Há uma velha discussão sobre a ferrovia: o que planificar primeiro? O que construir primeiro? A linha ou o comboio? Não ouvem um ferroviário envolvido nessa discussão, pois os ferroviários sabem que linha e comboio são uma unidade. Mas a discussão existe.
Em Portugal, a resposta a essa pergunta tem sido: o que é que isso interessa? Primeiro planifica-se o anúncio da coisa, a nota, a conferência de imprensa ou a declaração. Quando a malta se cansa de anúncios, arranja-se uma revolução na ferrovia, à qual se seguem muitos e justificados anúncios. Quando, depois de duas ou três revoluções na ferrovia, a ferrovia continua na mesma, há-de haver uma mudança de Governo e volta tudo ao princípio.
Linha Lisboa-Porto
Ouvimos esta quarta-feira o anúncio, em iniciativa com presença do primeiro-ministro no terminal ferroviário de Campanhã, no Porto: «Será construída uma nova linha, em via dupla, de alta velocidade entre Porto e Lisboa, em bitola ibérica, com o tempo de percurso directo entre a Campanhã e Lisboa-Oriente de 01h15.»
Em 2000, o Decreto-Lei de António Guterres que constituía a RAVE prometia uma ligação Lisboa-Porto em menos de 1h30. Já em 2004, a Resolução do Conselho de Ministros assinada por Durão Barroso previa uma «Linha Lisboa-Porto, como linha especialmente construída para a alta velocidade, com estações intermédias em Leiria, Coimbra e Aveiro, com horizonte temporal de 2013». Ou seja, anunciaram ontem o mesmo que anunciaram há 22 anos e que seria suposto estar concluído há nove. Nessa mesma Resolução de 2004, encontramos mais anúncios, desde um Évora-Faro em Alta Velocidade, que foi esquecido assim que foi anunciado, até a ligação Porto-Vigo em Alta Velocidade, que agora também voltou a ser prometida como se de grande novidade se tratasse. Mas prossigamos: em 2008, com o Governo Sócrates, já a data de entrada ao serviço tinha derrapado para 2015, mas estava solidificado o anúncio: 1h15 minutos entre Lisboa e o Porto. Custava então 4,5 mil milhões de euros. Curiosamente, exactamente o mesmo preço que custava no anúncio de 2020 do PNI 2030, já com António Costa.
«Ou seja, anunciaram ontem o mesmo que anunciaram há 22 anos e que seria suposto estar concluído há nove.»
Continuamos assim com comboios de Alta Velocidade – os Alfa Pendulares são-no, com uma velocidade de 220 Km/h – a produzirem um serviço de 2h48 minutos para os 330 Km que distam entre Lisboa e o Porto.
Uma infra-estrutura verdadeiramente estratégica, que não merece qualquer contestação, e que, no entanto, vai sendo adiada sucessivamente, ao mesmo tempo que é uma e outra vez prometida. Nos tempos da ditadura, qualquer chafariz servia para uma inauguração e um discurso de Américo Tomás. Hoje, já não são as inaugurações que dão direito a notícia: é a mera promessa, o simples anúncio.
Linha de Cascais
O mesmo se passou com a Linha de Cascais na última semana. Primeiro, anunciaram que estava escolhida a empresa que vai realizar a modernização da Linha de Cascais. No dia seguinte, o próprio ministro anunciou que o concurso para aquisição dos comboios estará concluído em Fevereiro.
Recordemos. Há muitos, muitos, anos que se sabe que é necessário: (1) Alterar a tensão da Linha de Cascais, que é diferente da usada na restante rede da CP, e ajustar alguns parâmetros da infraestrutura que são igualmente diferentes naquela rede, permitindo assim a completa interoperabilidade; (2) renovar e alargar a frota da Linha de Cascais, substituindo os comboios que estão ao serviço desde a década de 50 do século passado, permitindo voltar a oferecer uma oferta urbana adequada em qualidade, quantidade e fiabilidade. Ora, como a frota da CP Lisboa precisava ela igualmente de ser renovada (entre 2025 e 2037, mais 91 unidades triplas atingem o fim de vida) e alargada (para melhorar a oferta na Linha de Sintra, mas essencialmente para aumentar a oferta nas Linhas Urbanas de Vila Franca de Xira, do Sado e Ponte 25 Abril), fazia todo o sentido que se planificasse a aquisição1 – faseada – de um conjunto suficiente de comboios para satisfazer todas estas valências.
O João Pimenta Lopes está a demonstrar o que – na prática – significou o Ano Europeu da Ferrovia e todo o processo de liberalização do sector ferroviário. São 57 horas para ir de Lisboa a Estrasburgo de comboio, em vez das 22 horas necessárias há uns anos. Mais que uma boa iniciativa política (daquelas que toda a gente jura que o PCP não é capaz de fazer), esta iniciativa é um autêntico serviço público, que, parafraseando o Marx, esclarece com três dias de prática o que três anos de propaganda tentaram esconder. E enquanto a viagem do deputado do PCP no Parlamento Europeu era remetida para o silêncio (e para alguns envergonhados, mas honrosos rodapés), o ministro recebia uma vez mais os holofotes para anunciar «o maior investimento de sempre da CP em comboios», incluindo 25 automotoras eléctricas bi-tensão para Cascais. Desta vez com o acrescento de que os mesmos serão produzidos em Portugal, mais precisamente em Guifões. Espero, muito sinceramente, que tudo o que hoje foi anunciado pelo Governo venha a ser concretizado. Infelizmente a realidade não abona nada à credibilização deste anúncio. Deixo-vos aqui quatro troços dessa realidade, para que julgueis por vós próprios: – Em Maio de 2009, a secretária de Estado dos Transportes do então Governo PS, Ana Paula Vitorino, anunciou com pompa e circunstância que a CP ia «lançar o maior concurso de sempre para comprar 102 comboios», num «investimento de 500 milhões de euros» que incluía «36 Unidades Múltiplas Eléctricas equipadas com bi-tensão» para a Linha de Cascais. Quatro meses depois realizam-se as eleições, o PS volta a formar governo, Ana Paula Vitorino passa a ministra e o concurso da CP é anulado. «O caderno de encargos hoje anunciado não é público, permitindo que o Governo o apresente como sendo aquilo que não é.» – Nos últimos seis anos de Governo PS não foi comprado qualquer comboio novo em Portugal, como não é desde 2003, desde o encerramento da Sorefame. Foram, no entanto, lançados dois concursos – para 14 Unidades para o Metro e 22 unidades para o regional da CP – que já foram adjudicados a uma multinacional Suíça e vão a ser construídos em Espanha, sem qualquer incorporação nacional. – O caderno de encargos hoje anunciado não é público, permitindo que o Governo o apresente como sendo aquilo que não é. Esta falta de transparência da gestão da coisa pública permite todo o tipo de abusos. Recordemos o caderno de encargos da privatização da ANA, que incluiria a obrigação de construir o Novo Aeroporto de Lisboa e afinal apenas apresentava essa opção, que a Vinci depressa recusou. Mas o próprio Governo reconhece que o caderno de encargos desta aquisição de comboios não exige a incorporação nacional na produção. O Governo diz que é porque não pode, que as leis da União Europeia (UE) não o permitem, eu digo que é porque não quer. Desde logo porque as leis da UE foram escritas e aprovadas pelo PS/PSD, não lhes foram impostas. – Há pouco menos de um ano, o PCP apresentou um estudo sério sobre as necessidades de material circulante para o País a 15 anos, e apontou para a possibilidade e necessidade de um plano nacional para a construção desses equipamentos em Portugal. Quando a proposta foi a votos na Assembleia da República, o PS chumbou-a. Não estavam eleições marcadas. Repito. Seria um extraordinário avanço se fosse concretizado tudo o que foi prometido por este anúncio pré-eleitoral do Governo. Que pena que o PS sempre se tenha recusado a concretizar o que agora – mais uma vez – promete. Desde há vários anos, o AbrilAbril assume diariamente o seu compromisso com a verdade, a justiça social, a solidariedade e a paz. O teu contributo vem reforçar o nosso projecto e consolidar a nossa presença.Opinião|
Da distância entre as promessas e as práticas na ferrovia
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Agora vejamos a salganhada que o Governo anunciou a semana passada: Está escolhida a empresa que vai realizar a modernização da infra-estrutura da Linha de Cascais; apesar de ainda faltar o visto do Tribunal de Contas, anuncia-se que a obra estará concluída no início de 2025, que os primeiros comboios novos serão entregues em 2026, sendo que os primeiros 25 serão bi-tensão, para poderem circular com a tensão antiga, e só no final de 2026, a CP, obtidas todas as 25 unidades bi-tensão, concretizará a mudança de tensão na Linha dos 1500 para os 25 000 volts. Para, imediatamente a seguir, anunciar que o concurso para decidir quem vai construir os ditos comboios continua a arrastar-se (foi anunciado em Dezembro de 2021, a tempo das eleições de Janeiro), mesmo que acreditemos no novo prazo de Fevereiro para a conclusão do concurso (a que ainda se seguirá a inevitável litigância contra a decisão, que as grandes firmas de advogados têm de abocanhar o seu quinhão de todas as obras).
E é o próprio ministro que já vai dizendo que «não há comboios em stand» e será preciso «esperar que eles sejam fabricados». Ou seja, que a previsão do final de 2026 para ter os 25 comboios entregues, anunciada no dia anterior, é, para não dizer outra coisa, muito optimista.
Como se a baralhada não fosse suficiente, esta empreitada agora anunciada é de 31,6 milhões de euros. O que foi anunciado com o Ferrovia 2020 foi uma obra de 120 milhões a estar concluída no final de 2021. Ou seja, está quase a começar, quando ainda só passou um ano da data da sua anunciada conclusão. E está só quase, pois além de faltar o visto prévio, falta adjudicar um conjunto de outras empreitadas necessárias à modernização (subestação de tracção em Sete Rios; a instalação de um novo sistema de sinalização electrónica; novos sistemas de videovigilância e informação ao público; mudanças nas passagens e atravessamentos de nível; eliminar a última passagem de nível rodoviária da linha, em São João do Estoril). Isto, se tudo correr bem, pois são cada vez mais as obras que não são concluídas por o empreiteiro que ganha o concurso não ter condições para as concretizar. O facto deste concurso ter sido ganho com uma oferta 12% abaixo do preço base – o que foi muito saudado pelo Governo – só faz temer o pior sobre a sua efectiva concretização.
«Como se a baralhada não fosse suficiente, esta empreitada agora anunciada é de 31,6 milhões de euros. O que foi anunciado com o Ferrovia 2020 foi uma obra de 120 milhões a estar concluída no final de 2021. Ou seja, está quase a começar, quando ainda só passou um ano da data da sua anunciada conclusão.»
Da mesma forma, as dotações do concurso de 117 comboios urbanos, mesmo que este venha a concretizar-se, não permite ampliar a oferta, quase se limita a substituir os actuais comboios por outros. Ora é necessário aumentar o oferta, e até há alguns investimentos anunciados em infra-estrutura ferroviária (a quadruplicação da Linha de Cintura, a última fase da nova ligação Lisboa-Porto) que anunciam uma ampliação de oferta. Ora, os 117 comboios não são elásticos. Em termos de anúncios, podem ser prometidos para todo o lado, mas em termos de circulação real só estarão sobre um par de carris de cada vez.
Enquanto os prazos vão continuar a ser pulverizados, continuamos sem uma oferta digna. Temos muitos cadernos de encargos, muitos regulamentos de concurso, muitos processos em tribunal, e ainda mais anúncios, só não temos é comboios a circular com a fiabilidade, a quantidade e a qualidade que o país necessita e até pode financiar.
E não vale a pena vir agora o ministro lembrar que os comboios não se compram em stands. Já não se compravam em 2015, quando o PCP apresentou o Projecto de Resolução sobre um «Plano Nacional para o Material Circulante», que, apesar de ter sido aprovado pela Assembleia da República, só começou a ser concretizado pelo Governo em 2020.
Sendo que, manda a prudência e a experiência que não ignoremos um último cenário: tudo isto voltar a cair, como já aconteceu quando da anulação do concurso de compra de material circulante em 2009 e do cancelamento da obra de modernização da Linha de Cascais em 2011. E a desculpa até já pode estar a caminho. Ao contrário dos novos comboios.
- 1. Dizemos aquisição pois a tal o país está condenado depois da destruição da Sorefame, mas é necessário e possível garantir que uma parte da produção dos futuros comboios seja realizada em Portugal, se para tal houver vontade política.
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