1 – É usual ouvir-se falar de militares da GNR ou militar da Guarda (cfr. Estatuto dos Militares da Guarda nacional Republicana – DL 297/2009 de 14 de Out.) com referência aos profissionais desta força de segurança. Não é hábito proceder assim quanto a militares no geral. Não se ouve falar de militares do Exército, ou da Força Aérea ou da Marinha. A estes referimos simplesmente como militares. E assim é por se reportar a ramos das Forças Armadas (FF.AA.), composta de militares. Já o mesmo se não poderá dizer no 1º caso, onde é sempre lícito concluir que o ênfase no termo militar decorre precisamente por o profissional daquela instituição policial não ser militar sendo por isso necessário um qualificativo aposto, por exemplo: …da GNR.
Tanto quanto se sabe a GNR não é um ramo das Forças Armadas; é uma força de segurança, dependente do Ministério de Administração Interna, mas comandada por uma cúpula militar. Tratando-se porém de um militar da Guarda não é conhecido nem viável o ingresso de um profissional da GNR nas fileiras das Forças Armadas apesar do seu qualificativo de “militar”, ou seja, inexiste a mobilidade recíproca. Assim sendo a conclusão lógica vai no sentido da GNR na sua globalidade – desde o agente primário ao oficial mais alto oriundo da instituição ser composta por “militares” não militares. Por isso, poderia defender-se que a GNR é uma instituição policial militarizada. Mas “de um militarizado, apenas se pode dizer que não é militar”. Se militarizar é um atributo então o mesmo pode ser retirado, é o mesmo que dizer que, um militarizado pode ser desmilitarizado. Fica pois a achega.
A verdade é que a Constituição da República Portuguesa (CRP) não prevê duas categorias de militares. Militares são na verdade e apenas os profissionais das Forças Armadas. Não há militares de m minúsculo. Ao nível do Sul da Europa e fruto da instabilidade política dos meados do século XIX criaram-se de facto corpos militarizados para intervenções de rua para pôr cobro à desordem pública e evitar que o Exército interferisse de cada vez que tais desacatos ocorriam. A GNR, tem esta génese, decalcada no modelo da Gendarmerie.
2 – A qualificação da GNR, quer seja militar, quer militarizada está irremediavelmente prejudicada por atropelar uma baliza constitucional inultrapassável. Com efeito, a 1.ª Revisão Constitucional de 1982, ao extinguir o Conselho de Revolução e criar o Tribunal Constitucional visou desmilitarizar a ordem pública procurando, além do mais, dotar o Estado democrático de uma verdadeira estruturação policial civil e profissional e evitar a distorção das funções clássicas das Forças Armadas pelo seu envolvimento na manutenção de segurança interna. Este postulado constitucional tem sido desrespeitado ao persistir-se na manutenção de modelos policiais sob direcção ou controlo militar.
Aponta-se a inserção da Polícia no Título IX – Administração Pública –, à mesma cabendo “funções (de) defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna...” - artigo 272.º, prevendo o seu n.º 4 a fixação do regime das forças de segurança; bem distinto do Título X – Defesa Nacional – de essência militar, que incumbe às Forças Armadas, em caso de qualquer agressão ou ameaça externa (n.º 2 do artigo 273.º).
Digna de relevo é a exepção que a Constituição prevê quanto à intervenção das Forças Armadas no plano interno, confinada ao estado de sítio, de emergência e de calamidade pública, para além da genérica colaboração e cooperação nos estritos termos do nº6 do artigo 275.º, nisto se esgotando o apregoado conceito de “duplo uso”. Mesmo admitindo que um militar, na sua veste cívica e como cidadão possa orientar as missões referidas neste preceito, está excluída a sua competência directiva ou de comando de uma força de segurança, em tempo de paz e normalidade democrática. Em termos jurídico-sistemáticos entende-se que o domínio militar no policiamento civil desvirtua não só a função desta como a do próprio sector militar. Daí que se vá gradualmente enraizando a ideia de que um militar na polícia, nem consegue ser bom polícia nem bom militar. É aliás neste base que se há-de entender a pretensão dos profissionais da GNR para serem dirigidos pelos oficiais saídos apenas das suas fileiras.
Mas o “duplo uso”, ora para justificar o controlo militar das forças de segurança, ora sob pretexto de melhor realizar a “cata” ao terrorismo, tráfico de drogas ou criminalidade internacional, não passa de uma ficção pois que, atenta frontalmente a Constituição e desvaloriza o empenho e a eficácia das Forças de Segurança hoje já apetrechadas com corpos orgânicos para fazer face aquelas formas de criminalidade organizada. Avançando nesse raciocínio algo serôdio, qualquer tentação para alterar a Constituição com vista à consagração da militarização dos polícias ou da policialização dos militares, por exemplo, como quando se pretende avançar com o conceito de “segurança nacional”, constituirá um passo em direção a um regime autocrático sob a capa de democracia.
3 – A natureza de uma força de segurança (no caso a da GNR) não depende de uma opção voluntarista ou de uma opinião política de circunstância. A definição tem de assentar em princípios e valores em que assenta um Estado de Direito Democrático, a começar pelo respeito à Constituição. Não está demonstrada que a natureza militar ou militarizada da GNR esteja conforme com a CRP, antes pelo contrário atropela-a. Num plano distinto, anota-se que na EU a tendência vai no sentido da desmilitarização de forças de segurança (caso da Guardia Civil dotada já de uma Direção Geral civil e das profundas alterações civilistas em matéria de representatividade profissional e institucional no seio da Gendarmerie Francesa e dos Carabinieri). É tempo da GNR se sintonizar pelo diapasão da Europa. A solução está à vista e na disponibilidade do poder político para o fazer.
Bernardo Colaço (juiz Conselheiro do STJ – jubilado)
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