É essa memória de intimidação ao Portugal dos cravos que me volta à memória quando vejo na TV um porta-aviões americano a caminho de «libertar» mais um país com «ditadores», «falta de democracia» ou «armas químicas» crivando-o de bombas e mísseis e deixando tudo em ruínas.
Estivemos perto de sofrer uma agressão semelhante nesses anos de reconstrução e alegria, como o então Secretário de Estado, Henry Kissinger, estranho prémio Nobel da Paz, chegou a propor.
Valeu-nos provavelmente a existência da União Soviética, como afirmou depois, David Frombkim, analista conservador americano, a propósito da intervenção no Kosovo (citado por Raquel Varela no seu recente estudo sobre o Serviço Nacional de Saúde): «Na época em que a União Soviética nos refreava, as realidades do poder ter-nos-iam impedido de intervir. É porque agora somos livres de saciar o nosso desejo de apoiar os nossos ideais e a nossas simpatias com mísseis, que estamos lá».
Foi a apoiar os seus ideais e simpatias com mísseis, que os USA fizeram as «guerras humanitárias» da Coreia, do Vietnam, da Jugoslávia, do Afeganistão, do Iraque, da Líbia e da Síria, com os resultados aterradores que se conhecem.
Perante as sequelas humanas e o rasto de destruição, anos depois dirão que houve alguns erros de cálculo, uma estratégia mal baseada, informações imprecisas, como debitarão os média da moda, enterrando, pela segunda vez, as centenas de milhares de mortos que essas guerras causaram.
Em toda esta falsa informação há, nos meios que a fazem, um cheiro a corrupção, medo, falta de memória, de coerência e de dignidade, gente submissa até ao delírio, que aceita papaguear as histórias da carochinha de uma propaganda boçal construída ao gosto das grandes corporações.
Impressiona o número de jornalistas e comentadores (alguns que mereceram respeito, num outro tempo e em outros campos) que dolosamente apagam a repetida violação da carta da ONU, apoiando o ataque com mísseis à Síria, como se o «pormenor» da legalidade internacional nada riscasse, aceitando de imediato como provada a implicação de Assad nos ataques com gás, antes mesmo de qualquer inquérito, de qualquer investigação no terreno, dando estranho e incondicional crédito ao até aí instável «populista» e troca-tintas Donald Trump.
Há, também, uma evidente inversão de toda a lógica, porque, para além do governo Sírio ser o último a querer dar qualquer pretexto a uma intervenção «ocidental», as suas armas químicas foram destruídas sob controlo internacional, e há indiscutíveis provas de que o Daesh e a Al Nusra – Al-Qaeda as possuem (alguns dos seus membros foram presos na Turquia na sua posse), sendo eles os grandes interessados na intervenção dos USA.
E como podem ignorar as repetidas encenações dos USA nos media e na ONU, em que as armas químicas e os ataques com gás foram despudoradamente usados como pretexto para agressões «humanitárias» que destruíram países soberanos, com posterior reconhecimento do «erro» por um coro de falsos arrependidos, onde se destacam Bush e Blair?
Como podem embarcar, sem corar de vergonha, nesse déjà vu que levanta, a qualquer cidadão minimamente informado, as maiores reservas e repúdio?
Todos os que acompanham os conflitos desencadeados pelos USA, conhecem os pérfidos negócios que giram à volta da guerra e que a alimentam, e sabem que, como dizia o mais corrupto e cínico político italiano, Giulio Andreotti, «dantes faziam-se armas para fazer a guerra, agora fazem-se guerras para se fazerem armas».
Implícito aos ideais de Abril e ao espírito da nossa Constituição, há o princípio da não-aceitação de qualquer direito natural dos USA e seus aliados de bombardearem um país longínquo, com que nem sequer têm fronteiras, só porque não gostam do um governo que não abre mão da sua soberania e das suas reservas de petróleo. E a onda de apoio dos nossos média dominantes a uma acção bélica unilateral e ilegítima que viola a Carta da ONU e agride uma nação soberana aí representada, é pouco consentânea com afirmações da defesa da paz e dos direitos democráticos que Abril representa.
«Todos os que acompanham os conflitos desencadeados pelos USA, conhecem os pérfidos negócios que giram à volta da guerra e que a alimentam, e sabem que, como dizia o mais corrupto e cínico político italiano, Giulio Andreotti, "dantes faziam-se armas para fazer a guerra, agora fazem-se guerras para se fazerem armas".»
Mais grave, naturalmente, é a posição do secretário-geral da ONU, o português António Guterres, que, como num concurso de misses, balbuciou desejos de paz na Terra e de boa-vontade entre os homens, engolindo a violação das regras internacionais que devia proteger e a pesporrência dos States, cuja embaixadora «avisou» que, se a ONU não fizesse o que queriam, seriam os USA a fazerem a guerra sem ligarem nada à ONU.
Poucos dias depois (10-4-2017), nas quatro páginas dedicadas pelo Público ao desempenho do nosso ex-primeiro-ministro como Secretário-Geral da ONU, a jornalista voltou a assobiar para o lado e nem chegou a abordar o assunto, como se o ataque americano à Síria não enterrasse definitivamente a «independência» e o «perfil muito político e assertivo» de Guterres, tornando ridículas as elogiosas palavras do ministro Augusto Santos Silva, também aí citado, que mais pareceram pretender disfarçar a triste figura do Secretário da ONU e a lamentável mensagem que enviou ao mundo: por favor, não contem comigo para desafiar as leis do império.
O próprio ministro dos negócios estrangeiros português meteu-se no mesmo saco, ao dizer «compreender» a agressão dos USA, sem condenar abertamente a violação da legalidade internacional.
No meio de tanta indignidade, quase passou como normal que o Público, considerado um jornal «de referência», tenha completamente ignorado o bárbaro atentado à bomba na noite de sexta para sábado (15-4-17), que matou 128 pessoas, das quais 68 crianças (xiitas pró-governamentais) evacuadas em autocarros de áreas cercadas pelos «rebeldes moderados» da Al Nusra e do Daesh, no quadro de um acordo previamente negociado.
O traiçoeiro morticínio não existiu para a redacção do Público? Não merecia sequer uma linha depois de tanta preocupação com o povo sírio? Ou foi o facto das fotos das 68 crianças mortas não terem aparecido nas mãos angustiadas da embaixadora dos States na ONU que fez com que o pormenor passasse despercebido ao jornal?
Só três dias depois, o jornal publicou, «Papa Francisco condena ataque a coluna humanitária na Síria», como se tivesse acabado de saber do sucedido pela prédica dominical do sumo pontífice. Poder-se-ia pensar até, com alguma ironia, que o Público só publica notícias com bênção papal...
Talvez seja esta forma incompetente ou facciosa de ignorar e distorcer factos relevantes para a compreensão do que se passa, que faz com que existam tantos «Zangados com os jornais», título do artigo de Victor Balenciano no mesmo jornal (Público, 16-4-2017).
«Algumas pessoas fazem mesmo questão de afirmarem que os deixaram de ler» – afirma o jornalista. «Os argumentos variam. Mas por norma, vão dar ao passado. Expõem que antes havia paixão. Escrevia-se bem. Investigava-se a sério. O pluralismo na informação vingava. E havia independência dos poderes instituídos, ao contrário do que sucederá agora. Agora os jornais serão apenas caixa-de-ressonância desses mesmos poderes», continua.
Quanto a informação ser melhor no passado, depende do passado a que Balenciano se refere. Já houve pior? Houve! (antes do 25 de Abril). Já houve melhor? Houve! (depois do 25 de Abril). Mas quanto ao presente, pelo acima aduzido, parece haver alguma razão para os leitores estarem «zangados com os jornais».
A liberdade de expressão foi uma conquista da revolução dos cravos depois quase meio século de ditadura durante o qual, a contínua omissão dos factos e difusão de mentiras, criou distorções e preconceitos que afastaram os cidadãos da defesa dos seus interesses.
A democracia trouxe a esperança numa informação mais rigorosa que abrisse as portas à livre escolha, sem manipulação nem difusão de «pós-verdades» que levem os cidadãos a apoiar novas e sofisticadas formas de domínio e exploração.
Anos de ataque aos ideais de Abril puseram os grandes meios de informação na posse de uma «elite» possidente e minoritária que aí defende os seus interesses e a sua ideologia, praticando uma outra forma de censura. Por isso os cidadãos estão tão «zangados com os jornais» e com as distorções e manipulações da realidade que muitos dos seus profissionais, por ignorância, medo ou subserviência, lhes pretendem impingir.
Como afirmou, no seu derradeiro discurso, a 31 de Janeiro de 1969, Mário Sacramento, médico, intelectual brilhante e um dos maiores vultos da resistência, «Onde os privilégios económicos subsistem, os direitos políticos não estão enraizados e podem ser coarctados sem dificuldade. A política não é mais do que a cúpula do edifício societário. Pode ser pintada de mil maneiras, mas não deixa por isso de fazer corpo com as paredes que a sustentam.»
As liberdades políticas, como a liberdade de informação, são traves mestras das paredes «do edifício societário», que ficam mais frágeis quando não se aprofunda a democracia económica. É isso que assistimos também por toda a Europa.
Se queremos uma sociedade mais livre, não podemos deixar que se voltem a tapar os caminhos que Abril abriu.
Viva o 25 de Abril!
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