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Os mártires de Odessa foram sementes

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem anunciou, na quinta-feira, que considera que as autoridades ucranianas são culpadas por não evitarem o massacre de Odessa em 2 de Maio de 2014. Hoje, um dos principais responsáveis pelo massacre foi abatido nas ruas da cidade.

Passam seis anos sobre o massacre da Casa dos Sindicatos de Odessa, na Ucrânia, perpetrado a 2 de Maio de 2014, na sequência do golpe de «Maidan». Fortemente armados, apoiantes de «Maidan», em que se incluíam membros de grupos neonazis, avançaram sobre os antifascistas ucranianos concentrados no acampamento de Kulikovo, que procuraram refúgio na Casa dos Sindicatos. A chusma fascista incendiou o edifício e cerca de 50 resistentes perderam ali a vida. Alguns lançaram-se para a morte das janelas, outros foram baleados ao tentar escapar do prédio em chamas. / Twitter via Nahia Sanzo
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O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem anunciou, na quinta-feira, que considera que as autoridades ucranianas são culpadas por não evitarem o massacre de Odessa em 2 de Maio de 2014. Este tribunal considerou que houve violações do direito à vida e da obrigação de investigar os acontecimentos e que as autoridades ucranianas não tomaram as medidas necessárias para evitar a violência em Odessa, para pôr termo aos confrontos, para assegurar medidas rápidas de resgate das vítimas e para levar a cabo uma investigação eficaz sobre o que aconteceu.

Esta manhã, um dos principais responsáveis pelo massacre, Demyan Ganul (ex-Pravyy Sektor, actualmente no grupo Street Front), foi abatido nas ruas de Odessa por um atirador acompanhado de outros dois homens. As autoridades ucranianas já anunciaram o nome do suposto executante, restando dúvidas sobre se o episódio de violência terá sido obra de um ajuste de contas ou da resistência antifascista na clandestinidade. O facto é que o crime hediondo que provocou a morte de mais de 40 pessoas em 2014 foi um dos detonantes da guerra civil na Ucrânia.

«Cercados por centenas de neofascistas, o edifício acabou incendiado depois de ser atacado com cocktails molotov. Várias dezenas de mulheres e homens, muitos deles já de meia-idade, que nada tinham a ver com o que tinha acontecido horas antes, morreram carbonizados e baleados. Outros saltaram pelas janelas e foram espancados até à morte.»

Importa recuar a esse dia de Maio do ano em que, poucos meses antes, um golpe de Estado apoiado por milícias neonazis derrubara Viktor Yanukovich, o presidente eleito de forma legítima, e que havia recebido sobretudo o voto das populações do leste do país. É nesse contexto que num dia de jogo de futebol entre o FC Chornomorets e o FC Metalist, uma turba de neonazis ucranianos, composta por hooligans das duas equipas, se encaminhou para uma zona onde havia tendas de manifestantes opositores ao novo regime. Houve uma primeira batalha campal entre as duas facções, que envolveu armas de fogo, com vários mortos.

Esse grupo de neonazis encaminhou-se para outra zona da cidade, onde estavam concentrados alguns manifestantes considerados pró-russos, que acabaram por se refugiar na Casa dos Sindicatos. Cercados por centenas de neofascistas, o edifício acabou incendiado depois de ser atacado com cocktails molotov. Várias dezenas de mulheres e homens, muitos deles já de meia-idade, que nada tinham a ver com o que tinha acontecido horas antes, morreram carbonizados e baleados. Outros saltaram pelas janelas e foram espancados até à morte. 

Numa manhã primaveril de 2018, quatro anos depois, já em plena guerra civil, conheci Alexei Albu, uma das vítimas de Odessa, no átrio do Hotel Lugansk, na cidade com o mesmo nome. Voltei a encontrá-lo anos depois, em 2022, numa outra manhã, bem mais fria, um mês depois de as tropas russas terem atravessado as fronteiras da Ucrânia. O antigo deputado regional de Odessa pelo partido Borotba, entretanto proibido, levava uma enorme cicatriz na sua careca. Creio que bebemos chá e a conversa durou cerca de uma hora. Como escrevi então no Público, Alexey Albu estava dentro da Casa dos Sindicatos em Odessa. Alexei Albu escapou das chamas mas não do ódio. Contou-me que dias depois do massacre recebeu a informação de uma fonte dentro dos corpos policiais de que o seu nome estava numa lista de pessoas a serem presas. Foi então que decidiu fugir para o Donbass.

«Quando saí à rua, vi cinco ou seis pessoas mortas. Enquanto tentava apagar o fogo dentro do edifício, fui das últimas pessoas a ver Vyacheslav Markin [deputado do Conselho Regional de Odessa], que foi espancado e acabou por morrer a caminho do hospital», lembra. Muitos dos sobreviventes foram levados pela polícia como criminosos.»

Nesse mesmo ano, passados alguns meses, conheci, em Donetsk, Ekaterina, também ela uma sobrevivente do massacre. A sua história foi publicada no jornal galego Nòs. «Eu era simplesmente uma cidadã da minha cidade e com outros activistas distribuía panfletos sobre a situação na Ucrânia, que estava agora debaixo do controlo dos Estados Unidos, que queriam provocar uma guerra e destruir o nosso país». O lugar onde se concentrava o movimento anti-Maidan era na maior das praças de Odessa, junto à Casa dos Sindicatos. Havia muitos idosos e muitas mulheres no lugar. Foi noutro ponto da cidade, na Praça Grega, que começaram as hostilidades. «Aí, entraram em confronto esses hooligans, cerca de 3 mil, com os nossos rapazes. Não sei quem é que se lembrou da ideia de enfrentar 3 mil pessoas porque os nossos eram uns 300, eram poucos», descreve. Foi onde houve os primeiros mortos. Ekaterina e os que a acompanhavam sabiam já do que estava a acontecer mas decidiram ficar e esconder-se na Casa dos Sindicatos. «Com a ajuda de um machado, abrimos a porta e entrámos. Pensámos que escondidos nos daria tempo para esperar pela polícia para nos ajudar. Mas a polícia não chegou. O chefe da polícia recebeu a ordem de não enviar ninguém».

Passado meia hora, a turba chegou à Casa dos Sindicatos e começou a incendiar as tendas, a bater em todos os que viam e a lançar cocktails molotov contra o edifício. Muitos morreram queimados, outros tentaram saltar da janela e foram mortos a tiro. Quem sobrevivia era espancado com barras de ferro, muitos até à morte. Ekaterina foi retirada já pelos bombeiros com outras mulheres. «Quando saí à rua, vi cinco ou seis pessoas mortas. Enquanto tentava apagar o fogo dentro do edifício, fui das últimas pessoas a ver Vyacheslav Markin [deputado do Conselho Regional de Odessa], que foi espancado e acabou por morrer a caminho do hospital», lembra. Muitos dos sobreviventes foram levados pela polícia como criminosos. «Foi a última gota de água para todos nós». A partir daí as populações do leste da Ucrânia decidiram pegar em armas e enfrentar o novo regime exigindo a saída daquele país dos seus territórios.

Embora a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos não deixe de desvalorizar a tese do massacre e quase faça desta tragédia uma escaramuça entre dois grupos opostos, o facto é que de um lado morreu meia dúzia de pessoas e do outro mais de 40, que se refugiava num edifício. Há um agressor e um agredido e nenhuma escaramuça anterior justifica o bárbaro ataque à Casa dos Sindicatos. Contudo, o Tribunal acaba por admitir, e isso só por si é muito significativo, o que as vítimas sempre disseram. O Estado ucraniano nunca quis responsabilizar os autores do crime, os bombeiros e a polícia deixaram que a tragédia se desenrolasse e chegaram quando já pouco havia a fazer. Para o tribunal sediado em Estrasburgo, a falta de investigação permitiu que a Rússia usasse a tragédia a favor da sua narrativa, como se os juízes estivessem a concluir que uma investigação iria ilibar os criminosos e não chegar à conclusão de que haviam cometido um massacre.

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