Em Portugal, a mudança na Saúde não começou logo depois dos cravos, e o panorama, um ano depois de Abril, era semelhante ao que existia dez anos antes, com a maioria da população pobre e desprotegida num país com indicadores «africanos», próprios do mundo mais subdesenvolvido.
A revolução na Saúde só começou em 1976, com o Serviço Médico à Periferia, que constituiu o verdadeiro arranque do Serviço Nacional de Saúde (SNS) antes da lei que o instituiu (sem menorizar a importância da sua promulgação nem o papel do seu autor), levando a mudança ao Interior do país, onde o prestigiado «João Semana» era, para os corpos corroídos pela doença e pela fome, a única vaga esperança de assistência.
Atacado desde o seus primórdios, a vontade de todo um povo em construir uma pátria sua e uma vida melhor fez com que, em década e meia, o SNS arrancasse Portugal da cauda do mundo, situando-o, quanto a indicadores de Saúde, no grupo dos países mais avançados, no dealbar do novo século (12.º do mundo em 2001, segundo a Organização Mundial de Saúde).
Esse feito espantoso, pouco valorizado nos média, foi possível no quadro da democratização dos seus órgãos de gestão (eleições para as Administrações e Direcções Clínicas) e com o desenvolvimento das Carreiras Médicas que asseguravam a colocação e a progressão nos diversos graus e cargos através de concursos com avaliação inter pares, num ambiente de estabilidade e de formação e especialização continuadas.
«Atacado desde o seus primórdios, a vontade de todo um povo em construir uma pátria sua e uma vida melhor fez com que, em década e meia, o SNS arrancasse Portugal da cauda do mundo»
Assegurou-se, na realidade e não em slogans, a prioridade aos objectivos clínicos «centrados no doente», abriram-se novas carreiras de médico de família e de saúde pública, impulsionou-se a progressiva fixação no SNS promovendo o estatuto voluntário de dedicação exclusiva, proporcionou-se a diferenciação das equipas e o desenvolvimento do trabalho multidisciplinar planeado e assente em projectos e objectivos de médio e longo prazo que a estabilidade profissional garantia.
O trabalho hospitalar, como o da medicina preventiva e dos cuidados primários nos Centros de Saúde, passou a ser integralmente assumido pelo quadro clínico dessas instituições, assegurando coerência técnico-científica, formação e continuidade, raramente necessitando de apoios externos, sempre olhados como transitórios, aguardando o alargamento do quadro definitivo. O acesso ao SNS tornou-se verdadeiramente universal e gratuito, não existindo quaisquer taxas «moderadoras» ou outras.
Assim se deu, simultaneamente, o progressivo assalariamento e funcionalização dos médicos, tornados inevitáveis pela evolução técnica, multidisciplinaridade e investimento financeiro crescentes, num quadro socialmente prestigiado, cujos direitos e dignidade o Estado assegurava.
Ganhava-se menos na «pública» do que na «privada», que tinha melhor hotelaria (havia bastantes hospitais públicos velhos e sem condições), mas era muito menos diferenciada. Era, contudo, no serviço público que a formação, a diferenciação e realização profissionais se encontravam asseguradas, constituindo o primeiro e principal «emprego» onde a estabilidade e a progressão por antiguidade e mérito se realizavam, e a pensão garantia tranquilidade no futuro.
Aos poucos, o tradicional modelo horário vindo da assistência caritativa das Misericórdias, onde os médicos trabalhavam «à borla» de manhã para, depois, irem «ganhar a vida» nos consultórios à tarde, começou a ser substituído por um tempo mais alargado no serviço público, com o apoio de administradores de carreira que se constituíam «parceiros» na ajuda à actividade clínica, empenhados não em números e estatísticas, mas em resolver os problemas que dificultavam a prestação dos cuidados a que os cidadãos tinham direito.
Contudo, logo que os partidos do «arco do poder» (PS, PSD e CDS) conseguiram travar o impulso revolucionário e participativo da «populaça» e se sentiram mais fortes reduzindo a democracia à mera captação do voto, os problemas inerentes ao próprio crescimento do SNS que necessitavam de solução (facilidade de acesso, listas de espera cirúrgicas, ligação dos cuidados primários com os diferenciados) deixaram de ter a necessária resposta por parte dos responsáveis governamentais.
Foram esses partidos que concertaram um acordo estratégico de (neo)liberalização da economia onde a privatização da Saúde, à «americana», e a sua entrega a grandes grupos financeiros, constituía uma parte do bolo que iria encher os bolsos dos regressados «velhos» senhores da indústria (Mellos, Espírito Santo e companhia), apostados neste novo negócio feito à sombra do Orçamento.
Propagandeado e repetido até à exaustão o argumento falsamente «neutro» de não haver dinheiro que chegasse (em tempos agora considerados «de vacas gordas»), primeiro com pezinhos de lã e depois atacado por todos os lados, o SNS viu, nas últimas décadas, o seu financiamento diminuir em valor relativo e até em absoluto (926 euros per capita em 2005, 921 euros em 2014 – Pordata), as administrações e chefias sequestradas pelos partidos do poder, o trabalho clínico emperrado por uma crescente administrativização e burocracia, a sua informatização alvo de negócios escuros e desviada de objectivos assistenciais, os gastos (em tempo e dinheiro) no controlo numérico da «produção» e em contratos externos a explodirem, as suas listas de espera canalizadas para «a privada», os seus trabalhadores desrespeitados com mais precariedade, mais horas de trabalho e menos salários e pensões, os seus serviços desnatados dos quadros mais diferenciados, o ensino e formação sacrificados ao «desempenho» e às suas criativas estatísticas.
«Foram esses partidos [PS, PSD e CDS] que concertaram um acordo estratégico de (neo)liberalização da economia onde a privatização da Saúde, à "americana", e a sua entrega a grandes grupos financeiros, constituía uma parte do bolo que iria encher os bolsos dos regressados "velhos" senhores da indústria»
O acesso ao SNS passou a ser pago por taxas pseudo «moderadoras» cada vez mais caras, impondo a dupla tributação de um serviço já pré-pago pelos impostos, alargando o seu âmbito a consultas e exames que os cidadãos não podiam moderar, configurando um inconstitucional co-pagamento e desviando recursos humanos necessários à actividade clínica para a sua cobrança.
A imagem e prestígio do SNS foram alvo de uma campanha mediática que o pôs constantemente em causa em comentários e notícias que repetiram até à náusea as suas reais ou inventadas insuficiências, não para as resolverem dentro do âmbito público, mas para desviarem os possuidores de seguros (tornados obrigatórios para empréstimos bancários) e as camadas com mais posses para a medicina privada, com o maior caudal entregue aos grandes grupos financeiros, cujos lucros na saúde engordaram a taxas de dois dígitos ao ano (a Luz Saúde, ex-BES Saúde, teve um crescimento de 20,3% de resultados líquidos em 2015), aumentando de instalações, camas e «quota de mercado».
O ataque ao SNS, estrategicamente desenvolvido pelo «centrão» dos interesses em nome da «eficácia», «modernização» e «aperfeiçoamento», conseguiu impregnar o serviço público com a pior lógica de «empresarialização» e «lucro» da medicina privada, levando à sua desumanização e degradação, fazendo com que começasse a ser percebido como uma alternativa de segunda, mais demorada, mais fraca e mais reservada «aos pobres».
O SNS perdeu terreno para os hospitais e clínicas privadas, que floresceram com anúncios alegres e cheios de frescura por todo o lado, transmitindo uma imagem de melhor e mais rápido atendimento, o que, por vezes, até se confirma (principalmente nos casos clinicamente menos graves e exigentes), à medida que os serviços públicos entopem com as tropelias que lhes fazem, por muitos ingenuamente encaradas como mera incompetência ou míope economicismo da Tutela.
Mas uma das maiores derrotas do SNS é o esquecimento ou abdicação dos cidadãos mais velhos do que ele representou como construção de um país melhor, e o desconhecimento dos mais novos do que significa como direito de cidadania a cuidados humanizados e de qualidade, uma vez que já o encontraram diferente, inquinado e corrompido. É também o esquecimento ou o desconhecimento das novas gerações de médicos e de outros profissionais da Saúde das virtudes da gestão democrática, da segurança das carreiras, da igualdade de salários nos diversos graus e cargos, sem a pulverização de contratos individuais e de empresas, sem o fatiamento em departamentos sem sentido, sem formas de gestão autocráticas e abusivas, sem escolhas partidárias para cargos e chefias.
Não sei se, como afirmou o ministro da Saúde na véspera deste Natal numa visita ao Hospital Pediátrico de Coimbra (agora tratado como simples «departamento pediátrico»), o SNS ainda «é um dos melhores serviços públicos de Saúde». Mas, se não é, já foi. Antes de os governos do PS, PSD e CDS das últimas décadas, que tanto o elogiavam, o terem atacado.
«Mas uma das maiores derrotas do SNS é o esquecimento ou abdicação dos cidadãos mais velhos do que ele representou como construção de um país melhor, e o desconhecimento dos mais novos do que significa como direito de cidadania a cuidados humanizados e de qualidade»
A manutenção do Conselho de Administração (CA) do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) e do seu presidente, nomeados pelo governo de Passos Coelho e responsáveis por graves agressões ao SNS, de que se destaca a forçada «fusão» dos hospitais de Coimbra com esventramento do Hospital dos Covões, é uma marca ilustrativa da pequenez da «mudança» e da força da «continuidade» do novo ministro e da sua equipa, neste ano de 2016 quase a terminar.
Entre outros desastres e obras de fachada, o CA dos CHUC – que chegou a concorrer à gestão de um hospital na Argélia e perspectivou «novas unidades satélite do CHUC além-fronteiras» – anunciou, em Maio de 2013, a abertura de «um pioneiro Centro de Ensaios Clínicos», notícia que mereceu a maior atenção das televisões e dos jornais.
Inaugurado um ano depois (Maio 2014), com um ainda maior impacto mediático e as presenças do ministro Paulo Macedo, de secretários de Estado, directores gerais e de que quatro prémios Nobel (!), «o primeiro centro nacional para ensaios clínicos – fase I», como os que «existem na Europa, nos grandes hospitais de ponta, de grande inovação» – nas palavras do Dr. José Nunes, presidente do CA dos CHUC –, constituía «uma grande iniciativa pioneira e rentável», que dava aos CHUC «uma maior visibilidade nacional e internacional no âmbito da investigação clínica», proporcionando ainda a assistência «a um número cada vez maior de nossos doentes, que passará a dispor dos mais recentes inovações em termos de medicamentos, dispositivos médicos e tecnologias da saúde».
Ora, sem querer discutir eventuais vantagens da «turbinagem de conhecimentos» que, no palavroso enunciado do presidente do CA, o «Centro de Ensaios – fase I» iria proporcionar, a verdade é que tal centro não viu até hoje ensaio nenhum, ocupando, há mais de dois anos, uma enfermaria «desactivada» do Hospital dos Covões, que continua deserta e fechada, mantendo a desbotada placa de inauguração à porta, ensaiando apenas o escandaloso silêncio do vazio.
Este é apenas um exemplo da realidade discursiva e oca que faz as páginas dos jornais e inspira o empreendedorismo bacoco de muitos «gestores» do SNS, que parecem mais preocupados com «as oportunidades de negócio» e a «boa imagem» do que com a nobre missão de assistência aos cidadãos.
Não basta, por isso, desbloquear alguns contratos, alargar alguns benefícios, tornar menos abusivas algumas taxas «moderadoras», melhorar alguns horários, prometer algumas obras (como a nova maternidade em Coimbra), para fazer reverter as sequelas das dolosas medidas tomadas nas últimas décadas contra o SNS.
É preciso uma ruptura com a política de destruição neoliberal do SNS e as suas manifestações ideológicas, que favorecem a grande privada e as Parcerias Público-Privadas que lhe sugam os recursos.
Não chega uma aspirina para tratar um cancro destes.
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