No fim-de-semana de 7 e 8 de Janeiro, o Fórum dos Cidadãos, que se assume «em parte um projecto académico e em parte um movimento da sociedade civil»1, com a «missão revigorar a democracia portuguesa»2, realizou na Universidade Nova de Lisboa a primeira edição do «Fórum dos Cidadãos», debatendo propostas para «melhorar a comunicação entre os cidadãos e os políticos».
A iniciativa justificou a «cobertura» de vários órgãos de informação, embora nenhum tenha acompanhado o encontro por dentro, limitando-a a peças de antecipação e de mera publicitação das propostas finais.
Fosse porque os media dedicam uma devoção por vezes acrítica aos «movimentos sociais» («alternativos» aos partidos e aos sindicatos…), fosse porque considerassem suficiente a autoridade académica dos promotores, fosse por falta de tempo e de espaço, ficaram por responder questões essenciais sobre uma iniciativa apresentada como «um dos instrumentos para regenerar o sistema».
O tema dessa primeira edição foi «Como fazer-nos ouvir». Para o efeito, os promotores, investigadores do Instituto de Filosofia da Universidade Nova de Lisboa e do Centro Gulbenkian de Ciência, seleccionaram, por sorteio, 15 cidadãos, que apresentaram como amostra representativa da diversidade da população portuguesa, postos a ouvir palestrantes «de esquerda e de direita». De resto, o «Forum» diz contar com «apoiantes de todos os quadrantes, desde o Rui Tavares ao Adriano Moreira»3 e «abarca todo o espectro político português»4.
Eis algumas perguntas que deveriam ter sido feitas:
Quinze cidadãos são uma «amostra» suficientemente expressiva?
Os participantes foram escolhidos por sorteio com a ajuda de uma «empresa de estudos de mercado». Como foi feito o sorteio? Com que método? Com que universo?
As «características fundamentais» da amostra eram o género, a idade, o grau de educação e diferentes regiões. No entanto, quanto ao nível e educação, 46,6% dos participantes são licenciados ou mestres5, mais do dobro da percentagem da população com tais habilitações. Por que razões a «amostra» não foi afinada no sorteio?
Quanto às actividades profissionais, em 15 participantes havia seis gestores (40%!), cinco técnicos, um administrativo… Não há um operário, um agricultor… Questão: Não terá ficado comprometida a representatividade profissional da amostra?
Quanto aos palestrantes e outras personalidades escutadas pelos participantes, tratou-se de um deputado do Partido Social Democrata, um ex-deputado do Partido Socialista, dois professores universitários e um jornalista6. Foi preenchido o requisito da diversidade?
Relativamente aos apoiantes, verifica-se que, dos 15 elencados no Relatório Preliminar7, quatro são publicamente associados ao campo PSD/CDS, outros tantos ao campo do PS, um ao Bloco de Esquerda e um ao Livre. E não se pode afirmar que os restantes ajudem a «cobrir» o que falta do real «espectro político português». Por que razões faltam personalidades de outros campos?
«A proposta exige reflexão mais aturada, mas é razoável recear que, a ser aplicada, conduza a uma democracia dos cliques e de "gostos", cedendo à demagógica engenharia da ilusão de participação cívica de sofá através das redes sociais, de resto tão do agrado dos media (...)»
Discutindo propostas para melhorar a comunicação com os políticos a partir das dez «mais promissoras» de dezenas de ideias recolhidas num concurso aberto aos cibernautas em Novembro e Dezembro, os participantes chegaram a três finais8. Vejamos as duas principais.
A primeira consiste no acompanhamento e participação «dos cidadãos» no processo legislativo, através de uma plataforma em linha, e do funcionamento de «Conselhos de Cidadãos» (um por cada proposta/projecto de lei mais votados…) junto da Assembleia da República. Designada «Eu conto», a plataforma divulgaria os diplomas em discussão, acompanhados de avaliações (por quem?...), permitindo aos internautas expressarem o «interesse» por cada uma delas.
Os documentos que obtivessem mais de 2500 «cliques» no botão «Eu tenho interesse» seriam objecto de «parecer» a elaborar por um «Conselho de Cidadãos» composto por 20 pessoas – cinco «especialistas», dez que votaram na proposta para discussão e cinco escolhidas aleatoriamente dos cadernos eleitorais. «Geridos» por um «moderador independente», reunir-se-iam na Assembleia da República durante um a três dias (com despesas pagas e remuneração atribuída) e profeririam um parecer a ler antes da votação pelos deputados.
A proposta exige reflexão mais aturada, mas é razoável recear que, a ser aplicada, conduza a uma democracia dos cliques e de «gostos», cedendo à demagógica engenharia da ilusão de participação cívica de sofá através das redes sociais, de resto tão do agrado dos media, de que a «cobertura» das manifestações «apartidárias e não sindicais» de 2011 a 2012 foi exemplar.
Basta observar as avalanches de adesões a convocatórias profundamente antidemocráticas, de que foi expoente a «manifestação um milhão na Avenida da Liberdade pela demissão de toda a classe política»9 e de assinaturas em petições irrelevantes, para recear a facilidade com que seriam arrebanhadas manifestações de «interesse».
O risco de um caudilhismo electrónico, a cargo de «conselhos» de extracção obscura, que os cidadãos não elegeram, não fiscalizam e não escrutinam, mas que antecipariam os seus pareceres ao pronunciamento de deputados eleitos democraticamente e a um Parlamento que emana legitimamente do povo, aconselharia os jornalistas a colocar algumas perguntas básicas.
Por exemplo:
Que mecanismos idóneos de verificação da autenticidade da identidade dos «interessados» seriam aplicados?
Por que razões bastariam 2500 simples cliques no botão «Eu tenho interesse» para levar à constituição de um «Conselho de Cidadãos», quando o regime de petições em vigor impõe, para efeito da apreciação parlamentar, a subscrição por mais de quatro mil cidadãos?
Tendo em conta o volume médio de 330 projectos e propostas de lei entrados em cada sessão legislativa das três últimas legislaturas10, que número de diplomas susceptível de suscitar o «interesse» de mais de 2500 internautas poderia ser considerado? Quantos «conselhos de cidadãos» teriam de ser constituídos? Quantos «conselheiros» (20 X n, sendo n = número de conselhos a constituir…) implicariam? Que custos (em ressarcimento de despesas e remunerações) acarretariam?
Quanto ao preenchimento de cada «Conselho de Cidadãos», quem, sob que critérios e escrutináveis por quem, designaria os cinco «especialistas» previstos? Quem, sob que critérios e suportado em que regras democráticas escolheria dez de entre os cidadãos que votaram na proposta a discutir? E como, com que critérios e com que garantias seriam escolhidos os cinco restantes nos cadernos eleitorais?
Quanto ao «moderador independente» do dito «Conselho», que perfil, quem o define, com que objectivos e critérios, com que garantias de imparcialidade?
Poderia a actividade de tais conselhos constituir uma forma de pressão ilegítima sobre os deputados eleitos democraticamente?
Segunda: A verificação da aplicação das medidas do governo e das promessas e decisões políticas, bem como da «aplicabilidade e seriedade das promessas eleitorais», através de uma plataforma – o «Verificador». Esta plataforma seria composta por «verificadores e explicadores imparciais que tenham o acordo das várias forças políticas representadas» e gerida por uma organização não-governamental ou uma fundação sem fins lucrativos.
Do ponto de vista da cidadania, isto é, do exercício do escrutínio activo da actividade política, esta proposta reveste um interesse não negligenciável, desde que represente uma iniciativa cidadã autónoma. Mas justifica alguns esclarecimentos essenciais que enriqueceriam a cobertura da iniciativa.
Exemplos:
Qual seria o perfil e quem escolheria, e sob que critérios e garantias, os «verificadores e explicadores imparciais»?
O «acordo das várias forças políticas» aos «verificadores e explicadores» seria dado por unanimidade, maioria qualificada, maioria simples?
Se a plataforma seria gerida por uma ONG ou por uma fundação, por que razões necessitaria da caução das forças políticas representadas no Parlamento?
As notícias sobre as soluções e as alternativas para «regenerar o sistema» democrático são certamente interessantes. Mas, por muito excitantes que sejam as novidades de laboratório, os jornalistas não estão dispensados do dever de questioná-las, por muito ingénuas ou descabidas que algumas perguntas possam ser ou parecer. Por isso é que a sua missão é de mediação.
- 1. Público, 7 de Janeiro de 2017
- 2. Relatório Preliminar – Primeira edição Fórum dos Cidadãos, 17 de Janeiro de 2017
- 3. Manuel Arrigada, o principal dinamizador, em entrevista ao Público (edição referida)
- 4. Relatório preliminar, página 9
- 5. Relatório Preliminar, página 11
- 6. Relatório Preliminar, página 6
- 7. Páginas 36 e 37
- 8. Páginas 19 a 22
- 9. Segundo o jornal i de 19 de Fevereiro de 2011 tinha já cerca de 23 mil seguidores
- 10. Estimado tendo em conta os 3292 entrados nas X, XI e XII legislaturas, de acordo com os relatórios e estatísticas da actividade parlamentar
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