Confesso que quase cedi à tentação de voltar à política governamental de piorar o Serviço Nacional de Saúde (SNS). E só a Secretária de Estado da Saúde, Rosa Matos Zorrinho, que comemorou o «Dia da Felicidade» (cumprindo a «Declaração Conjunta da Coligação Mundial para a Felicidade»), criando por despacho um grupo de trabalho para a «melhoria dos indicadores de bem-estar das pessoas que trabalham nos organismos e entidades» do SNS, é capaz de nos fazer rir.
Estas hilariantes habilidades caseiras, contudo, parecem ridículas quando comparadas com a «guerra química» que, este mês, «a Rússia desencadeou» contra a Inglaterra, levando a que cerca de três dezenas de países expulsassem diplomatas russos com equivalente resposta.
O governo português pareceu, desta vez, mostrar-se mais contido. A fotografia de Durão Barroso nas Lages, com Bush, Blair e Aznar a decidirem desencadear a guerra do Iraque, por causa do gás que afinal não existia, deve ter pesado na decisão.
De qualquer forma os russos são feios, porcos e maus, como toda a gente sabe, desde o tempo de Salazar e da guerra-fria.
«Ataque com gás»: a quem acusar?
Alguém tentou assassinar Sergei Skripal, um ex-agente duplo russo, que há anos vive em Inglaterra, e a filha, com um gás esquisito alegadamente «só fabricado na Rússia». Quem acusar?
Pela lógica de qualquer mediano livro policial, todos menos alguém da Rússia. Ou melhor. Mafiosos ou assassinos privados, ainda vá. Assassinos «oficiais», não, por favor. Seria demasiado estúpido.
Mas nada disso pareceu contar. «De gravidade inacreditável!» – brama um comentador na nossa TV sem moderação.
Inacreditável, de facto. Para mais, antes das eleições e do Campeonato Mundial de Futebol em que Putin está empenhado e quando a polícia inglesa não chegou ainda a qualquer conclusão. De resto, para matar uma pessoa, há métodos mais à mão. Hambúrgueres com raticida, por exemplo. Ou chicken curry se gostam de comida indiana. Talvez uma pequena injecção distraída, à moda da israelita Mossad. À bomba, com uma carta a Alá, para passar por fundamentalista. Ou, simplesmente, a tiro. Mas um gás russo, «novichok», com um dedo esticado a apontar para Putin? Por amor de deus!… Só se lembraram disso? Não vão longe na escrita!
Que diriam se um emigrante português, residente em Vladivostok, envenenasse um vizinho com um bolo de bacalhau ou um pastel de nata… Ora! Haja um mínimo de cabeça!...
E se a policia encontrar o culpado e ele for um inglês de Chelsea com «novichock» comprado à mafia lá do bairro? Que irá dizer o Comissário-Chefe? Que a primeira-ministra pôs o carro à frente dos bois? Que o «altamente provável» dela afinal era igual à certeza de Blair no gás do Iraque? Que a NATO, os USA e todos os países que assinaram de cruz como carneirinhos, têm de pedir desculpa a Putin e voltar a enviar os diplomatas para lá?
Má novela. Fraca. Incoerente. Demasiado confusa e contraditória. Só arranjando uma saída mais credível, uma história encapotada, com outros protagonistas. Aproveitamento do episódio para um boicote ao Campeonato Mundial de Futebol? Dar a volta aos eleitores (já que o Labour de Corbyn pode ganhar as eleições e mudar toda a paisagem), inventando uma emoção patriótica do tipo guerra das Malvinas? Esquecer as torcidelas do «Brexit», como indirectamente sugeriu o grande sabichão do Marques Mendes?…
Mesmo sem haver culpado nem ponta de prova, o ministro alemão dos negócios estrangeiros, acrescentou que, «pela primeira vez depois da guerra foi usada uma arma química na Europa»… Bom… Não será exagero? Há que reconhecer que, no que diz respeito a gases tóxicos, os alemães têm experiência… Mas afinal, no caso do outro russo morto em Londres com plutónio também ainda sem se descobrir o culpado, não se falou em «arma atómica na Europa»?... E tratava-se de plutónio!...
A verdade é que estes russos-ingleses não são assassinados «normalmente». Deve ser uma mania de Putin, uma espécie de «Z» de Zorro, uma marca assassina, para saberem que foi ele. Um cirurgião dos USA também gravou as suas iniciais na pele de um doente e depois tramou-se. Condenação em tribunal e expulso da Ordem. Putin, pelo menos, não grava nada. Mas usa o «novichok» como a Marilyn o Chanel nº5. Um cheiro inconfundível…
«Mais de três semanas passadas sobre o incidente, justificava-se a apresentação de provas inequívocas e irrefutáveis sobro o envolvimento russo. [...] Acusar primeiro e investigar depois não parece ser a prática mais adequada»
Major-General Carlos Branco, Expresso, 28/03/2018
Theresa May e o seu despenteado ministro Boris Johnson, bem acrescentaram que ao «altamente provável» da culpa russa (e de Putin em particular), juntava-se o facto de eles serem reconhecidamente feios, porcos e maus, e tudo isso em conjunto passava a constituir prova, além do mais porque o negam, como «negam sempre!».
Como há dias o director do Público afirmava (editorial de 27 de Março de 2018), citando o The New York Times, «o uso bem sucedido da “negação plausível” (…) contribui para um veredicto: culpado até provada a inocência». Se a Rússia nega, é porque é culpada. Ora toma e vai-te coçar!...
Talvez seja demasiado pouco para um policial decente, mas «quando não se pode ter lagosta, tem-se carapau», como disse o professor Neca, um dos nossos treinadores de futebol. E com tantos comentadores, analistas, e gente ilustre a dizer que os russos são feios, porcos e maus (Putin, em particular), é porque são. E quem pensar o contrário é como eles.
Um tipo do género é o líder trabalhista, Jeremy Corbyn, que virou o Labour à esquerda, falando de nacionalizações e de outras «antiquadas ideias socialistas».
O homem até teve a lata de perguntar à primeira-ministra May, se tinha uma prova, se contactara as autoridades russas para saber o que diziam, se convocara os mecanismos internacionais previstos para situações do género, e outras patetices que, naturalmente, nem mereceram resposta.
Corbyn, na realidade, já deve estar habituado a fazer de impertinente da turma. Há uns anos fez perguntas destas a Blair, quanto às armas de gás do Iraque, despertando a mesma ira de conservadores e trabalhistas conservados. Um tipo very irritante, que gosta de destoar do clube. É verdade que o relatório Chilcot do próprio Parlamento inglês acabou por lhe dar razão e dizer que Blair e os serviços secretos tinham mentido com os dentes todos. E com isso ficou tudo acertado, ponto. Anos depois. Muitos mortos e refugiados depois. Mas ao menos fez-se justiça na House...
Voltando ao gás russo. Afinal sabe-se que o tal «novichok» andou por aí a ser traficado ao desbarato na ressaca da destruição da URSS (a fábrica, no Uzbequistão, foi desmontada em 1993, com a ajuda dos americanos) e pode também ser produzido noutros locais. Como, aliás, alguns cientistas ingleses também o afirmaram. A história piora. Não pega! Assim, não dá. Péssimo enredo.
O melhor é ir à net e procurar uma opinião esclarecedora que fure esta trama sem sentido.
«Ataque com gás»: o uso da razão
«Mais de três semanas passadas sobre o incidente, justificava-se a apresentação de provas inequívocas e irrefutáveis sobro o envolvimento russo» – afirma o Major-General Carlos Branco, com um MBA em Gestão Internacional, num artigo no Expresso on-line de 28-3-2018.
«A falta de evidência tem sido acompanhada por uma retórica inaceitável, pouco consentânea com aquilo que são as boas práticas da diplomacia internacional. (…) Continua-se sem se saber a identidade do perpetrador, assim como as circunstâncias e o local da ocorrência.».
Melhor. Bem melhor. Aqui já começa a haver alguma lógica.
«O assunto deveria ter sido logo encaminhado para a Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons (OPCW), o fórum próprio onde o assunto devia ser analisado. A Rússia argumenta com o artigo IX da Chemical Weapons Convention (CWC), que estipula a necessidade de se fazer um primeiro esforço para clarificar e resolver, através da troca de informações e consultas entre as partes (…) mas (…) o governo britânico recusou-se a partilhar as alegadas evidências assim como fornecer amostras do produto utilizado.».
Ora bem! Pelo que diz o general Branco – um português que não parece ser particularmente amigo de Putin – ,Theresa May mandou às urtigas as regras internacionalmente estabelecidas, e continuou a escalada arvorando um ar de vítima, como os jogadores de futebol que, depois de darem uma canelada no adversário, se atiram para o chão, berrando por uma falta a seu favor.
O ex-presidente da OPCW, José Bustani, também criticou esse desrespeito do governo de May pelos acordos internacionais.
«Acusar primeiro e investigar depois não parece ser a prática mais adequada», comenta, cheio de razão, o general português, metendo a coisa nos eixos.
«Ataque com gás»: a patetice britânica
Mas a primeira-ministra inglesa e o seu ministro Johnson, não ligam a esses pormenores. E mentiu. «Ao contrário do que afirmou Theresa May são muitos os possíveis perpetradores (…) nomeadamente os mais de 300 espiões que constavam na lista que Skripal entregou às autoridades britânicas (…), as ligações de Skripal a Cristopher Steele e o seu envolvimento no Russiagate. Skripal tinha-se tornado um elemento perigoso que podia causar danos na comunidade de inteligência americana, no Partido Democrata e por aí adiante» –, continua o nosso general, que merece ser lido.
Conclusão: hipóteses de culpados não faltam e a crise russa foi criada artificialmente, com o apoio dos USA, NATO, UE e o resto, repetindo habilidades do passado.
Por último, Boris Johnson resolve voltar ao ataque e afirmar com a maior convicção do mundo que o Laboratório do Ministério da Defesa do Reino Unido (em Porton Down), tinha confirmado a origem russa do gás: «Os peritos de Porton Down foram categóricos. Têm a certeza! Eu próprio lhes perguntei, “Têm a certeza?” E eles disseram “não há a menor dúvida”.» – afirmou o ministro, a regurgitar convicção, em entrevista à TV. Com tanta segurança que qualquer ingénuo cidadão acredita. Mas o responsável do laboratório, Gary Aitkenhead, veio logo desmenti-lo: «Não localizámos a origem precisa mas fornecemos a informação científica ao governo que depois usou várias outras fontes para compor as conclusões». Assim se pôde ver, ao vivo e a cores (a RTP, espantosamente, transmitiu) como um ministro inglês inventa e mente, com o maior descaramento, parecendo até «um latino dos PIGS».
O mais espantoso (ou não), é que mesmo depois de apanhado em falta como um coxo, o homem continuou a insistir na reunião da OPCW, mostrando aos mais incrédulos como esta gente nos tenta fazer passar a todos por parvos, lançando campanhas nos meios de comunicação social internacional aos seu dispor, com um cortejo de outros governos sem espinha a atolarem-se em toda esta so british patetice.
«Não sei como se vai travar a Terceira Guerra Mundial. Mas a quarta vai ser com paus e pedras»
Albert Einstein
Que dirão agora, os que por cá, pediam medidas mais duras ao governo português para se mostrar «alinhado»? Que vale tudo?
Enfim, o enredo continua a ir de mal a pior, sendo quase difícil de acompanhar o seu ritmo. Agora apareceu a filha, Yulia Krypal, alegadamente gaseada e hospitalizada, a dizer pelo telefone a uma prima que ela e o pai estão bem e recomendam-se (quando o último era suposto estar em coma, a morrer). Para estragar ainda mais a cena, as autoridades inglesas impediram a visita da irmã a Sergei Krypal fazendo com que a própria diga que «acha que há qualquer coisa que lhe escondem»!…
Epílogo educativo
Tiremos pelo menos uma lição de toda esta história chocha, para os que ainda possam ter ilusões: a lata e o descaramento com que estas «pessoas sérias» e meios de comunicação social «de referência» montam uma crise internacional perigosa.
Talvez este flop de May seja mau de mais para continuar e fique apenas na memória difusa dos que só lêem os títulos como mais «aquele espião envenenado pelos russos», recuperando, a posteriori, a invenção construída. Até ao próximo «ataque com gás», talvez agora na Síria, que justifique as bombas e a violação das leis internacionais pelo bondoso «Ocidente», com os mesmos comentadores, os mesmos políticos, as mesmas mentiras...
«Não sei como se vai travar a Terceira Guerra Mundial. Mas a quarta vai ser com paus e pedras.» – disse Albert Einstein.
O pior é que há quem pareça não querer saber disso…
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