A situação actual na Síria contém todas as circunstâncias imagináveis que podem degenerar num conflito de proporções internacionais há muito inatingidas. Não apenas porque ali está tão à vista como na Ucrânia o frente-a-frente entre as duas principais potências mundiais, como é também nos escombros sírios que se embrenham e confundem os mais ameaçadores conflitos regionais, ora agravados, e se ateiam com irresponsabilidade aventureira os mil e um rastilhos da ameaça terrorista global.
O cessar-fogo estabelecido na Síria com o patrocínio dos Estados Unidos e da Rússia teve como epílogo o fracasso anunciado e, já depois disso, Washington e Moscovo ficaram de costas voltadas – o que aliás tinham disfarçado muito mal até agora. De facto, os objectivos do envolvimento das duas grandes potências – e respectivos aliados mais ou menos assumidos – são não apenas diferentes como antagónicos.
Moscovo deseja o restabelecimento da integridade e da legitimidade da República Árabe Síria; e Washington pretende não se sabe ainda bem que produto final mas, para já, desintegrar o país tal como a NATO conseguiu no Iraque e na Líbia, recorrendo não poucas vezes ao terrorismo salafita e à manipulação de comunidades regionais como a curda, por exemplo.
Especula-se nos bastidores diplomáticos que um dos objectivos centrais da destruição da Síria e da instauração do fascismo na Ucrânia é o mesmo: impedir o funcionamento da rota da seda entre o Extremo Oriente e a Europa, almejada sobretudo pela China; mas seja ou não seja esse um dos fins, o que vai havendo pelo meio é uma aterradora tragédia humanitária e uma ameaça destruidora com dimensões susceptíveis de se tornarem planetárias.
A constatação dos factos não dispensa, antes exige, uma averiguação de circunstâncias que comprovadamente até eles conduziram – embora algumas delas estejam retidas nas malhas censórias da comunicação social ao serviço do regime global.
Não é novidade que na origem directa do fracasso da mais recente tentativa de cessar-fogo na Síria esteve um bombardeamento (admitido) da chamada coligação internacional contra tropas regulares sírias, cometido por aviões militares norte-americanos, o qual permitiu aos terroristas do Estado Islâmico recuperar posições anteriormente perdidas na região estratégica de Deir es-Ezzor. Antes disso, o secretário norte-americano da Defesa, Ashton Carter, advertira que não garantia o respeito dos seus homens pelo acordo que o secretário de Estado, John Kerry, assinara com Moscovo.
A seguir, aviões russos foram acusados de bombardear um comboio humanitário, gerando uma mediática onda de revolta das cúpulas da ONU e do «mundo civilizado». O que posteriormente foi escondido é o que agora aqui se revela: o comboio humanitário era uma iniciativa do Crescente Vermelho Sírio e fora monitorizado por autoridades ao serviço de Damasco, constatando-se que, ao contrário de muitos outros, incluindo alguns sob as insígnias da ONU, não transportava armas nem dava fuga a terroristas.
«E também não se estranha igualmente que o presidente Obama, qual Nobel da Paz, tenha aprovado secretamente, também em 2013, a infiltração de "rebeldes" fundamentalistas na Síria, no âmbito da operação "Madeira de Sicómoro".»
Na região onde o comboio foi dizimado não se detectaram sinais de qualquer bombardeamento aéreo: os veículos foram assaltados em terra e queimados por grupos de «rebeldes» que penetraram numa zona desmilitarizada, onde não deveriam estar, como é óbvio. Nos bastidores diplomáticos afiança-se que a operação teve o dedo do MI6 britânico, o qual desmente – o contrário seria absurdo.
Chegados a este ponto, eis-nos entrados em teorias da conspiração, dir-se-á. Mas existem cumplicidades comprovadas por escrito onde cabem acções como estas e outras do mesmo jaez. Documentos no qual se traça uma estratégia geral propícia ao recurso a manobras deste tipo.
Um documento oficial da Agência de Informação do Pentágono de 12 de Agosto de 2012, desclassificado em 18 de Maio de 2015 por empenhamento jurídico de uma organização não-governamental norte-americana, informa o seguinte: «Os países ocidentais, os Estados do Golfo e a Turquia apoiam as forças da oposição na Síria com o objectivo de estabelecer um principado salafita na Síria Oriental, finalidade que todas as potências que apoiam a oposição desejam para isolar o regime sírio».
À luz deste escrito não se estranha que, em 2013, o senador fascista John McCain, enquanto enviado da Casa Branca, se tenha encontrado clandestinamente na Síria com um grupo de terroristas extremistas islâmicos, entre os quais Ibrahim al-Badri, o «califa» do Isis ou «Estado Islâmico», como ficou fotograficamente documentado e foi reconhecido pelo próprio senador, embora muito posteriormente.
E também não se estranha igualmente que o presidente Obama, qual Nobel da Paz, tenha aprovado secretamente, também em 2013, a infiltração de «rebeldes» fundamentalistas na Síria, no âmbito da operação «Madeira de Sicómoro».
Não se julgue que estes documentos são avulsos, entreabrindo apenas a realidade. Não esqueçamos a força que lhes veio a ser dada pelos famosos e-mails de Hillary Clinton, encarada hoje como pretensa salvadora dos Estados Unidos e do mundo depois de, como secretária de Estado, ter sido peça chave das hecatombes da Líbia e da Síria. Escreveu a ilustre senhora em Dezembro de 2012: «Tendo em conta a relação estratégica entre o Irão e a Síria, o derrube de Assad seria um enorme benefício para Israel e faria diminuir o compreensível receio israelita de perder o monopólio nuclear». De uma assentada, duas verdades intimamente assumidas e que não constam do discurso oficial norte-americano: o objectivo de derrubar Assad e o estatuto nuclear de Israel, o segredo mais mal guardado do mundo.
Diz-se que quem fala verdade não merece castigo. Mas a candidata à Casa Branca fê-lo na privacidade do seu correio electrónico, no qual misturava abusivamente a vida pessoal e os assuntos de Estado. Não era suposto o mundo vir a saber estas coisas de tão insigne estadista, muito menos a evidente cumplicidade de uma pré-presidenta dos Estados Unidos com hecatombes no meio das quais abundam crimes contra a humanidade – não reconhecidos mas verdadeiros.
Se for eleita, Hillary Clinton arrisca-se a receber o Nobel da Paz no próximo Outono.
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