A consciência de que o Serviço Nacional de Saúde (SNS), foi uma das mais importantes conquistas de Abril, é generalizada e reflecte uma realidade inquestionável.
Nunca é demasiado salientar que, partindo de uma base muito insuficiente de cuidados de saúde, com débeis estruturas e poucos profissionais, se construiu num curto período uma rede de cuidados primários, hospitalares e de saúde pública. Tudo se fez democratizando o acesso à saúde, corrigindo desigualdades sociais e geográficas gritantes. O mundo pôs os olhos em Portugal e ainda hoje este processo é usado como exemplo, onde se salienta o papel decisivo e entusiástico dos profissionais e das populações. Era uma honra trabalhar para o SNS.
No entanto, a partir dos anos oitenta a saúde passou a ser olhada como um dos mais importantes campos para negócio.
Apesar da forte defesa consagrada na Constituição da República, e apesar do empenho de muitos profissionais, das suas estruturas organizativas, das populações e dos seus representantes políticos, o ataque tem-se desenvolvido nos últimos trinta anos.
Quando um dia se fizer a história do SNS em Portugal, a decisão de empresarializar os hospitais, retirando-os do sector público administrativo do Estado, criando os Hospitais EPE (Empresas Públicas Empresariais), será vista como estratégica, no processo de tentativa do seu desmantelamento. Ao mesmo tempo, ficará nítido como este processo de desmantelamento visou permitir o crescimento e a estruturação de fortes grupos privados na área da saúde, financiados na realidade com dinheiros públicos.
No fundo, a estratégia e a prática não são muito distintas das que se deram no sector bancário. Também nesta área, foram os dinheiros públicos que, no início e depois dele, tiveram um papel essencial para a reconstituição de grupos financeiros privados. Curiosamente esses grupos financeiros, aparecem depois como motores principais na construção dos grandes grupos privados da saúde.
Com a empresarialização dos hospitais públicos, estes passaram a competir com outros hospitais. Onde deveria haver articulação, cooperação, sinergia e hierarquização de funções, surge apenas a competição.
O caldo ideológico é sempre o que pressupõe ser essa competição a única forma de funcionamento eficaz. O objectivo final é a privatização dos sectores rentáveis.
Recentemente um ex-gestor de um grande hospital do Litoral, actualmente num hospital do interior, permitiu-se dizer: « …Dantes o meu objectivo era retirar clientes dos hospitais do interior, agora que estou no interior, o meu objectivo é exactamente o contrário…». Melhor exemplificação do espírito de competição…
A mesma competição dá-se pelos profissionais. Os hospitais aliciam e desviam médicos de uma forma inaceitável. Perde-se o espírito do SNS, perde-se a noção da função social dos trabalhadores do SNS, indispensável para a sua viabilidade.
Na perspectiva da gestão empresarial de um hospital público, é preferível por exemplo comprar um determinado serviço a uma unidade privada por 100 euros, do que a outro hospital público a 101 euros. Não é preciso ser um génio para perceber que para as contas públicas é muito melhor que os serviços se comprem entre hospitais públicos, dado que assim a poupança global é muito maior.
Um outro aspecto negativo de gestão empresarial passa pela «fatiação» dos hospitais em termos de gestão. O gestor da farmácia hospitalar privilegia uma solução que poupe na sua área, ainda que para isso crie uma despesa maior, por exemplo, na área de transporte de doentes.
Mas é seguramente na área clínica, de contacto directo com os doentes, que os malefícios deste modelo se tornam mais nítidos.
Com a criação deste modelo de gestão separou-se a função de prestador e de pagador.
Como “entidade pagadora”, o Estado tem de contratualizar com os hospitais EPE, os cuidados de saúde que estes prestam e a forma como o Estado paga esses serviços.
É este modelo de financiamento, claramente voltado para uma perspectiva de privatização, que condiciona e desvirtua de forma clara, a prestação de cuidados hospitalares públicos. Dá-se preferência a actos técnicos, cirurgias, meios complementares de diagnóstico, em detrimento de consultas e internamentos das chamadas áreas médicas (medicina interna e afins, mas também psiquiatria e pediatria por exemplo).
Mais ainda, privilegiam-se as chamadas pequenas cirurgias, em comparação com as grandes cirurgias oncológicas. Consequências directas: os hospitais dão prioridade, por exemplo a cirurgia de cataratas, bem financiadas e que ocupam pouco tempo operatório. O IPO do Porto, tem ocupado uma parte significativa dos seus blocos operatórios de ambulatório, a fazer cirurgia de cataratas, para as quais não está vocacionado, ao mesmo tempo que dispara a lista de espera de muitas cirurgias oncológicas.
Este modelo cria ainda especialidades hospitalares de primeira e de segunda, conforme os actos que elas praticam, sejam melhor ou pior financiados.
Mas um dos aspectos mais preversos é que ele estimula a produção hospitalar de actos diagnósticos e terapêuticos de necessidade discutível, aumentando despesa não necessária e desviando verbas que poderiam ser muito mais úteis se aplicadas noutras áreas da saúde: os projectos clínicos dos hospitais, não partem das necessidades reais das populações que servem, mas sim dos modelos de financiamento, indo ao encontro principalmente do que é financeiramente mais vantajoso para o hospital.
Deixa de ser importante o que se faz de concreto e passa a ser decisivo a forma como se apresenta o que se faz ao pagador Estado de forma a obter deste o mais rentável pagamento possível.
O melhor exemplo disso é a forma como as unidades privadas de saúde usam e abusam até ao limite dos chamados subsistemas de saúde, nomeadamente a ADSE. Parta-se de onde se parta ,termina-se sempre num elevado número de exames complementares de diagnóstico, quase sempre muito dispendiosos e desproporcionados ao bom senso clínico.
As direcções clínicas, estão em permanente conflito com as administrações, muitas vezes apenas interessadas nas «contas de mercearia».
Aliás as direcções clínicas deixam de ter a força que a eleição democrática lhes conferia, passando elas e as administrações a ser nomeadas pelo Ministério da Saúde. As nomeações têm sido partidarizadas pelos sucessivos governos.
Como é evidente, há outros aspectos, igualmente importantes, na medicina hospitalar pública em Portugal, que aqui não estão abordados, nomeadamente a destruição das carreiras profissionais, a desregulação dos horários de trabalho, a pressão para a redução das actividades formativas dos serviços médicos e do hospital como um todo. Também as baixas remunerações, a redução do número de profissionais, bem como o seu envelhecimento, condicionam o presente e o futuro da medicina hospitalar.
Mas a mensagem mais importante a deixar é que sem o abandono deste modelo de gestão empresarial e de financiamento dos hospitais, é impossível não só melhorar a qualidade clínica do atendimento, mas principalmente evitar o caminho aberto para privatização.
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