Em 2009, Deborah Brautigam escreveu o livro Dragon's Gift (A dádiva do Dragão), em que sustenta que o relacionamento da China com África não configura qualquer espécie de neocolonialismo 1 Pena não ter havido uma tradução portuguesa.
O livro analisa o programa de ajuda da China com base numa grande diversidade de actividades de desenvolvimento patrocinadas pelo Estado chinês e que os chineses designam por «cooperação económica». O livro explica o que os chineses estão a fazer neste seu envolvimento económico patrocinado pelo Estado na África, como o fazem e por que o fazem.
Penso que é uma boa base para o conhecimento de uma situação que poderá, de forma não isenta de contradições, erradicar crescentemente a pobreza e a fome naquele continente e permitir o desenvolvimento – base essencial para a paz.
O que chama atenção de investigadores e teóricos é a percepção de que a Grande China acordou e tem sede de tomar uma posição hegemónica no sistema internacional. E tudo indica que a terá. Afirma-se como a grande campeã da abertura total dos mercados. Mas importa que a prática actual se coadune com um outro tipo de globalização que saiba desenhar com os restantes países porque a globalização «capitalista» foi negativa, acentuou desigualdades nos planos nacional e internacional.
Aqui em Portugal, os comunistas rejeitam a globalização capitalista e os tratados de livre comércio como o CETA. Ela tem contribuído para a ruína da agricultura, pecuária, pescas, comércio e indústria transformadora, e arrisca provocar um dumping social, impondo reduções de salários e outros direitos dos trabalhadores, uma quebra dos padrões de qualidade e de segurança alimentar e medicamentos, privatizar serviços públicos essenciais e transferir a resolução de conflitos nestas áreas para instâncias em que não teremos nenhum poder de decisão e que decidirão em benefício das grandes multinacionais.
Como o PCP tem referido, Portugal precisa de combater os seus défices, energético, alimentar, tecnológico e demográfico. Precisa de afirmar a sua soberania e resistir à guerra económica da globalização capitalista, defender o seu mercado interno e a sua produção nacional. Não para comerciar menos, mas para comerciar mais; não para fechar Portugal ao mundo, mas para desenvolver relações comerciais e de cooperação mutuamente vantajosas.
E tem referido também que este país não está condenado ao declínio e a uma posição cada vez mais subalterna na divisão internacional do trabalho, não está condenado à estagnação e ao empobrecimento. Mas para isso precisa de crescer e de se desenvolver. Precisa de investimento para promover a produção e a produtividade, a competitividade, o crescimento, o emprego e o bem-estar social, e precisa de ganhar margem de manobra para afirmar o seu projecto soberano de desenvolvimento.
Os momentos mais importantes que tornaram a China num gigante dos investimentos estrangeiros do início do século XXI foram:
– Ainda na década de 1980, quando as economias do mundo inteiro recuperavam do abalo económico e se viram privadas de crescimento, a China deu um primeiro passo para o estrangeiro. A abertura dos seus mercados nos anos 80, mais expressivamente nos anos 90, despertou na China a vontade de expandir os seus negócios, mas não apenas no âmbito da economia nacional. Ela queria novos mercados, novos fornecedores, novos investidores provenientes do estrangeiro.
Apoiada na abertura dos seus mercados, somada a outros factores como excesso de mão-de-obra, resultado da longa reforma agrária e do êxodo rural, a China passou a dispor de custos de mão-de-obra baixíssimos, o que, por sua vez, atraiu muitos investidores internacionais. O crescimento económico chinês teve, assim, o seu grande salto, que conseguiu manter devido a essas grandes entradas de divisas por meio do investimento directo estrangeiro e projectos de cooperação. No meio de diversos problemas, a China conseguiu, em menos de duas décadas, tornar-se o país com a maior quantidade de moeda estrangeira, ultrapassando os EUA, que são o país emissor do dólar.
– Depois disso, a China tem um desempenho extraordinário perante a crise internacional tanto em 1970 como em 2008. Enquanto o mundo se afundava no desespero, nomeadamente as grandes economias dos EUA e da Europa, por conta de um novo esgotamento da economia mundial chamado crise financeira, a China remou contra a maré e afirmou, uma vez mais, o seu poderio económico, indo em apoio da economia mundial.
– Todos os factos apresentados mostram a versatilidade e a dimensão da economia chinesa perante o mundo. Mas a China com todo esse poderio e influência é obrigada a procurar parceiros no mercado internacional que não lhe tragam apenas lucros no mercado financeiro, mas principalmente no de fornecimento dos recursos naturais como o petróleo, gás natural e minérios, caso contrário não poderá dar continuidade a esse seu crescimento.
A análise aos investimentos chineses, na relação da China com a África carenciada de ajuda, revela como os recursos naturais africanos influenciam as decisões chinesas no que diz respeito às suas projecções de investimento no continente africano num futuro próximo.
Essas intenções futuras trazem consigo mudanças para a África, para a China e ainda para países desenvolvidos que se preocupam com as taxas de crescimento e desenvolvimento chinesas dos últimos anos.
Já numa reunião realizada em final de 2015 os estados-membros da União Africana (UA) e da República Popular da China no Fórum sobre Cooperação China-África, criado pelas duas partes no ano 2000, confirmou a cooperação com vantagens mútuas após a concessão em 2014 de 60 mil milhões de dólares de financiamento, incluindo cinco em assistência à concessão e empréstimos sem juros, 35 em empréstimos preferenciais e créditos de exportação em condições mais favoráveis, cinco em capital adicional para o Fundo de Desenvolvimento China-África e o Empréstimo Especial para o Desenvolvimento de PME africanas, e um fundo de cooperação de capacidade de produção entre a China e a África com um fundo de capital inicial de 10 mil milhões. O presidente da UA de então afirmou que a cooperação com a China se realizaria nos domínios da modernização da agricultura, das infra-estruturas, energia e formação e treino dos jovens, o que permitiria construir os três projetos de rede que incluem estradas, caminho-de-ferro e aviação. E que isso iria contribuir para a realização do plano a 50 anos (2063) de desenvolvimento e unificação delineado na Cúpula da UA 2013 em Adis Abeba.
A nova visão da Nova Rota da Seda da China para a África abrange, assim, muito mais que a exploração dos recursos naturais. Na verdade, visa facilitar as capacidades comerciais do continente em servir como mercado de trabalho e de exportação para o excesso de capacidade da China. Salienta que os países africanos só podem estar em condições de comprar produtos chineses em excesso se eles mesmos tiverem uma economia estável e em crescimento, o que é impossível de manter sob um sistema centrado na exportação de energia. E que o valor estratégico dos investimentos chineses em Angola e nos outros países das regiões Sul-Central, Leste e Corno de África está na ligação aos novos corredores transnacionais de transporte multipolares que Pequim está a financiar e a construir em todo o continente. O papel de Angola nessa construção ambiciosa é funcionar como o terminal do Atlântico Sul, através do caminho-de-ferro de Benguela, da era colonial, que a China reabilitou há pouco tempo.
Após a sua (re)inauguração, Angola tem agora o potencial de se juntar o seu porto atlântico do Lobito à região rica em minerais da República Democrática do Congo (RDC), bem como à Cintura do Cobre da Zâmbia. Além disso, a construção do caminho-de-ferro do Noroeste no último estado sem litoral ligaria directamente Lusaka ao Lobito e, num contexto ainda mais amplo, proporcionaria uma alternativa mais segura aos riscos de conflitos no Congo ao ligar Angola com a Tanzânia, ou seja, ao unir as costas de África no Oceano Atlântico e no Oceano Índico. No caso de uma interligação de transporte comercialmente viável poder ser criada entre a Tanzânia e o Quénia, seria então potencialmente importante para a Tanzânia estabelecer uma rota comercial continental com a Etiópia através do corredor LAPSSET 2. E em seguida isso permitiria que duas das maiores economias do continente, a África do Sul e Angola, conduzissem o comércio terrestre, a que acresceriam na Etiópia estados de trânsito estáveis da Comunidade da África Oriental (EAC) da Tanzânia e do Quénia.
Actualmente o Egipto e a Etiópia são os países que têm mais mega projectos com a China.
O governo do Egipto aceitou as consequências sociais negativas decorrentes de «apoios» do FMI e teve que enfrentar a luta dos trabalhadores. Trabalha simultaneamente na área de criação de empregos em mega projectos, com a participação da China, como a duplicação do Canal de Suez, a construção do sistema rodoviário nacional, os túneis sob o Canal de Suez, e o novo projecto agrícola, na nova capital administrativa e as zonas industriais da região do Canal de Suez.
Arkeby Oqubay, coordenador interministerial do Gabinete do Primeiro Ministro da Etiópia, disse que o investimento directo estrangeiro estava a criar milhões de empregos no sector de manufatura, mas precisava haver mais áreas de desenvolvimento industrial. Para ele, «um dos objectivos da Etiópia é liderar o caminho para que a África se torne a fábrica do mundo». Na zona industrial oriental da Etiópia, a fábrica Huajian produz carros que saem da linha de produção da Yangfan Motors, fabricante de automóveis chinesa, e a Di Yuan Ceramics, outra empresa chinesa, produz aí azulejos.
A Huajian atualmente emprega seis mil trabalhadores, mas deve aumentar para 40 mil dentro de cinco anos, quando o Parque Industrial Huajian Light Ethano-China de mil milhões de dólares estiver concluído noutra área da cidade. Huajian já faz sapatos para algumas das principais marcas mundiais na Etiópia, incluindo a Coach e Versace, para além de abastecer o restante mercado interno.
Outros casos de dezenas de países poderiam aqui ser referidos como casos de parcerias com a China (podem ser consultados os balanços que a UNCTAD das Nações Unidas publica anualmente).
Na última década o investimento chinês no continente africano cresceu notavelmente, sendo motivo de algumas críticas por parte estudiosos e pessoas de esquerda em todo o mundo e de preocupações por parte governos capitalistas que questionam o que levou a China a investir pesadamente na África. A procura de recursos para responder às suas necessidades internas é a razão, mas os chineses afirmam que é feita de acordo com os princípios chineses, com os investimentos no continente africano a serem pautados pelas vantagens mútuas de ambas as partes, contribuindo para o respectivo desenvolvimento económico. A China faz também empréstimos, perdoa dívidas, desenvolve formas muito diversas de cooperação bilateral.
É uma atitude bem diferente da dos norte-americanos e europeus. A China não exporta pobreza, pois investe e financia sectores produtivos na África, e também não tenta impor ou vender nenhum tipo de ideologia, como fizeram os americanos e europeus quando colonizaram os países africanos nos séculos passados.
A China não só teve até agora êxito nas suas estratégias e programas de redução da pobreza interna até agora, como assumiu o compromisso de libertar da pobreza até 2020 todos os restantes cerca de 70 milhões de cidadãos chineses ainda pobres.
A generalidade dos governantes africanos apreciam o compromisso da China de trabalhar com 1,2 mil milhões de africanos no desenvolvimento conjunto, promover a integração econômica e construir uma comunidade conjunta com um futuro livre de pobreza. Em África, confia-se que essa parceria imprima rapidez às transformações socioeconómicas.
A China expressou em muitas ocasiões o seu compromisso com a África com uma abordagem prática diversificada e modelos de desenvolvimento com flexibilidade, oferecendo tecnologias e investimentos sem quaisquer condições.
Mas nas relações com países africanos os seus empresários e mesmo académicos com longa experiência de trabalho em África pretendem alterar negativamente a legislação de trabalho aí existente. E argumentam que consideram ser direitos construídos, não na base do crescimento económico mas em hábitos e padrões de vida importados de metrópoles capitalistas, argumentando que é uma «ideologia de ricos» quando muitos países africanos são pobres e têm que sair dessa situação que lhes foi criada pelos que os exploraram e usaram como consumidores, sem deixarem os instrumentos para eles próprios promoverem o seu crescimento económico 3. Trata-se de um paralelismo esquemático com a acumulação do capital como foi feito na China, associado à intenção de um quadro de exploração do trabalho que suscitará naturais e legítimas reacções sindicais.
As potências, hoje mais débeis (EUA e UE, ou dentro desta particularmente a Alemanha e a França ou a Inglaterra em processo de saída), insistem em falar em surdina num novo processo de colonialismo e de exploração de recursos naturais, em que os países africanos seriam enganados com financiamentos em estradas, expansão e restauração das malhas ferroviárias ligando o interior aos grandes portos para o escoamento de suas matérias-primas. E afirmam que a China explora os sectores que mais lhe interessam, garantindo contratos de prestação de serviços africanos, de acesso aos recursos naturais e o direito de explorar determinadas áreas devido a sua capacidade de «perdoar» dívidas a troco de longos contratos, o que geraria a dependência do continente africano para com a China. E referem-se, em particular, aos casos da Nigéria, e, principalmente, ao de Moçambique.
Porém essa é uma questão que se coloca sempre a qualquer país que procure o investimento estrangeiro. Tem havido muitos casos em que a China realiza projetos de infra-estruturas em África usando os seus próprios cidadãos, e não a população local. Assim, nalguns casos, para os africanos não são criados novos empregos. A China hoje exporta técnicos associados a vários destes seus projectos mas ela terá que programar com as autoridades locais a formação crescente de mão-de-obra menos qualificada africana na construção destes projectos e, posteriormente, na sua manutenção.
Temos duas visões ou um paradoxo nestes investimentos em que, por um lado, os países africanos beneficiam dos investimentos, melhoram as suas estruturas físicas e económicas, têm os seus índices de educação e formação elevados, apresentam um desenvolvimento a taxas positivas e acreditam que as parcerias chinesas são benéficas para o crescimento geral do continente. Porém, por outro lado, os críticos ocidentais sublinham que os investimentos que a China tem feito recorrem à isenção de débitos através de cobranças em recursos naturais que, ao longo dos anos, causarão um esgotamento das matérias-primas africanas e o afunilamento e dependência africana, e o seu afastamento no relacionamento económico com os restantes países.
Para os mais críticos da política chinesa, seguindo as tendências dos investimentos chineses no continente africano poder-se-iam notar três possíveis passos que já estariam em vigor nas políticas de cooperação chinesas:
– a expansão das Zonas de Economias Especiais que se formam em torno de recursos naturais mais atraentes para a China, como petróleo e minérios;
– a expansão das operações de crédito, para que mais países possam beneficiar do investimento chinês;
– e a difusão do modelo de Angola, que nada mais seria que a troca do pagamento dos empréstimos pela concessão da exploração de recursos naturais ou mesmo contratos de pagamentos em matérias-primas por longos anos.
Mas o que é verdade é que a intervenção chinesa no continente africano mudou as concepções dos próprios africanos em negociar com os demais países, principalmente com os EUA e UE, os quais terão que alterar as suas políticas de abordagem e interesses caso queiram investir no continente.
A China alcançou mercados africanos e tornou-se forte mesmo longe de casa. Assim, a concorrência entre produtos chineses e produtos estrangeiros tem diminuído em território africano, o que permite à China maior poder de troca e maior estabilidade nos investimentos.
Os estudos feitos às relações sino-africanas revelam que são relações de cooperação internacional que, embora contenham casos isolados de semelhanças neocolonialistas e acabem por desfavorecer o continente africano em alguns aspectos, de uma maneira mais macro acabam por trazer benefícios para ambas as regiões, mesmo que esses benefícios não sejam proporcionais. Tanto a China como os países africanos têm alcançado taxas superiores de desenvolvimento sem precedentes, reforçando a ideia da cooperação internacional 4.
A China não entrou na corrida da hegemonia mundial para perder e o Dragão não se move pela dádiva. Mas está a fazer com que essa hegemonia possa coexistir com um crescente número de polos de crescimento mundiais, a que estariam associados, por isso, outros tantos polos de desenvolvimento estratégico e efectivo poder político, no respeito do direito inalienável da soberania de cada país e do ambiente, e na manutenção da paz, recusando a lógica da corrida aos armamentos pressionada pelos interesses das indústrias de armamentos.
- 1. Deborah Brautig, Dragon'S Gift - The Real Story of China in Africa, 2009, Oxford University Press.
- 2. O projeto de transporte Port Lamu - Sudão do Sul - Etiópia (LAPSSET), também conhecido como o corredor Lamu, é um projeto de transporte e infraestruturas no Quénia que, quando completo, será o segundo corredor de transportes do país. O outro corredor de transportes do Quénia é o corredor de transporte Mombasa-Uganda que passa por Nairobi e grande parte do Rift do Norte.
- 3. Li Xiaoyun, «Industrialization key to poverty reduction in Africa», ChinaDaily/European weekly, 14-20 de Julho de 2017.
- 4. Li Ansham, «China’s New Policy toward Africa», in Robert Rotberg (ed.), China into Africa, Trade, Aid and Influence, Washington, DC, Brookings Institutions Press, 2008.
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