O que se passou em Portugal com a Troika não foi apenas uma estratégia de desvalorização do bem-estar social da maior parte da população nem tão somente uma orquestração do desmantelamento do Estado enquanto actor económico. É possível juntar evidência e argumentar que não se tratou apenas de uma austerização social e de uma austerização pública.
A austeridade foi também um plano concertado interna e externamente para deteriorar as próprias capacidades emancipatórias da economia portuguesa. Isto é, a «política industrial» continuou a ser desprezada precisamente quando poderia ser um instrumento para dar a volta à atrofia onde tinha caído o tecido produtivo.
O Memorando não incluiu dispositivos para que os países em crise se reforçassem. Uma característica-chave dos países que escaparam a resgates: a existência de políticas industriais robustas e dinâmicas.
A existir uma estratégia económica produtiva poderia ser sido um caminho para meter a economia a ser capaz de recuperar passivos e desequilíbrios. Ao invés disso tivemos uma terapia fiscalista e financista que extorquiu contribuintes, explorou trabalhadores e maniatou decisores públicos com visões construtivas para o futuro. Os países que na Europa não foram alvos de resgate foram, por exemplo, os que mais investiram em investigação e inovação: aos países que foram alvo de «assistência» não foi dada qualquer chance de recuperarem esta alavanca para a renovação da sua estrutura produtiva.
O «Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica» de 17 de Maio de 2011 tratou-se de mais que um decretar de uma política de regressão social baseada numa repressão económica, sobretudo virada para contração da despesa pública. Isso é visível imediatamente a seguir ao preâmbulo. O primeiro ponto, dedicado a medidas orçamentais, é rido num vocabulário orientado para o empobrecimento: «congelar», «controlar», «reduzir», «suspender», «limitar», «eliminação».
A abordagem fiscalista da Troika foi auto-derrotista no curto prazo e cavou desnecessariamente mais crise, onde crise já havia.
Como hoje sabemos, esta abordagem foi auto-derrotista no curto prazo e nos próprios termos do Memorando. Os cortes fizeram agravar a cova do ciclo económico mais do que o esperado pelas troikas externa (Comissão Europeia, BCE, FMI) e interna (CDS, PSD e o então Presidente Cavaco Silva).
Com a economia a cair e o desemprego a disparar, as receitas fiscais associadas ressentiram-se ao mesmo tempo que os custos dos estabilizadores automáticos exerciam pressão: os défices descarrilaram, os orçamentos tiveram de ser rectificados sucessivamente, a dívida pública dilatou-se inexoravelmente.
Por exemplo, no final de 2013 o défice atingiu 4,9% do PIB, muito acima dos 3% previstos. Bem pior que isso, em três anos (2011, 2012 e 2013) a persistente destruição sucessiva de riqueza atingiu um nível sem precedentes desde que existem contas nacionais: um total acumulado de 7% do PIB.
Sim, o super-ciclo de uma recessão internacional com a sobreposição artificialmente induzida de austeridade foi um duplo-choque no lado da procura que cavou desnecessariamente mais crise, onde crise já havia.
No que toca ao médio e longo prazo, a abordagem da Troika foi uma desconsideração militante do desenvolvimento das forças capazes de dar sustentabilidade duradoura à recuperação dos equilíbrios externos da economia portuguesa.
O que destacamos aqui, no entanto, é outra coisa: depois de anos de desindustrialização, que fizeram fraca uma economia subjugada a um euro forte, o Memorando representou uma activista (isto é, deliberada e agressiva) desconsideração do desenvolvimento das forças produtivas da economia portuguesa.
A emigração de jovens qualificados, fenómeno com efeitos destrutivos permanentes do lado da oferta, não foi colmatada com medidas criadoras capazes de actuar nos factores que desde a introdução da moeda única tinha levado ao agravamento o desequilíbrio da balança corrente. Se durante estes anos os desequilíbrios externos da economia foram esbatidos isso deveu-se a um colapso das importações, já que o crescimento das exportações vinha de trás e continuou.
O Memorando elencava 223 pontos específicos. Mais de 50% destas (118 medidas) incidiam em ajustamentos orçamentais conjunturais e estruturais. Identificar medidas construtivas nesse documento de 35 páginas não é fácil.
No Memorando palavras como «investimento», «produtividade» e «competitividade» foram diluídas numa novilíngua que perverteu o seu significado como variáveis, ferramentas ou objectivos de política económica.
Palavras como «investimento», «produtividade», «competitividade» são pouco ou nada usadas, e quando o são o seu sentido é pervertido. Por exemplo, quando o termo «investimento» aparece pela primeira vez é para significar que o Sector Empresarial do Estado terá de reduzir estes compromissos em 500 milhões de Euros (medida 1.17).
Quando se fala de «competitividade das empresas» ou de «produtividade ao nível das empresas», estes conceitos são vistos como equivalentes à compressão dos custos do trabalho (medidas 1.3 e 4.8).
Com alguma generosidade é possível identificar algumas medidas viradas para as bases do tecido produtivo, e cujo desenho poderá ser assumido como pretendendo dar condições a um aumento do produto potencial da economia portuguesa. Estas medidas são apenas quatro, ou seja, 1,8% do total das medidas da troika.
A saber:
– combate à «baixa escolaridade e ao abandono escolar precoce, e melhorar a qualidade do ensino secundário e do ensino e formação profissional» (medida 4.10);
– revisão dos «esquemas de apoio à co‐geração» (medida 5.7);
– melhoria «do regime de reconhecimento das qualificações profissionais» (medida 5.30);
– adopção do programa «Simplex Exports» (media 7.30).
Eis afinal que o Memorando tinha uma «política industrial» escondida: continuar a manter a banca no vértice do poder económico e promover uma indústria, alegadamente tecnocrata de reguladores, capaz de espartilhar o Estado como actor produtivo e potencialmente emancipador no futuro próximo.
O Memorando preocupava-se sobretudo com um sector pela negativa. A troika permitiu e acelerou a venda, por uns 7 mil milhões de euros, da presença pública na EDP, ANA, Galp, REN, CTT e no ramo segurador da CGD. Com o fim da posse e dos direitos privilegiados de influência na administração (golden share) perderam-se instrumentos de política económica real.
Ao mesmo tempo, e como discriminação positiva, o Memorando procurava manter a banca acima das exigências impostas a outros sectores da sociedade, ao mesmo tempo que exigia a cada vez mais clara emergência de um sector autónomo de agências reguladoras, um verdadeiro para-Estado pseudo-independente fora da alçada do escrutínio democrático normal.
No horizonte dos próximos anos os desafios são estes: 1) voltar a articular uma política pública favorável ao desenvolvimento produtivo do tecido económico nacional; 2) reconstruir equipas e instituições públicas capazes de desenhar e implementar tais medidas num quadro de transparência e prestação democrática de contas; 3) gerir e resolver o complexo oligopolista-regulador que foi criado e alimentado por diversas vagas de «reformas estruturais».
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