A RTP transmitiu mesmo em directo os agentes levando algemado «o homem mais procurado do país». Não há dúvidas de que foi «um momento único de televisão», prolongado em sucessivos serviços com abundante difusão de extractos, com ponto alto nos programas «Sexta às 9», com a transmissão da entrevista – supõe-se que na íntegra – e «Sexta às 11», que a complementa com reportagens, depoimentos e convidados em estúdio, nomeadamente os advogados de Pedro Dias.
Também não há dúvidas de que o programa da RTP registou audiências retumbantes, aliás exuberantemente celebradas. Porém, permanecem muitas interrogações sobre se terá sido um momento edificante para o Jornalismo.
Segundo foi revelado, os jornalistas – da «inteira confiança» da advogada, segundo a própria – foram chamados para testemunharem a «entrega» de Pedro Dias à PJ, após quatro semanas de uma fuga que mobilizou meios de polícia e da comunicação social sem precedentes e causou evidente alarme social.
A tentação de aceitar o furo jornalístico era natural – não acontece todos os dias e a concorrência é muito forte e muito intensa. Tão intensa que deixa escassa margem de recuo para reflectir sobre as vantagens, os riscos e os problemas que o caso levanta. Ainda por cima, o prazo para se porem em campo seria reduzido.
Ficou claro perante o público que os jornalistas estiveram presentes naquele momento, não em resultado de uma investigação própria e independente, mas porque lhes foi proporcionado por dois advogados, que os escolheram e os chamaram para o efeito. Em matéria de transparência, é um passo, embora curto.
De facto, é legítimo questionar se, aceitando o convite, os jornalistas correram o risco de serem instrumentalizados numa estratégia estranha aos propósitos do Jornalismo – informar, explicar, e não limitar-se a satisfazer a curiosidade do público; ajudar a compreender os factos no seu contexto (complexo, por certo) mediante o exercício autónomo do juízo crítico, e não tornar-se personagem em guião alheio.
Os advogados pretendiam que a «entrega» fosse testemunhada por jornalistas. O objectivo consistia, segundo explicaram (e é lícito perguntar se não haveria outros…), em garantir a integridade física e até a vida do procurado (e das dos próprios advogados) se fosse feita perante elementos da GNR e/ou da PJ.
«A tentação de aceitar o furo jornalístico era natural – não acontece todos os dias e a concorrência é muito forte e muito intensa.»
Que mensagem pode ter passado? Que os profissionais de polícia poderiam exorbitar das suas competências, violar gravemente a lei e as garantias dos cidadãos – naquela circunstância como noutras? – se a «entrega» fosse feita de outro modo.
Só o facto de se colocar, mesmo como mera hipótese, a possibilidade de isso acontecer, gera perplexidade tal que não deveria deixar de ser questionada pelos jornalistas, sob pena, então sim, de inquietante alarme. Estará o Estado de Direito Democrático assim tão em crise? Que se visse, que se pressentisse sequer, nada buliu no sentido de vigilância cívica dos jornalistas.
Outro problema é a possibilidade de ter sido postergado um preceito deontológico muito importante: «O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas» (Cfr. n.º 9, segunda parte, do Código Deontológico dos Jornalistas).
Adoptado na revisão do Código Deontológico em 1993, na sequência do vivo debate suscitado por uma entrevista, para a SIC e a TSF em Dezembro de 1992, ao líder da resistência timorense, Xanana Gusmão, preso na cadeia de Cipinang, tal preceito coloca num patamar eticamente muito exigente a decisão de procurar ou aceitar entrevistar pessoas limitadas na autonomia e impossibilitadas de responder de forma livre e conscientes das consequências das suas declarações. Mal comparando, o caso merece reflexão também sob esse prisma.
É certo que os jornalistas envolvidos declararam ter encontrado em Pedro Dias um homem sereno e tranquilo. Mas será menos verdade que, nalguns momentos, o entrevistado mostrava certos sinais de ansiedade e de angústia, indiciando que aquelas condições não estariam completamente reunidas? De resto, segundo a advogada, ele não saberia que iria ser entrevistado…
Quanto ao conteúdo da entrevista, fica a impressão de que foram mais as perguntas essenciais por formular do que aquelas que pouco mais fizeram do que satisfazer a curiosidade óbvia (como sobreviveu, o que comeu, como tomava banho…). É provável que não tenham sido autorizadas (ou teriam sido evitadas) questões que poderiam pôr em causa a defesa, ou levar o entrevistado a auto-incriminar-se. Mas o que será aceitável, do ponto de vista do mandato forense, pode ter posto em risco a independência e a autonomia dos jornalistas.
Pode haver quem suponha que o episódio teria tido o mérito de conceder ao procurado «a» oportunidade de «exercer o contraditório» em relação a tudo quanto foi dito dele («perigoso», «psicopata»…). Mas talvez esse desígnio tenha ficado bem longe, deixando-nos apenas um amargo sabor a «reality-show».
Perante uma oportunidade que a generalidade dos jornalistas teria muitas dificuldade em recusar (na verdade, trata-se de um acidente estatístico na rotina das redacções, mesmo naquelas que dedicam mais esforço à cobertura criminal), mas que levanta cruciantes problemas ético-deontológicos, é natural que se pergunte: «E tu, o que farias?».
No contexto de um «mercado» pouco exigente, sob o rolo compressor da luta pelas audiências, em condições de produção dos media tantas vezes degradadas, talvez seja mais honesto admitir a probabilidade de aceitar fazê-lo, com o compromisso implícito de tentar observar o maior escrúpulo ético possível – «Se não for eu, alguém o fará…».
O problema é que tais desafios não trazem manual de instruções. Mas talvez seja prudente buscar amparo na reflexão colectiva (entre camaradas com responsabilidades, experiências e mundividências diversas, incluindo os conselhos de redacção) e não desdenhar o arrimo da dúvida.
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