A coisa aqui está preta!...

Recebi o convite para colaborar com AbrilAbril no dia em que o horizonte noticioso dos nossos media foi invadido pelo Brexit, deixando apenas espaço às detalhadas análises do futebol da nossa selecção, já que também não convém exagerar nas prioridades.

O desmoronar de um pilar importante do projecto de integração do mercado europeu, designado por «Europa» ou União Europeia, criou desespero e peles de galinha a quem o defende e seria difícil fugir ao tema pelo significado desse abalo no programa de exploração da «Europa dos cidadãos», sempre apregoado como sem alternativa.

E talvez seja essa ideia de alternativa, ou a possibilidade de ela existir pela simples afirmação da vontade de um povo, a primeira impressão que ressalta do resultado de um referendo convocado como truque de ilusionismo eleiçoeiro que acabou por enterrar quem o concebeu, menosprezando a revolta, heterogénea mas real, contra essa «Europa» abusiva e agressora que, para além de maltratar os seus cidadãos, leva a guerra a terras alheias, desestabilizando os regimes laicos do mundo árabe, recusando, depois, o apoio aos refugiados que causou, difusamente apresentados como potenciais terroristas ou como agressivos concorrentes dos que vegetam no mundo da miséria e do desemprego europeu.

A segunda impressão será, provavelmente, a da aparente diversidade de motivações dos eleitores ou da heterogénea e contraditória forma de recusa de um estatuto de exploração, reflexo do mal-estar de um quotidiano ameaçador e precário, que aflora, indelével, mobilizando as classes e estratos sociais de mais fracos recursos.

Bem podem os media ligar os defensores do Remain a uma juventude letrada e cosmopolita, e os do Brexit a pategos, desempregados e analfabetos, e à praga grisalha, numa conversa da treta já nossa bem conhecida. A verdade é que, se existe fragmentação, ela é fundamentalmente fruto de uma propaganda repetitiva, manipuladora e divisionista, constantemente martelada por uma comunicação social ideologicamente empenhada em afastar quem trabalha na defesa dos seus reais direitos, cada vez mais ameaçados por uma elite dominante predadora e retrógrada, que se sentiu mais forte depois da queda do muro de Berlim.

Apesar disso, por todos os poros transpira um ambiente de «fim de império», com o estiolamento dos tradicionais partidos do «arco do poder» (como se confirma nas eleições em Espanha), observando-se a Pasok-ização de socialistas e social-democratas amalgamados na gestão do ideário neoliberal, causa e efeito do definhamento do projecto europeu anunciado como solidário e integrador, mas diariamente desmascarado pela prática agressiva dos seus órgãos dirigentes, criados como longa manus da grande finança. É essa ganga de altos quadros nomeados, funcionários e burocratas, que insultam os preguiçosos dos PIGS do Sul (designação que chegou a ser utilizada em documentos oficiais), que, sobranceiramente, se outorgam o direito de impor arbitrárias regras punitivas de cariz colonial, aplicando-as conforme as conveniências, numa geometria variável.

O contraste entre o brutal tratamento dado à Grécia, como retaliação pelo referendo em que o seu povo recusou mais austeridade, e as cedências feitas a Cameron só para assegurar o seu apoio no referendo britânico (afinal, como agora se vê, inutilmente...), ou a tolerância subserviente para com o elevado superavit alemão, violador das mesmas regras, dificilmente encontram qualquer justificação moral e muito menos democrática. O tratamento com pinças do défice gaulês «porque a França é a França» – Juncker dixit –, enquanto se ameaçam a Espanha e Portugal com sanções, apesar dos «bons alunos» nacionais terem cumprido à risca a orientação que a sua «Europa» lhes ditava, mostra a hipocrisia de toda esta farsa.

O próprio presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, retrata bem a podridão dessa «Europa» do capital, capitaneada por Merkel, que parece apostada em trazer à tona as piores lembranças de uma Alemanha que, depois da guerra, se queria «um país normal». Afastado, em 2013, de primeiro ministro do Luxemburgo devido a escandalosos favores fiscais prestados às multinacionais (o chamado Luxleaks), mas também – facto menos divulgado –, por, enquanto ministro do Interior, ter dado cobertura à polícia secreta do Grão-Ducado (SREL) implicada em tráfico de automóveis, proxenetismo, pedofilia e em duas dezenas de atentados bombistas nos anos 80, falsamente atribuídos aos comunistas, numa estratégia de tensão para favorecer a emergência de um regime autoritário (Le Monde de 10 de Julho de 2013 e relatório SREL), esta figura, tão falsamente sorridente como sinistra, foi premiada com a ascensão ao cargo que hoje ocupa à frente da Comissão Europeia.

A sua nomeação e permanência após ter rebentado o escândalo do Luxleaks, contou com apoio do Grupo Socialista Europeu, talvez porque, como então justificou (sem se rir) a eurodeputada Ana Gomes, se a ideia era a de combater a fuga ao fisco, «nada melhor que um caçador furtivo para dar caça aos caçadores furtivos»…

Contudo, apesar dessa sua habilitada colaboração, pouco mudou quanto à fuga dos grandes às suas obrigações tributárias (como mostram os Panama Papers), e quem acabou por ser condenado pelo Tribunal Criminal do Luxemburgo não foi o «caçador furtivo» que ajudou a roubar os cidadãos europeus para encher os bolsos de mais de três centenas conhecidas multinacionais – entre as quais a Apple, a Ikea, a Starbucks, a Amazon, a Fiat, a Vodafone, a Timberland, a Pepsi, a Heinz, a Burberry, a Louis Vuitton –, mas os dois funcionários da consultora Pricewaterhouse Coopers, uma das Big Four (as outras são a Deloitte, a Ernst & Young e a KPMG), organizadoras do fraudulento esquema.

Antoine Deltour e Raphael Halet tiveram a coragem de denunciar a trapaça e puseram Juncker e associados a descoberto. Por isso, foram agora condenados, embora com pena suspensa, depois de terem sofrido inúmeros incómodos e pressões. A mensagem para o vulgar cidadão não podia ser mais clara: vejam o que acontece se quiserem (ou ousarem) fazer o mesmo!

É claro que o essencial centra-se na política rapace dessa «Europa» ao serviço do grande capital e não na fraca qualidade dos seus líderes, tantas vezes invocada para a desculpar. Mas como reflexo da degradação a que essa política chegou, tem significado.

Nestes agitados dias, também o «nosso» Comissário Moedas, famoso pelo «ponham o Moedas a funcionar!» saído da boca dos Espírito Santo, veio a terreiro defender a sua abalada «Europa» (mostrando que continua a funcionar), e Miguel Relvas (do «vai estudar ó Relvas!» celebrizado num cartaz da Volta à França) apesar de perder, em tribunal, o tão ambicionado título de «doutor», mostrou que continua a saber como encher os bolsos com dinheiro dos contribuintes, como provável comprador, por tuta-e-meia, do banco Efisa, ex-activo do BPN passado para a esfera pública, que o Estado português recapitalizou com cerca de 90 milhões de euros.

Há pois razões para pensar que, apesar de «aqui na terra se estar jogando futebol, e haver muito choro, muito samba e rock n roll», como diria o Chico Buarque, «a coisa aqui tá preta!». Precisamos urgentemente de um cheirinho de alecrim…

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