base na ideia de que se estivermos todos de acordo, então está tudo bem, não é menos gravoso o facto de estar presente, no discurso de diversos representantes de Estados-membros e das instituições da UE, o possível empreendimento de medidas para atacar ainda mais as soberanias nacionais.

São várias as frentes em que a problemática se coloca. Iniciou-se, na semana passada, a discussão em torno do Relatório Anual sobre o Estado de direito, elaborado pela Comissão Europeia (CE), que avaliou os Estados-membros, com vista à identificação de «debilidades» do respeito pelas normas democráticas.

A narrativa, segundo a CE, é a de manter um «diálogo permanente» para uma «compreensão mútua» sobre a «cultura do Estado de direito». A discussão do mérito de uma avaliação deste tipo pode ficar para outro momento, mas não se pode deixar de registar que este é mais um elemento de pressão sobre a soberania nacional.

Aliás, é esse o sentido das declarações dos responsáveis por este relatório, quando dizem que se trata de uma das várias ferramentas com que a UE pode pressionar os Estados-membros, a par de outras, como os processos de infracção promovidos pela CE junto do Tribunal de Justiça da UE, ou ainda o novo mecanismo que faz depender o financiamento comunitário de questões políticas internas dos Estados.

«Augusto Santos Silva não propõe soluções que passem pela preservação da soberania nacional, antes pelo contrário, abre a porta à possibilidade da criação de instrumentos que possam pôr em causa a regra do consenso para a aprovação do orçamento, que até agora tem sido respeitada.»

Em Portugal, o Governo consente com este caminho, como se conclui das declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros, que há dias afirmava, a propósito desta tentativa de bloqueio por parte da Hungria e da Polónia, que se deveria fazer «uma reflexão e um debate franco sobre as razões que levaram ao impasse, e o que é que pode superá-lo».

Augusto Santos Silva não propõe soluções que passem pela preservação da soberania nacional, antes pelo contrário, abre a porta à possibilidade da criação de instrumentos que possam pôr em causa a regra do consenso para a aprovação do orçamento, que até agora tem sido respeitada. Para o ministro, não há caminho possível que não tenha por base o acordo alcançado pelos líderes europeus em Julho e Novembro, entre o Parlamento Europeu e o Conselho da UE.

Também o primeiro-ministro, na sua intervenção desta segunda-feira na Universidade Católica, em Lisboa, sobre o plano da presidência portuguesa do Conselho da UE no primeiro semestre no próximo ano, afirmou a necessidade de se ultrapassar a divisão entre Estados-membros que querem «valores comuns» e os outros. Esboçando soluções que passam por «geometrias varáveis» de integração, António Costa parece admitir que a regra do consenso possa vir a ser abolida ou desconsiderada.

As decisões de consenso ou por unanimidade permitem que todos os Estados tenham o mesmo peso na tomada de decisões, uma vez que o seu voto pesa o mesmo, quer seja uma potência económica, ou não.

É neste quadro que, para fundamentar a possibilidade de se vir a pôr em causa as decisões por consenso, se somam os argumentos de que a UE poderá entrar em orçamento por duodécimos, e que será complexo, face a este tipo de bloqueio, reunir mais fundos para responder à actual crise.

Entre académicos, especialistas e estadistas, equacionam-se opções, como a de avançar com um Fundo de Recuperação que exclua os dois países, o que, na perspectiva de Alemanha e França, são «soluções práticas», como referiu o ministro francês dos Assuntos Europeus, Clément Beaune.

Nesse sentido, parece ficar cada vez mais exposta a verdadeira natureza da UE, que, para salvaguardar o directório das grandes potências e grandes grupos económicos, não hesita em aprofundar o federalismo e esmagar, ainda mais, as soberanias das nações que a compõem.

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