Os obituários, em geral, e os grandes destaques, em particular, são espécies que justificam estudos e reflexões sobre as opções e práticas jornalísticas. Não apenas pelo que retêm e cristalizam dos aspectos conhecidos ou ignorados da biografia dos defuntos, mas também pelo consenso que constroem sobre boa parte das figuras desaparecidas e, sobretudo, pela glorificação em que redundam, por vezes, os registos editoriais, num exercício de independência no fio da navalha.
Por exemplo, a morte recente do empresário Belmiro de Azevedo, que ocupou em pleno os noticiários aos audiovisuais e dos meios de informação em linha de 29 e 30 de Novembro, bem como foi assunto principal dos jornais deste último dia, constitui um interessante caso que seria útil analisar com detalhe crítico – tarefa que não cabe neste artigo, nem a tal se propõe, mas que se sugere a académicos.
Um voo rasante sobre o conteúdo, os ângulos de abordagem e os qualificativos evidenciam, em geral, uma atitude encomiástica e uma dificuldade de descomprometido distanciamento dos media.
Não está em causa a relevância da personagem, inegável na história económica, social, política e cultural do país, assim como é inegável que o acontecimento teria de ser forçosamente notícia. A pergunta legítima consiste em saber se houve exagero no espaço e no «tom»…
Os jornais impressos, por exemplo. Os diários generalistas nacionais não regatearam as honras de primeira página com grandes destaques – a totalidade da mancha impressa, no caso do Público; cerca de 75% no caso do i; 60% no do Jornal de Notícias; 36% no do Correio da Manhã; e 34% no do Diário de Notícias.
Também não foram parcos em páginas noticiosas – 18 no Público, nove no JN, seis no i e quatro no DN e no CM (embora, nestes últimos, com um anúncio numa delas). Justificava-se? Pelo menos o facto de todos eles publicarem editorais (ou artigos de opinião do diretor ou de um adjunto) avaliza a importância transcendente conferida ao acontecimento.
É comum ouvir-se que, quando morre alguém, a imprensa não diz senão bem, ou pelo menos é comedida nas críticas, ou adia-as para outras oportunidades. Terá o vulgo razão? Em 57 peças (incluindo editoriais e artigos de opinião/depoimentos solicitados a personalidades), 38 citações/frases no discurso directo, seleccionadas de declarações antigas do próprio Belmiro de Azevedo, e 34 extraídas de reacções de personalidades, são raríssimas as expressões menos favoráveis.
O JN menciona a queixa de «desrespeito» do falecido em relação à viúva do banqueiro Pinto de Magalhães. O Público acrescentou, citando-a, naquela que é a única crítica em todas as peças publicadas nos cinco diários: «É uma pessoa dura, não tem coração». Ainda o JN menciona um reparo de um ex-eleito na freguesia natal do empresário ao que poderia ter feito pela terra e não fez. Já o CM inseriu, na sua selecção de frases do próprio: «Se não for a mão-de-obra barata, não há emprego para ninguém». E ficamos por aqui.
O consenso editorial em torno da figura segue em abundância de encómios e elogiosas referências ao percurso, ao carácter, à determinação, à coragem, às virtudes, tudo bem temperado de adjectivos e virtudes do empresário – «Mais do que um empresário, Belmiro foi um exemplo de exigência permanente, um homem livre e corajoso, amigo do risco, da disciplina interior, da educação pela vida fora, da "ética rigorosa"», escreve o Público – um dos mais ricos do país, digno de figurar no catálogo obsceno de fortunas da Forbes.
Na glorificação mediática do empresário («O maior empresário português no pós-25 de Abril», disse Daniel Bessa, no Público), assinale-se o singular destaque para a sua sobranceira relação com «os políticos», a que os media preferiram chamar «coragem» e «independência», como se tal «independência» não residisse de facto de estar, precisamente, no topo do poder económico.
«Belmiro de Azevedo/O Empresário que desafiou os políticos», titula o DN na primeira página, abrindo a peça principal, no interior, com este título «Belmiro de Azevedo: o empresário que reprovou todos os governantes». Os políticos, cita dele o JN, «falam do que não sabem, do que não tem a ver com a realidade e prometem o que não podem cumprir», pois «a sua postura na política foi sempre de "contrapoder", como fazia questão de assumir».
Ao longo dos textos, emerge a colecção de ditos caricaturizantes, alguns mesquinhos, de Belmiro sobre personalidades da vida política, incluindo o actual Presidente da República – que aliás não lhe poupou rasgadas loas –, como quem fixa na memória dos leitores uma espécie de herói que até ousou pôr na ordem os deputados da nação, «obrigando-os» a madrugarem em certa manhã parlamentar e a recebê-lo às 8 horas em comissão.
Se algum dia for realizado um estudo rigoroso, ou alguma reflexão aprofundada, sobre os obituários em geral e os destaques dos media à morte de poderosos, talvez compreendamos melhor essa espécie de fascínio pelo poder económico e um certo desdém por essa realidade democrática a que tantas vezes se referem como «os políticos»…
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