Sim, quando Ulrich diz que não foram os contribuintes que pagaram a banca e que os bancos destruíram 35,5 mil milhões de euros aos seus próprios accionistas, está a esconder uma parte muito importante da verdade.
Vamos aos dados públicos mais fiáveis: os bancos portugueses, entre 2000 e 2007, distribuíram 6,151 milhões de euros em dividendos aos seus accionistas e, entre 2008 e 2010, distribuíram mais 1,192 milhões.
Entre 2011 e 2014, o valor distribuído em dividendos cai drasticamente para 253 milhões de euros. No período entre 2008 e 2014, os bancos foram recapitalizados por privados num total de 14 233 milhões de euros e 11 450 milhões de euros pelo Estado.
Este valor não inclui os custos com a operação BPN, que já ascende a qualquer coisa como 6 mil milhões de euros e pode vir a ficar ainda mais cara. E temos também de acrescer a esses 11 450 milhões os 3,3 mil milhões que implicou a resolução do Banif, o que faz com que a participação pública directa em aumentos de capital da banca ascenda ao 14 750 milhões, ultrapassando o esforço dos accionistas privados.
Mas a verdade vai muito além desta álgebra elementar onde Ulrich tenta situar o debate sobre quem pagou as dívidas da banca. Os 35,5 mil milhões dos accionistas que Ulrich diz terem sido destruídos nos bancos portugueses, dando a entender que os accionistas suportaram o incumprimento do crédito das famílias e das empresas quase sozinhos, existem de facto? Como foram destruídos?
Se, por um lado, é verdade que o crédito não pago gera uma quebra tremenda no balanço dos bancos, por outro lado não podemos esquecer que é supostamente para precaver esse risco que os bancos cobram as taxas de juro exorbitantes que cobram e que também por isso exigem garantias a todas as pequenas e médias empresas e famílias a quem emprestam dinheiro. No entanto, como já vimos, entre 2000 e 2007, andaram a distribuir dividendos gerados por créditos que concediam sem qualquer avaliação de risco.
Ulrich manipula a verdade de várias formas: em primeiro lugar, a banca não destruiu 35,5 mil milhões de euros aos accionistas. Os accionistas entraram nos aumentos de capital das instituições, de livre vontade, porque o negócio lhes era favorável e o investimento que fizeram não foi destruído. Pelo contrário, nas instituições que não foram alvo de medida de resolução ou nacionalização, o capital dos accionistas continua lá e continua a ser dos accionistas.
«O BES alimentou créditos a empresas de fachada que depois regressavam ao banco sobre a forma de capital, quando na verdade era crédito.»
Em segundo lugar, os aumentos de capital foram em muitos casos financiados por empréstimos. Ulrich usa nas suas declarações o exemplo do BES, cujos accionistas terão participado em aumentos de capital no valor de 13 mil milhões de euros.
Ignorará porventura que a Comissão de Inquérito parlamentar ao caso BES/GES apurou que uma boa parte desses aumentos de capital tinha origem em créditos concedidos por instituições bancárias, muitos deles com origem no próprio BES? Ou seja, o BES alimentou créditos a empresas de fachada que depois regressavam ao banco sobre a forma de capital, quando na verdade era crédito.
Ao mesmo tempo, o BES financiava as actividades da família e das várias empresas do GES sem que estes pagassem os empréstimos contraídos no BES. Isto significa que os grandes accionistas do BES não retiraram dividendos dos 13 mil milhões que colocaram nos aumentos de capital, mas que também nunca lá os colocaram verdadeiramente porque esse dinheiro não era deles.
«O BCP, que entra amanhã com mais um mega-aumento de capital no mercado (primeiro dia de transação de direitos), pediu aos accionistas 9,405 mil milhões de euros desde 2001, e pagou em dividendos 1,837 mil milhões, o que significa que os accionistas "deram" ao banco 7,568 mil milhões de euros», lê-se na peça redigida pelo Jornal Económico em torno das declarações do banqueiro.
Então não se está a ver que os accionistas deram ao Banco 7,568 milhões de euros? Então e esses 7,568 milhões não são dos accionistas? Não são capital da instituição detido por esses mesmos accionistas? E que mais queria Ulrich? Que os accionistas da instituição não tivessem de investir? A qualquer momento podem vender as suas participações ao preço de mercado e isso é uma das maravilhas do capitalismo. Com isso, tanto podem perder como ganhar, dependendo do valor da acção no momento da venda.
É verdade que quando o volume de crédito malparado atinge determinados valores, um valor igual deve ser provisionado pelo banco, sendo retirado ao capital do accionista, mas esse é o risco do investimento privado. A questão coloca-se precisamente na ausência desse risco: é que o accionista da banca pode, de facto, vir a perder o seu capital num processo de resolução de um banco, mas não perderá o dinheiro que recebeu da instituição. O BES, por exemplo, entre 1992 e 2011, distribuiu mais de 7 mil milhões de euros em dividendos aos accionistas e, como já referimos, distribuiu muito mais do que isso em créditos.
A questão fundamental que devemos colocar não é só quem anda a pagar os buracos dos bancos, mas sim, por que motivos existem essas dívidas e como podemos permitir que a moeda e o crédito sejam geridos ao sabor do interesse de accionistas de empresas privadas, quando são importantes bens públicos.
As declarações de Ulrich demonstram a desfaçatez com que os banqueiros mascaram as suas contas, como tentam ainda responsabilizar os portugueses pelas perdas dos accionistas ao invés de reconhecer que os portugueses andam a pagar as aventuras dos banqueiros.
«O que as declarações de Ulrich demonstram é que a República não pode deixar à confiança de privados uma matéria tão importante como a gestão da moeda e do financiamento à economia.»
O homem tem o descaramento de dizer que em Portugal «o custo suportado pelo Estado e contribuintes foi muito baixo quando comparado com os acionistas e com outros países» e de dizer que será apenas de 4,4 a 6,1 mil milhões de euros o valor de gastos públicos com a banca.
Um só euro pago pelo dinheiro que os banqueiros emprestaram a amigos, ou a si próprios, ou a grandes grupos económicos sem pedir garantias, ou a empresas detidas pelos accionistas dos bancos, ou a off-shores, já seria demais, e Ulrich sente-se no direito de dizer que o Estado português até nem gastou assim tanto.
O que as declarações de Ulrich demonstram é que a República não pode deixar à confiança de privados uma matéria tão importante como a gestão da moeda e do financiamento à economia. Ulrich demonstra bem como os banqueiros continuam a mascarar as perdas dos seus bancos e como escondem que se financiam a si próprios precisamente nas instituições em que são accionistas ou em outras, através de interesses cruzados que acabam sempre por estourar nas mãos do depositante e do Estado.
É que, ao contrário de Ulrich e dos seus compinchas, grandes accionistas, os portugueses não optaram por participar no capital de bancos privados, nem por entregar milhares de milhões de euros – produzidos com o seu próprio esforço e trabalho – a bancos mal geridos ou falidos, foram pura e simplesmente obrigados a fazê-lo.
É a diferença entre jogar voluntariamente na roleta e perder e ser assaltado. Neste caso, assaltam-te para ir a seguir jogar na roleta e, na maior parte dos casos, sai-lhes o prémio.
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