No dia 1 de Outubro, a Catalunha foi a votos, num referendo sobre a eventual declaração de independência que os media da direita espanhola (ou madrilena…), o serviço público de televisão e até o maior jornal «de referência» internacional em castelhano – El País – não se cansam de cunhar como «ilegal» e mesmo de tentar ridicularizar.
El País, que antes de imprimir sob o cabeçalho a modernaça divisa «El periódico global» se ufanava de ostentar «O diário independente da manhã», emparceirou com El Mundo, La Razón e o ABC, por exemplo, às ordens do Governo espanhol na defesa das suas teses «constitucionalistas» e na perigosa aversão ao diálogo com a Generalitat.
É público e notório – as imagens e os sons chocantes correram mundo – que a Polícia Nacional e a Guarda Civil espanholas tomaram a Catalunha e desencadearam uma repressão brutal, incluindo com cargas policiais violentas sobre os catalães que protegiam as secções de voto, as urnas e os boletins de voto, que insistiram em expressar a sua vontade e se manifestavam em defesa da liberdade de expressão.
A Imprensa internacional – portuguesa incluída – viu tudo isso e não pôde deixar de chamar as coisas pelo nome que exigiam nas primeiras páginas do dia seguinte. Por exemplo, os britânicos The Times, The Guardian e Financial Times não deixaram de enfatizar em manchete as centenas de feridos pela repressão policial, que o francês Libération sintetizou com expressiva eficácia: «O golpe de força».
Enfatuados na sua cruzada legalista que se tem prolongado mês após mês, semana a semana, dia após dia (basta contar-lhes os editoriais…), emprestando legitimidade ao uso manifestamente desproporcionado e ilegítimo da força, La Razón titulou a toda a largura da primeira página: «Firmeza contra o golpe». El País não lhe ficou atrás: «O Governo impede pela força o referendo ilegal».
«Referendo ilegal» – é assim que a «referência» do «jornalismo de rigor» espanhol cunha sistematicamente o «desafio independendista» (outra referência recorrente) nas notícias, nos editoriais e nos artigos de opinião, fiel, de resto, à sua tradição «legalista» e de fiel jurado da Constituição de 1978 pelo menos desde a cobertura, ostensivamente enviesada, dos factos relacionados com o movimento independentista basco, não só em relação à organização ETA, mas também relativamente às actividades e posições das forças e partidos legais.
A devoção «legalista» do «periódico global» depende, no entanto, da latitude e dos interesses em presença. Por exemplo, o pretenso referendo organizado em Julho pela oposição na Venezuela, manifestamente ilegal, mereceu amplíssimo apoio de El País e de outros meios de informação espanhóis e os grandes media em geral, tal como as manifestações violentas que causaram mais de 140 mortos eram sempre legítimas.
«Legal e embevecidamente acarinhada pela imprensa de Madrid foi também, claro, a manifestação dos unionistas espanhóis realizadas no dia 8 – a "maioria silenciosa", como a crismaram (...)»
Legal e embevecidamente acarinhada pela imprensa de Madrid foi também, claro, a manifestação dos unionistas espanhóis realizadas no dia 8 – a «maioria silenciosa», como a crismaram, com uma ressonância ideológica que nos é muito familiar e que convoca a atenção para o franquismo e o fascismo que ressurgem despudoradamente à luz do dia, embora tolerado pelos media «constitucionalistas».
Poucos se ocuparam de pormenores como a presença de símbolos falangistas e saudações nazis, ou a explicar o que é uma tal Sociedade Civil Catalã, na realidade uma organização que agrega e organiza a hostilidade ao nacionalismo catalão e à participação democrática, numa base em que também entra gente da extrema-direita e cuja apresentação contou com delegações da Frente Nacional francesa e da Fundação Nacional Francisco Franco.
«Histórica manifestação contra o separatismo e pela Constituição», titulou El País em entusiasmada manchete, encimada por um antetítulo não menos inspirado: «Centenas de milhar de pessoas inundam as ruas de Barcelona». O jornal «independente» tinha um fito: desconstruir a «narrativa» do independentismo segundo a qual as ruas e praças da capital catalã lhe pertencem.
No seu esforço militante pela sua verdade, El País, que tolera pouco a diversidade de opiniões nas suas páginas, a ponto de dispensar um dos mais prestigiados colaboradores, John Carlin, que escrevera uma série de artigos divergentes sobre a Catalunha, nem sequer se dá ao trabalho de disfarçar a sua catalanofobia e a indisfarçável urticária que lhe causam as intervenções nomeadamente do presidente da Generalitat, Carles Puigdemont.
Ainda ontem, um texto não assinado publicado na edição em linha, pretendendo «desmontar» as posições do líder catalão, titulava sem rebuço: «As insistentes mentiras de Puigdemont».
Num panorama mediático em que boa parte dos títulos assume de forma mais ou menos aberta a respectiva orientação ideológica, o caso do tratamento do «desafio independentista» catalão nas páginas da grande imprensa não é absolutamente estranho no plano doméstico, ainda que o assunto esteja na ordem do dia em muitos espaços de discussão.
Mas assume gravidade a ter em conta quando, precisamente jornais como El País, gozando, externamente de prestígio e de credibilidade, são frequentemente fonte de informação para muitos jornalistas – seja como deslocados em reportagem no país, seja na «cobertura» recuada, nas redacções, dos acontecimentos em Espanha ou no Mundo.
Nomeadamente em Portugal, é muitas vezes detectável que tais jornais são fonte única de muitas notícias. Nesse sentido, uma abordagem crítica ao comportamento editorial dos media espanhóis – no caso – não pode deixar de revestir o maior interesse para os leitores, os ouvintes e os espectadores portugueses. Para que saibamos todos como se faz a informação que nos «vendem» e possamos prevenir manipulações por interposta pessoa.
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