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Proibida a entrada a animais, russos e à solidariedade com a Palestina

A disparidade na abrangência e alcance de sanções desportivas face a outros dramas humanitários revelam, mais do que um suposto humanismo e solidariedade, a hegemonia cultural, racismo e xenofobia do «Ocidente».

Equipa russa nos Jogos Paralímpicos de 2018 em Sochi
CréditosKirill Kudryavstev / AFP

Na sequência de mais um cenário de guerra no nosso planeta, diversas agências desportivas têm tomado medidas de afastamento de federações, clubes e atletas russos das competições. A disparidade na abrangência e alcance destas sanções desportivas face a outros dramas humanitários, particularmente sobre a Palestina, revelam mais do que um suposto humanismo e solidariedade: sobressai a hegemonia cultural, racismo e xenofobia do «Ocidente».

Desporto: uma frente de combate

Com a invasão do exército russo no território ucraniano, entrou-se numa nova e mais dramática fase do conflito que desde 2014 tem lavrado naquela zona, opondo a Rússia e, mais do que a própria Ucrânia, os EUA e a União Europeia. Para além das operações militares, esta guerra estende-se a todas as facetas da vida. É uma guerra travada no campo económico, informativo e também cultural.

Na frente desportiva, as chamadas potências ocidentais levam clara vantagem, com a sua hegemonia a verter-se na direcção dos organismos e federações desportivas. O objectivo é claro: expulsar tudo o que cheire a russo da dita «comunidade internacional». Entre as inúmeras sanções, salienta-se as seguintes:

- Nos recentes Jogos Paralímpicos de Inverno de Pequim, símbolo maior da inclusividade no desporto, os atletas russos e bielorussos foram impedidos de participar na competição.

- A Rússia e Bielorrússia também foram afastadas do Mundial de Futebol do Qatar e de diversas outras competições internacionais.

- Clubes como o Spartak Moskva, CSKA Moskva, Tyumen ou Zenit foram retiradas das competições europeias. Voltada para provas no estrangeiro, a equipa de ciclismo Rusvelo não tem um único dia de competição este ano, por impedimento da federação mundial.

- O Grande Prémio da Rússia da Fórmula 1 ou a final da Liga dos Campeões em São Petersburgo foram cancelados, assim como diversos outros eventos no ténis, ski, curling, etc.

- O tenista número um do mundo, Daniil Medveded, poderá estar impedido de competir em Wimbledon. O piloto Nikita Mazepin foi despedido da equipa Haas. A própria recém-estrela da patinagem no gelo Kamila Valieva poderá estar impedida de competir. Tem-se exigido aos atletas que se demarquem de Putin e do Governo, mesmo que nunca tenham tido ligações, recriando em pleno século XXI os autos de fé da Inquisição.

Chega-se ao absurdo de sites desportivos removerem as bandeiras dos países dos atletas, sites de apostas terem retirados eventos desportivos russos ou jogos electrónicos removerem as equipas russas.

Atletas, clubes, treinadores e demais staff são tratados como párias e vêem o seu esforço e ambições atirados ao lixo por terem o atrevimento de terem nascido na Rússia ou de trabalharem no país. Relembra-se que a última vez que sanções tão abrangentes foram tomadas contra um país foi contra o regime de Apartheid da África do Sul, como resposta ao próprio segregamento da população negra.

A Rússia tem oligarcas, o Ocidente empreendedores

Da mesma forma que a guerra não se iniciou em 2022, também esta tentativa de isolar a Rússia não começou agora. O tratamento que é feito à Rússia, pela sua ameaça à hegemonia estado-unidense, sempre foi distinta, colocando o seu papel no desporto sob um escrutínio que raramente existe para outros países.

Apesar de durante anos o dinheiro da Gazprom ter sido bem recebido pelos dirigentes desportivos de diversas modalidades, sempre houve uma percepção que esse dinheiro seria mais «sujo» do que outras empresas que movem milhares de milhões à custa de práticas monopolistas, de infracções de direitos humanos e/ou de exploração de vícios, como a Coca-Cola, Heineken ou a Bridgestone.

Também a figura do oligarca Roman Abramovich é vista como sinónimo da entrada dos grandes magnatas no futebol e da redução deste a uma brincadeira de ricos. No entanto, o epíteto de oligarca e magnata a brincar aos clubes nunca é aplicado a Ken Bates, homem que vendeu o Chelsea a Abramovich, e que antes disso já tinha sido dirigente de três outros clubes e da federação inglesa de futebol, e que ainda compraria o Leeds United. Não de somenos, Bates recebeu autorização da coroa britânica para explorar por 199 anos uma ilha nas Caraíbas contra a vontade do povo autóctone, e era próximo de Ian Smith, dirigente da Rodésia do Sul, estado supremacista branco, a par da África do Sul. Para a sua sorte na imprensa, calhou não saber escrever em cirílico.

Doping: o colectivismo russo vs. o pecado individual ocidental

Também na relação com o doping vemos tratamentos diferenciados. A cruzada iniciada em 2014 com um documentário alemão (por «coincidência») levou a que a WADA, agência mundial de antidopagem, tivesse impedido a Rússia de competir usando os seus símbolos nacionais, em competições por selecções. Não estando em causa a veracidade da acusação, parece que a WADA tem dificuldades em encontrar mais casos de programas de doping patrocinados pelo poder central, argumento central para esta medida. No entanto, casos não faltam, e fica aqui uma pequena amostra de um problema no desporto que só por conveniência não é mais falado.

Cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2018, em Pyeongchang

Quando os contornos começar a ficar cada vez mais sinistros e públicos, a justiça dos EUA viu-se obrigada a desvendar a rede de doping capitaneada por Lance Armstrong. Sustentada a partir de dinheiro público através do patrocínio da US Postal, agência federal do Governo dos EUA que dava nome à equipa, a rede conseguiu tornar Armstrong num embaixador dos valores estado-unidenses e um ídolo mundial, obtendo os seus resultados com recurso ao maior e mais sofisticado sistema de dopagem à data e fazendo questão de destruir carreiras e vidas de outros ciclistas. Mas aparentemente o maior esquema de dopagem e gangsterismo da história do ciclismo sob égide de entidades públicas não parece ter provocado sinais de alerta na WADA.

Também no atletismo, a lista alargada de atletas medalhados dos 100 metros apanhados por doping, como os estado-unidenses Carl Lewis, Tim Montgomery, Tison Gay, Justin Gatlin e Marion Jones, o canadiano Ben Johnson (que treinava com o mesmo homem que treinou Montgomery ou Jones) e os jamaicanos Yohan Blake, Asafa Powell, Shelly-Ann Fraser-Pryce e Sherone Simpson, treinados pela equipa MVP, criam um quadro que para a WADA apenas indica prevaricação pessoal, nunca as federações tendo sido responsabilizadas pelas transgressões.

Em 2017, um tribunal espanhol anulou a possibilidade de se identificarem 211 sacos de sangue que estavam na posse do médico Eufemiano Fuentes aquando uma busca da Guardia Civil em 2006, personagem central de uma rede de dopagem de que ainda hoje se desconhece a sua extensão. A justiça espanhola nunca se mostrou disponível para divulgar a identidade de todos os clientes de Fuentes que, segundo o próprio, remonta pelo menos aos Jogos Olímpicos de 1992 em Barcelona, e que para além de ciclistas (os únicos cujos nomes vieram à luz do dia) estendia-se, pelo menos, também ao futebol e ao ténis. Ocupada com a Rússia, a WADA pouco ou nada fez para desvendar este mistério, com as dúvidas sobre a performance de diversas gerações de ouro do desporto espanhol nos últimos 30 anos votadas a mera especulação.

A frieza oriental

Também o suposto tratamento dado aos atletas, sobretudo mulheres, mostra uma dualidade de critérios. Neste aspecto, geralmente, o alvo preferencial da comunicação social é a China e as suas atletas. Mas à boleia do aumento da tensão no Donbass, a mira temporariamente mudou. O alvo foi Kamila Valieva.

Pelo pecado de ter executado performances brilhantes nos recentes Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim, logo surgiram as alegações de doping. A trama adensa-se quando, após uma performance menor, o acompanhamento dos treinadores e da comitiva russa foi imediatamente posto em causa por pressão psicológica sobre a agora pobre vítima, com direito a conferência de imprensa do Presidente do Comité Olímpico Internacional (COI). A Rússia, de novo, é vilificada.

Já quando em 2015 rebentou o maior escândalo de abusos sexuais na história do desporto, praticado pelo treinador da equipa de ginástica dos EUA e encoberto pela federação, o COI não teve nenhuma acção. Quando Simone Biles desistiu de provas de ginástica nos Jogos Olímpicos de Tóquio por questões de saúde mental, o mesmo Presidente do COI apenas afirmou que ela era uma lutadora. Não se encontrou espaço para considerações de problemas estruturais num organismo que encobriu cerca de meio milhar de abusos sexuais.

Ainda no campo da patinagem artística, o drama de Valieva leva a grande escrutínio e reflexões sobre como os russos treinam os seus atletas. Já o resultado do drama de Tonya Harding, patinadora estado-unidense que procurou fisicamente incapacitar uma atleta rival, são diversos prémios de cinema com uma das piores condutas desportivas transformada em entretenimento e personalizado na figura da ex-patinadora.

Quando a Palestina se deparou com um desporto apolítico

Se a dureza com que o desporto russo (e bielorrusso) tem sido tratado é justificada aos olhos de alguns como resposta às injustiças cometidas pelos Governos, não deixa de ser gritante como estas sanções desportivas são díspares com o tratamento dado a outros países noutros contextos.

Poderíamos falar dos regimes fascistas e das brutais ditaduras da América Latina no passado ou das monarquias absolutas do estados do Golfo e das aventuras imperialistas dos países da NATO. Ainda assim, o exemplo mais gritante na actualidade é a agressão e genocídio do povo palestino às mãos de Israel, que o submete a um regime de apartheid. Mas em vez de nos focarmos sobre a ausência de sanções sobre Israel e como este país está plenamente integrado no circuito desportivo internacional, atente-se antes às penalizações que os organismos que regulam o desporto têm tido contra aquelas que aproveitam o palco desportivo para mostrar solidariedade com a Palestina.

Caroon de Latuff

O clube escocês Celtic tem nos últimos anos recebido multas na ordem das dezenas de milhares de euros por os seus adeptos mostrarem a bandeira da Palestina durante jogos das competições internacionais. A bandeira da Palestina é considerada um adereço ilícito pela UEFA. Também a federação espanhola de futebol multou o jogador Kanouté por ter mostrado uma camisola de apoio à Palestina. O jogador Aboutrika recebeu um cartão amarelo durante um jogo para a Taça das Nações Africanas por ter violado as regras da FIFA sobre slogans políticos, sendo que o slogan de Aboutrika pedia simpatia para com Gaza. Também o clube chileno Palestino, criado por imigrantes, foi penalizado e obrigado a mudar o design da sua camisola, em que o número 1 tinha o desenho das fronteiras da Palestina de 1947.

O judoca Fathi Noureen foi suspenso durante 10 anos por se recusar a lutar contra um judoca israelita nos Jogos Olímpicos de Pequim por solidariedade com a causa palestiniana. Sorte semelhante teve Saeid Mollaei em 2019, tendo apenas voltado a competir após se mudar para a Alemanha e participar na equipa de refugiados. No xadrez, as federações mundiais têm repetidamente ameaçado países de suspensão caso não permitam a participação de atletas israelitas.

O número dois do squash, Ali Farag, assim como dezenas de outros jogadores e personalidades do desporto, têm vindo a público denunciar os dois pesos e duas medidas quando o assunto foi expressar solidariedade com a causa palestiniana e agora com a Ucrânia. Sempre se tentou impedir que os atletas pudessem abertamente demonstrar as suas opiniões acerca do genocídio alegando as organizações e federações que a política se devia manter fora do desporto e que não tem lugar dentro dos recintos. Subitamente, com a avalanche de expressões solidárias com o povo ucraniano, o que se realça é que o drama da Palestina não cabe na empatia de quem gere o desporto.

Por baixo da pele de cordeiro

Mais do que uma pretensa solidariedade com as dificuldades que o povo ucraniano passa, as recentes sanções sobre a Rússia e a Bielorrússia demonstram duas coisas: a hegemonia cultural do imperialismo dos EUA e da UE e a xenofobia e racismo presente na ideologia dos dirigentes «ocidentais».

Destruído o sonho, após a queda do bloco socialista, de um mundo submisso sob a batuta dos EUA, as principais potências imperialistas vêem-se incapazes de contrariar a emergência de um mundo multipolar, perdendo na esfera política e económica a capacidade de impor a sua política de rapina, opondo-se-lhes a resistência dos povos e dos interesses das potências regionais. A solução militar directa também não é viável em confronto com potências nucleares, como é o caso da Rússia. A mais eficaz arma que lhes resta é a hegemonia cultural criada ao longo de décadas. O controlo dos principais meios de comunicação, tanto de informação como de entretenimento, assim como dos supostos organismos independentes, não-governamentais, neutros e apolíticos permite este ataque concertado e rápido à Rússia na esfera desportiva, apagando esta nação (mais do que o país e o seu governo) do planeta.

O sofrimento que se vive na Ucrânia em 2022 não é maior nem menor que o sofrido nos últimos oito anos, quando os russófonos foram reprimidos pelo estado ucraniano, mas, enquanto as equipas russas são afastadas das competições, fez-se questão que o Shaktar Donetsk tivesse um lugar seguro onde jogar. Uma bomba detonada em Kiev não causa mais nem menos luto que uma que caia em Damasco ou Mossul, mas enquanto a bandeira e hino russo são banidos, nunca o COI pensou em retirar a Estrela de David ou a Star-Spangled Banner do pódio olímpico. O que marca as sanções em 2022 não é a solidariedade, é a agenda política.

À semelhança das sanções económicas, o ataque à cultura russa, como visto nas sanções desportivas, atingem mais o povo russo do que Putin ou a burguesia dirigente. A imagem criada sobre o desporto russo e os seus protagonistas ao longo dos anos não se desvia do guião criado para ostracizar outros povos. O atleta batoteiro, o dirigente manipulador, o dinheiro sujo, a máquina fria e sem escrúpulos, todos coniventes com o regime autocrático, criam uma percepção emotiva primária de rejeição, da criação de um «outro» que não pode estar «connosco». Mais uma machadada nos princípios do olimpismo. Só falta retirar um dos anéis…

A falha técnica dos Jogos de Sochi soou a premonitória em 2022

Neste processo a vítima não é o Governo russo, somos todos nós.

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