Com a interdição de adeptos aos jogos, tem passado despercebida a entrada em vigor da Portaria n.º 159/2020, que regula a figura do «cartão do adepto», criada com a Lei n.º 113/2019, um atentado às liberdades individuais e colectivas de todos nós.
A pretexto do combate à discriminação e à violência no desporto, estão a ser implementadas medidas securitárias que criam um estatuto de excepção aos adeptos, numa lógica que ultrapassa o fenómeno desportivo, e em nada combatem a dita discriminação e violência.
Este vigor legislativo surgiu o ano passado como forma de o Governo «mostrar serviço» após a invasão de elementos da Juve Leo às instalações de treino do Sporting em 2018 e, sobretudo, do seu exacerbamento mediático.
Como é sempre mais fácil responder pela via repressiva do que encontrar soluções que dêem resposta aos problemas de fundo, criaram-se medidas de controlo ainda mais apertadas do que as que já existiam.
Antes da implementação destas medidas, as chamadas claques estão obrigadas, para desenvolver a sua actividade normal, a constituírem-se enquanto associações formais, e a entregar os dados de todos os seus membros às forças de segurança, cenário que julgo ser único no panorama do movimento associativo.
Com as novas regras, além de serem criadas zonas condicionadas para estes adeptos, criou-se o cartão do adepto. Este cartão, pago pelo adepto, é o que permite o acesso às tais zonas condicionadas, seja ele pertencente a claques ou não.
«A ideia do cartão do adepto [...] já foi experimentada em diversos países e em todos eles falhou nos seus propósitos anunciados»
Se as regras que já vigoravam colocavam dúvidas sobre a sua eficácia na prevenção da violência, não se percebe como é que estas novas medidas, que apostam na marginalização, estigmatização e segregação de adeptos fará diferente. Aliás, existindo claques que aceitaram as normas da anterior lei de 2009, e outras não, percebe-se que não foram essas regras que alteraram comportamentos na massa de adeptos, à parte dos constrangimentos daí resultantes.
A ideia do cartão do adepto não é nova. Já foi experimentada em diversos países e em todos eles falhou nos seus propósitos anunciados, como aconteceu na Bélgica ou na Polónia onde já se reverteu a medida, tendo contribuído até com efeitos negativos, com o decréscimo de adeptos aos estádios, caso da Itália ou Turquia. O próprio Conselho da Europa já observou que estas medidas não resolvem quaisquer problemas de segurança, podendo até agravá-los.
E não se pense que estas zonas condicionadas servem para albergar e isolar perigosos hooligans de extrema-direita. A estas zonas está reservado o uso de megafones, instrumentos musicais, como os tambores, bandeiras e faixas superiores a 1x1m e qualquer material usados em coreografias.
No fundo, quem quiser criar animação e dar colorido a um jogo ou evento desportivo, tem que ter cartão e ser confinado. A associação entre esta massa de adeptos e criminosos é um estigma que não só empobrece o desporto, como a sociedade, em tempos onde o mesmo discurso cresce dirigido a outros cidadãos, grupos sociais e associações.
Na linha da frente contra esta medida têm estado os próprios adeptos, com destaque particular para a Associação Portuguesa de Defesa do Adepto (APDA).
A APDA e diversos grupos têm desenvolvido várias acções contra a instituição do cartão. Salienta-se a acção de 9 de Fevereiro, em que por todo o País e em todos os escalões do futebol, foram vistas faixas nos estádios dizendo: «Por todos lançamos o repto, contra o cartão do adepto!»; a 1 de Agosto, na final da Taça de Portugal de futebol masculino, nova onda de protesto nacional, inclusive durante o jogo; as reuniões de 21 de Setembro e 11 de Outubro, que juntaram representantes de dezenas de grupos em torno desta questão; e o processo que está na justiça para declarar a Portaria ilegal.
Sob o mote «Divididos nas cores, Unidos nos valores», combatem-se preconceitos e mostra-se que o desporto une mais do que separa.
Resumindo, o cartão do adepto é mais um ataque às nossas liberdades, que não resolve nenhum problema. Mas aí estão os adeptos a mostrar que a solução se encontra, nunca contra eles, mas envolvendo-os na discussão e decisão das políticas desportivas.
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