|Balanço do ano – 2016

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A cobertura mediática da situação na Síria é uma das principais marcas do comportamento dos media no ano que termina, recomendando uma honesta autocrítica dos próprios jornalistas. Justificável, também, pela atitude relativa ao Brasil, à Venezuela e ao Governo português.

Manifestação contra o «golpe» no Brasil (São Paulo, Março de 2016)
Créditos / Frente Brasil Popular

1. As Forças Armadas Sírias e seus aliados libertaram1, na semana passada, a cidade de Alepo, com a reconquista dos bairros da zona leste, que estava subjugada por dezenas de grupos terroristas, incluindo jiadistas, as diversas metamorfoses da al-Qaeda e o que restava do «Exército Sírio de Libertação», a que a propaganda ocidental e os seus ecos na imprensa dominante chamam «oposição moderada».

Trata-se de um acontecimento militar e político da maior relevância. Mas muitas notícias sobre esse desfecho mais pareceram elegias fúnebres, numa mal dissimulada ladainha complacente com os terroristas e num incontido despeito em relação ao Governo sírio e aos significados que encerra. Não é por acaso que muitos internautas têm deixado a pergunta: um terrorista é mau na Europa, mas é amigo na Síria?

A cobertura mediática da situação na Síria é uma das principais marcas do comportamento dos media no ano que termina, recomendando uma honesta autocrítica dos próprios jornalistas. Durante muito tempo, foram muito raras – e são aliás recentes – as oportunidades para a deslocação de repórteres independentes ao terreno. Governos e media propagaram diariamente avalanches de informações com origem quase exclusivamente no autoproclamado «Observatório Sírio dos Direitos Humanos», uma estrutura de propaganda da oposição síria baseada em Londres, da qual só se conhece o director, e financiada pela União Europeia, que aspira ao derrubamento do Governo sírio. Raras vezes foram cruzadas com outras fontes, nomeadamente as agências síria e russas.

Paralelamente, os grandes meios de informação deixaram-se capturar pelas estratégias de propaganda dos grupos terroristas, sucumbindo à eficácia de técnicas básicas para as quais deveriam estar prevenidos. Um exemplo é a produção e a difusão de imagens chocantes de alegados ataques e de vítimas, cuja credibilidade não cuidaram de escrutinar. Tão-pouco reflectiram sobre a narrativa parcial que alimentavam, frequentemente assente na linguagem obscena do horror, difundindo imagens de «vítimas» de «ataques sírios» ou «russos» (mas poucas ou nenhumas de ataques de «rebeldes»…) fornecidas por «activistas», sabe-se lá com que credibilidade e com que milagres de encenação e truncagens suspeitas.

O próprio discurso e os conceitos adoptados pelos media evidenciam uma adesão criticável à demonização do Governo sírio e de Assad, copiosamente referidos como «regime» e «ditador», enquanto dezenas de bandos terroristas e mercenários a soldo das petroditaduras da região se diluem brandamente nessa abstracção noticiosa chamada «rebeldes».

«[Relativamente ao] golpe de estado institucional no Brasil, na verdade, a Imprensa não passou a prova da imparcialidade e muito menos a do pluralismo»

2. O golpe de estado institucional no Brasil, com a destituição sem fundamento aceitável da Presidente da República eleita, Dilma Rousseff, só foi possível graças à aliança espúria entre os grandes meios de informação – e especialmente os grandes grupos de media, nas mãos ou dominados pelas famílias ricas e pelos grandes interesses – e a grande burguesia e os terranentes golpistas.

Quando os deputados e senadores golpistas do Congresso tomaram a palavra para, nas sucessivas sessões das duas câmaras, se pronunciarem sobre a admissibilidade do processo de destituição, primeiro, de pronúncia, depois, e, finalmente, da sentença, tinham atrás de si um poderoso lastro de conspiração, com a activa cumplicidade dos grandes jornais e das principais televisões – o instrumento de incentivo e mobilização das «grandes manifestações», que se encarregaram zelosamente de «cobrir».

Organizadas por chamados «movimentos de cidadãos» – denominação tão do agrado dos que cultivam o apoio mais menos descarado a tudo o que, muito antidemocraticamente, cheire a antipartido –, na realidade comandados ou apoiados por partidos de direita como o PSDB, o chamariz de actores e outros figurantes de cadeias de televisão e o suporte de empresas e grandes magnatas, as manifestações e «protestos» foram carinhosa e entusiasticamente apoiados pelos media.

Tal entusiasmo contaminou a comunicação social portuguesa, frequentemente incapaz de filtrar a propaganda, incluindo aquela que, aproveitando a «onda» das investigações da Operação Lava Jato, levava os cidadãos – lá como cá – a confundir as suspeitas de corrupção com recursos da petrolífera estatal Petrobras com os reais propósitos dos promotores: travar as conquistas sociais, económicas e educativas que melhoraram as condições de vida do povo brasileiro, como as «reformas» do governo usurpador de Michel Temer têm vindo a demonstrar.

O mesmo não aconteceu com as manifestações e outras acções de protesto que inúmeras organizações e movimentos sociais (sindicatos, movimentos dos sem terra e sem casa, etc.) – esses, sim, com expressão orgânica e legitimidade sindicáveis e sem rostos encobertos – levadas a cabo em resposta ao movimento golpista, antes, durante e depois. Na verdade, a Imprensa não passou a prova da imparcialidade e muito menos a do pluralismo.

3. Com as devidas adaptações e de um modo mais violento, o mesmo aconteceu em relação aos acontecimentos na Venezuela, onde os media dominantes – igualmente nas mãos dos ricos e poderosos que não perdoam as sucessivas derrotas eleitorais infligidas pelo movimento bolivariano nem os progressos alcançados – foram, e são, instrumentos estratégicos de primeira importância das contínuas investidas contra a Revolução.

«É chocante o desvelo que a grande Imprensa nacional e estrangeira, com manifestos reflexos na "cobertura" portuguesa, nutre pela oposição [venezuelana] e pelos seus principais líderes»

É chocante o desvelo que a grande Imprensa nacional e estrangeira, com manifestos reflexos na «cobertura» portuguesa, nutre pela oposição e pelos seus principais líderes, em paralelo com o desprezo e mesmo ódio que alimenta em relação ao Governo venezuelano e ao presidente Nicolás Maduro. Também ela apoia sem pudor as campanhas e as tentativas golpistas da oposição, ao mesmo tempo que tenta construir um perfil demonizado de Maduro e ajuda a criar as condições para o derrube do governo.

A direita revanchista, que tem reconquistado o poder na região ou que aspira a recapturá-lo, apoiada pelos Estados Unidos e instrumentalizando as organizações multilaterais como o Mercosul e a Organização dos Estados Americanos, tem consciência de que o fim da Revolução Bolivariana a que aspira representaria um grave retrocesso no processo de emancipação da América Latina face ao domínio neoliberal e imperialista. E os grandes media secundam-lhe a agenda.

4. Pelos media portugueses, a pergunta para um milhão de euros é: Quando é que cai o Governo? É tal ansiedade pela desarticulação da relação de forças na Assembleia da República, resultante das eleições legislativas de Outubro de 2015, que permitiu ao Partido Socialista formar governo, fazer aprovar o respectivo programa e já dois orçamentos de Estado, que a Imprensa mais parece uma casa de apostas.

Não há entrevista a ministro, dirigente partidário ou deputado destacado do PS ou de um dos partidos «das esquerdas» que não contenha a perguntinha sagrada, colocada com mais ou menos perspicácia ou insistida com mais ou menos arrogância. «Durará até ao fim da legislatura?»; «Quando vai acabar?»; «Por quem vai quebrar?»; «É uma bomba-relógio que pode rebentar a qualquer momento?»…

Não, não estamos perante um catálogo de dúvidas legitimadas por indícios sérios de risco de quebra de compromissos. É razoável recear que estejamos perante um desejo oculto de que falhe a solução contra a qual a elite editorial hostil se bateu mal se vislumbrou a «inconcebível» «aliança contra-natura», augurando catástrofes e resgates infindos, brandindo teorias da impossibilidade e bradando aos quatro ventos temores excruciantes contra as «esquerdas» e as suas ameaças aos mercados e à iniciativa privada, alinhando – e fazendo-se eco dele – no discurso de mau-perder da direita e capturada pelas teses antidemocráticas do arco fechado do poder.

Também por cá 2016 não foi um ano bom.

Por essas razões e porque se aprofunda nas redacções o processo de fragilização da resistência e da própria camaradagem entre os jornalistas, prosseguindo a campanha de expulsão da experiência, do espírito crítico e da capacidade reivindicativa, agravando as formas de precariedade e as condições de trabalho, que intimidam as consciências, limitam a liberdade e afunilam cada vez mais o pluralismo. Embora isto não explique tudo, nem desculpe muita da patifaria.

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