«Governo tem tentado afastar municípios da gestão da água pública»

O presidente da Câmara de Alcácer do Sal, Vítor Proença, vai representar os municípios portugueses no 8.º Fórum Mundial da Água, em Brasília, em Março de 2018. Ao AbrilAbril fala sobre a importância do evento mas também sobre as limitações impostas aos municípios na gestão deste bem público.

Vítor Proença preside também à Associação de Municípios para a Gestão da Água Pública (AMGAP)
Créditos / AbrilAbril

Que importância tem esta iniciativa?

O Fórum Mundial da Água é o maior evento relacionado com a água no mundo. A sua missão é promover a consciencialização, o compromisso político e a acção em questões críticas da água, desde a protecção à gestão e uso da água em todas as suas dimensões numa base ambientalmente saudável.

É a primeira vez que participa no fórum enquanto representante autárquico?

Nesta fase fui nomeado pela Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) como seu representante na Comissão Nacional de Acompanhamento. Será a primeira vez que participarei num fórum desta natureza, em que se esperam quase 5000 participantes.

Existe alguma articulação entre a sua presença e o trabalho que está a ser preparado no âmbito da CPLP?

No âmbito da participação portuguesa «Rumo a Brasília» (2018), Portugal e o  Brasil já desenvolvem uma boa cooperação que se pretende mais desenvolvida com a designada «iniciativa CPLP», envolvendo os países de língua oficial portuguesa.

Em Fevereiro deste ano, o ministro do Ambiente classificou como «erro» e «tolice» a iniciativa do anterior governo, referindo-se concretamente à fusão das Águas do Douro e Paiva com as águas de Trás-os-Montes e Alto Douro. Que desafios acarreta para as autarquias a reversão da fusão do grupo Águas de Portugal?

Como é sabido, o programa do actual Governo coloca como objectivo político, no que respeita aos sistemas de abastecimento de água em Alta, a reversão das agregações feitas pelo anterior governo do PSD/CDS, que na prática originou três grandes sistemas (região Norte, região Centro e região de Lisboa e Vale do Tejo). A região Sul (no que respeita à área de influência das Águas Públicas do Alentejo) e o Algarve, não foram abrangidos por tal processo.

Os desafios maiores com que os municípios estão confrontados é a salvaguarda das suas competências na gestão da água publica, e da garantia de que os investimentos que são necessários estarão assegurados, isto porque, pese embora o actual Governo do PS tenha criticado (e bem, a nosso ver), as políticas do anterior governo no que respeita a este processo (em particular o de ter sido imposto às autarquias), a verdade é que o Governo acaba de criar novas empresas, sem que tenha respeitado a vontade de alguns municípios que não pretendiam integrar o novo modelo de agregação.

Entretanto, os sistemas multimunicipais mantêm-se...

Sim, mantêm-se, como se mantêm as preocupações já anteriormente referidas, ou seja, a salvaguarda das competências dos municípios, a necessidade de novos investimentos e a vontade de saída dos novos sistemas criados (caso dos municípios de Alandroal e Évora), e de pretenderem constituir sistemas intermunicipais e/ou de parceria pública entre o Estado e os municípios (como é o caso dos municípios da região de Setúbal que integram a Simarsul).

Apesar de se tratar de um bem público, a água é apetecível para o sector privado mas lá fora (França, EUA, Espanha, Alemanha, Hungria, …) a tendência está a ser cada vez mais a remunicipalização.

Sim, é do conhecimento público a verificação dessas tendências. No entanto, cá em Portugal também já emergiu um processo de remunicipalização – o caso de Mafra. Mafra, foi o primeiro município a decidir a privatização da água, em 1994, e é agora novamente o primeiro a decidir pela reversão dessa concessão. Certamente reconheceu que a privatização não serve o interesse público. A esta decisão não é estranha a luta das populações em defesa da Água Pública.

Quais são os principais problemas que as autarquias enfrentam no que respeita ao sector da água?

Já antes tive ocasião de referir parte dessas preocupações, designadamente a salvaguarda das competências e a necessidade de assegurar investimentos com apoios comunitários a fundo perdido. No entanto, gostaríamos de dizer que a par dessas preocupações, outras há, que derivam da intenção política do actual Governo do PS em pretender impor as fusões dos sistemas em Baixa, que estão na sua grande maioria sob a gestão dos municípios, com o fim último de se proceder à verticalização das Baixas com as Altas, afastando os municípios do controlo da gestão da água pública. 

Está a falar de um cenário de privatização?

Mais adiante. O Governo, tanto o anterior como o actual, não coloca essa questão. Dizem: «Não, a verticalização não, nada disso, estamos é a ganhar economias de escala». Criam estes conceitos pós-modernos, mas o que eles querem é agregar para privatizar mais adiante. Veja-se o caso da EDP.

De que forma estão os municípios limitados na gestão das Baixas?

Vou dar-lhe um exemplo que já aconteceu em Alcácer do Sal, em que neste caso renovámos três redes de água. Candidatámo-nos aos fundos comunitários mas a candidatura foi rejeitada porque a nível nacional (isto não é com Bruxelas, é com o Governo português) entende-se que, no ciclo urbano da água, a renovação das redes não deve ser financiada.

Ora estamos a falar de redes com 50 anos, redes em fibrocimento com 30 a 40 anos, isto é, estamos a falar de renovação de redes para colocar materiais mais adequados e, do ponto de vista da saúde, mais protectores para a saúde pública. Ora bem, isto não é aprovado.

glossário

  • Abastecimento de água em Alta: captação, tratamento e fornecimento de água aos reservatórios dos municípios. 
  • Abastecimento de água em Baixa: rede de distribuição de água dos reservatórios municipais até ao consumidor final.

Não são aprovadas estas candidaturas das Baixas e isto é uma forma de estrangular os municípios e, por outro lado, globalmente não há dúvidas nenhumas de que no Alentejo, mas também no resto do País, têm havido investimentos enormíssimos com fundos comunitários, quer na água quer no saneamento, e o nosso país é provavelmente dos países mais avançados em toda a UE do ponto de vista de infra-estruturas de água e de saneamento, sem dúvida. Mas na Alta.

Na Baixa, que é um volante que está nas mãos dos municípios, e desejamos que continue a estar nas mãos dos municípios, há um esforço enormíssimo de vários governos, e deste também, de tentar criar problemas aos municípios com a figura das agregações para, no fundo, os municípios deixarem de ter a sua autonomia e a sua liberdade de movimento relativamente à gestão da água pública.

Os fundos comunitários são um instrumento?

Efectivamente, nós estamos a sentir que, quer para a água quer para o saneamento, as limitações que os municípios estão a ter no acesso aos fundos comunitários, isto é grave. Mas mais grave, na nossa opinião, é utilizar-se o acesso aos fundos comunitários como isco para se imporem tais fusões em Baixa. Ou seja, quem aceitar tais processos de fusão poderá apresentar candidaturas ao Programa Operacional Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos (PO SEUR/Portugal 2020), quem os não aceitar, então está impedido de apresentar candidaturas de projectos ao PO SEUR.

Uma gestão directa das autarquias permite reduzir as tarifas?

Por princípio, sim. Mas a questão não se coloca de se saber se a gestão directa das autarquias permite reduzir ou não as tarifas, ou se permite assegurar tarifas socialmente justas, que permitam o acesso à água por parte das populações. Com efeito, esta é uma competência dos municípios, que efectuam um esforço no que respeita à sustentabilidade dos seus sistemas, assegurando que os valores da tarifa reflictam o valor adequado face às realidades económicas e sociais de cada território e assegurando que às famílias mais carenciadas haja a aplicação da «tarifa social».

Na óptica do financiamento, e para além das tarifas, que fontes devem ser consideradas? 

Efectivamente não devem ser só as tarifas. Há um conceito chamado neo-liberal, liberal ou que aponta para que o consumidor deve pagar tudo, o consumidor-pagador. Entendemos que cabe aos municípios assumir as suas políticas sociais; aquilo que deve ir à tarifa e o que é que deve ser uma componente social para todos, com critérios.

E, por outro lado, também se entende que o próprio Estado, em muitas situações, tem que entrar nos investimentos porque a água é um bem público e é um bem de Saúde. Há quem defenda inclusive que os primeiros cinco metros cúbicos deviam ser gratuitos para todas as pessoas porque estamos a dar saúde às pessoas, mas isso leva-nos a outra discussão.

Nós também respondemos a isso, dizemos que as tarifas não devem pagar os custos totais até porque há diferenças no País. Falar do Barreiro, com 38 quilómetros quadrados, ou de Odemira, com 1700 quilómetros quadrados, ou de Alcácer do Sal, com 1500 quilómetros quadrados, não é exactamente a mesma coisa.

Importa referir que o financiamento do sector não pode passar apenas pela via tarifária. Ou seja, o princípio dos 3T (tarifas, taxas, transferências) que a OCDE defende, deve ser aplicado e tido em conta nos modelos a definir para o futuro. E neste momento há recursos disponíveis, como sejam os fundos comunitários a que se deve acrescentar a responsabilidade que o Estado deve assumir a partir dos meios que tem ao seu dispor.

É conhecido o papel de invasão da autonomia do poder local por parte da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR). O papel desta entidade é também um factor negativo no sector?

A partir da publicação da Lei 10/2014, de 6 de Março, que alterou o estatuto da ERSAR, esta entidade passou a ter um conjunto de competências e atribuições que em nossa opinião colidem com a autonomia do Poder Local. A titulo de exemplo, podemos identificar, de entre outras, um conjunto de instruções vinculativas em torno da fixação das tarifas, a facturação detalhada e o regime de sancionatório (aplicação de coimas).

No que às tarifas diz respeito, os municípios têm obrigação de colocar à consideração os seus regulamentos tarifários e, caso não seja dado cumprimento à tarifa determinada pela ERSAR, a aplicação de coimas pode ir de 200 000 a 2 500 000 euros. Os poderes atribuídos à ERSAR surgem como um instrumento coercivo e o actual Governo tem-se negado, até ao momento, a alterar o estatuto da ERSAR que, na nossa opinião, devia ser remetida a um papel meramente regulador e de apoio ao funcionamento dos sistemas públicos.

A empresa Águas do Alentejo, da qual faz parte o município que lidera, é uma parceria pública entre o Estado e 21 municípios alentejanos – Associação de Municípios para a Gestão da Água Pública (AMGAP). Como tem corrido a experiência?

Em 2009, 21 municípios do Alentejo e o Estado português, constituíram a primeira parceria pública/pública para o sector da água com a assinatura de um Contrato de Parceria (CP) e de um Contrato de Gestão (CG), os quais determinaram a criação da empresa Águas Públicas do Alentejo (AgDA,SA).

Trata-se de uma empresa pública para a gestão dos sistemas em Alta, com a salvaguarda das competências dos municípios e introdução de mecanismos internos com a criação da «Comissão de Parceria», que tem por finalidade o acompanhamento, supervisão e fiscalização da empresa, com representantes dos municípios em todos órgãos sociais da AgDA, e no qual o Estado delegou a sua representação nas Águas de Portugal (AdP), que detém 51% do capital social, e os municípios constituíram a AMGAP, que detém 49% do capital social.

MUNICÍPIOS QUE INTEGRAM A AMGAP

Alcácer do Sal, Aljustrel, Almodôvar, Alvito, Arraiolos, Barrancos, Beja, Castro Verde, Cuba, Ferreira do Alentejo, Grândola, Mértola, Montemor-o-Novo, Moura, Odemira, Ourique, Santiago do Cacém, Serpa, Vendas Novas, Viana do Alentejo e Vidigueira.

Houve um primeiro período que decorreu até finais de 2015, onde se procurou consolidar a empresa (com a integração dos municípios no sistema) e assegurar os investimentos necessários serem feitos em cada um dos municípios. Nesta primeira fase integraram o sistema 20 dos 21 municípios, e, pesem embora varias vicissitudes, asseguraram-se cerca de 70 milhões de euros de investimentos. Estamos agora na segunda fase com a entrada em vigor das alterações ao CP e CG, no qual se prevêem investimentos de 107 milhões de euros até 2020. Podemos dizer que a experiência tem sido positiva.

Recentemente promoveram uma campanha para o uso racional da água junto dos habitantes de alguns concelhos alentejanos. Que políticas têm vindo a ser adoptadas para melhor enfrentar cenários como o da seca extrema que se vive actualmente em Portugal?

Nós estamos com um problema sério nas barragens, sério para a agricultura e para o gado. A água para consumo humano, que é, de um modo geral, obtida através de furos, a 180 metros, 200 metros e a 250 metros muitas vezes, tem havido (salvo nalgumas zonas do Alentejo), tem havido recursos para isso. Mas o País dificilmente aguentará outro ano de seca.

Obviamente que a gestão dos recursos hídricos é uma competência do Governo (o qual aprovou, em face do período de seca, um conjunto de medidas constantes na Resolução do Conselho de Ministros 80/2017, de 19 de Julho) e dos serviços da Administração Central.

No entanto, é igualmente sabido que estamos a atravessar, no Alentejo, um período longo de seca, por ausência de pluviosidade, e que tais recursos hídricos, sejam superficiais e ou subterrâneos, com elevada escassez, têm reflexos, não só na quantidade como na qualidade da água. Agravando-se toda esta situação com o aumento dos consumos de água, em face das elevadas temperaturas que têm assolado o Alentejo.

Daí que a empresa Águas Públicas do Alentejo, em parceria com a AMGAP, tenha lançado uma campanha de sensibilização junto da população dos municípios que integram a AMGAP, apelando ao uso racional da água e poupança de água, em particular no que respeita a reutilização de água (para lavagens e regas) e redução de regas.

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