A morte do político israelita Shimon Peres, esta quarta-feira, fez troar pelo mundo epítetos que o pretendem vincar, na memória futura, como um dos justos: «artífice dos acordos de paz», «guerreiro da paz», «Nobel da Paz».
As notícias enumeram as personalidades que estarão presentes nas cerimónias fúnebres e, pelo meio, elogia-se algum aspecto da figura do que, já não estando entre nós, deteve pastas em vários ministérios, foi primeiro-ministro por três vezes e presidente do Estado sionista de 2007 a 2014. Mas há quem não esteja pelos ajustes e, com justa indignação, decida atirar uma pedrada a tal «pomba».
Numa peça ontem publicada no Middle East Monitor, intitulada «Shimon Peres: criminoso de guerra israelita cujas vítimas foram ignoradas pelo Ocidente», afirma-se que Peres «consubstancia a disparidade entre a imagem de Israel no Ocidente e a realidade das suas políticas sangrentas e coloniais na Palestina e na região».
Ali, não se estranha propriamente que, da longa carreira política de Peres, mais se enfatize o papel por ele assumido nas negociações que conduziram aos acordos de Oslo, em 1993, e o prémio Nobel da Paz que lhe foi atribuído, no ano seguinte. A questão é não deixar cair no esquecimento o que Peres representa para os palestinianos e os seus vizinhos no Médio Oriente, o seu extenso currículo ao serviço do colonialismo e do apartheid, que é bem diferente da «pomba incansável» divulgada pelos meios ocidentais.
Um dos aspectos que sobressaem no currículo de guerra do «último dos pais fundadores» de Israel liga-se às funções que, entre 1953 e 1965, desempenhou no Ministério da Defesa e pelas quais tem sido apontado como «um arquitecto do programa nuclear israelita».
A «judaização» da Galileia – o fomento de políticas que visaram desequilibrar, na região, a proporção de habitantes a favor dos judeus – e o estabelecimento de colonatos ilegais na Margem Ocidental são outras responsabilidades depositadas sobre o agora finado, que, mesmo em anos mais recentes, interveio no sentido de evitar que o seu país fosse sancionado por causa dos colonatos.
Sendo primeiro-ministro, em 1996, Peres foi o responsável máximo pela Operação Vinhas da Ira, uma ofensiva lançada pelas Forças Armadas israelitas no Sul do Líbano que provocou mais de 150 mortos e 350 feridos entre a população civil, e no âmbito da qual teve lugar o massacre de Qana. As bombas israelitas caíram sobre centenas de civis abrigados em instalações das Nações Unidas, matando 106 e ferindo 116. Um relatório da ONU viria a desmentir as alegações de «desconhecimento» e «erros técnicos».
Mas se há actuação que, por si só, possa justificar todos os encómios dispensados a Peres nestes dias de «prensa dolorosa», isso é... Gaza. Confrontado com o abalo que as consequências devastadoras do férreo bloqueio imposto ao território provocava em muitas consciências, mundo fora, e com o escândalo gerado pelos brutais bombardeamentos de 2009, 2012 e 2014, Shimon Peres foi um paladino... de Israel. Pesou as palavras, que lhe saíram diplomáticas para justificar o castigo colectivo e a brutal receita militar, mesmo quando os atingidos foram miúdos a brincar na praia: «Já tínhamos avisado que aquela área ia ser bombardeada.»
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