No passado dia 24 de Outubro, foi conhecida a informação de que o Presidente da República visitaria Cuba acompanhado por uma delegação parlamentar da Assembleia da República incompleta. O Bloco de Esquerda (BE) recusara o convite de Marcelo Rebelo de Sousa.
Note-se bem: o verbo usado em todos os meios de informação foi exactamente aquele – recusar. Poderia ter sido outro – declinar, por exemplo. Ou outra fórmula – pedir escusa, por exemplo. Recusou, portanto.
Para todos os efeitos, o BE tomou uma posição política muito concreta sobre a primeira visita de um Presidente da República português a Cuba, precisamente num raro contexto político internacional, caracterizado por um processo – aliás muito complexo – de evolução das relações entre Washington e Havana, e pela condenação esmagadora do bloqueio económico, comercial e financeiro à ilha caribenha na Assembleia Geral das Nações Unidas (191 votos a favor, duas abstenções – dos próprios EUA e de Israel).
O partido começou por confirmar a inform
ação, «escusando-se a fazer mais comentários ou a avançar qualquer justificação para a sua decisão», segundo um despacho da Agência Lusa datado das 17:54 horas desse dia, citando uma «fonte oficial» não identificada.
A generalidade dos meios de informação em linha replicou, no mesmo dia, o «take» da Lusa. Apenas o Público acrescentou este interessante parágrafo:
«Durante o processo obrigatório de autorização da Assembleia da República para esta visita, que incluiu um parecer da Comissão de Negócios Estrangeiros, o partido não exprimiu qualquer opinião contra a viagem do Chefe de Estado».
À noite, porém, o BE apresentava as suas justificações, através de uma notícia no seu sítio oficial, Esquerda.Net, publicada às 20:20 horas, que começa por anunciar a visita do Presidente da República à «ilha, cujo regime recentemente retomou relações diplomáticas com os Estados Unidos».
Sublinhemos do jargão do imperialismo – de resto frequente na Imprensa – a expressão «regime». Só esta daria pano para mangas para indagar mais das justificações do Bloco para a recusa do convite, acerca das quais a notícia não adianta senão:
a) Que o BE «sempre limitou muito a sua participação em visitas de Estado (…) a visitas a países com fortes comunidades portuguesas ou de língua portuguesa, com poucas excepções»; e
b) «acresce que, nos dias 28 e 29 de Outubro, os deputados do Bloco encontram-se reunidos nas jornadas parlamentares do partido».
A atitude – legítima – do BE e as justificações que avançou justificariam, se tomadas por outras forças do espectro político-partidário português, um pouco mais de curiosidade jornalística, para não dizer um pouco mais de empenho profissional para explicar aos cidadãos por que razões mais exactas um partido de Esquerda recusou participar na visita em causa.
Quase todos os jornais impressos do dia seguinte assobiam para o lado, omitindo uns (Diário de Notícias), reduzindo a notícias breves – casos do Jornal de Notícias e do Público – embora o segundo acrescente a justificação oficial da escassa participação do BE «neste tipo de visitas, privilegiando os PALOP», ou tratando o assunto de forma muito ambivalente1 na rubrica «Sobe e desce», caso do Correio da Manhã, colocando Catarina Martins a «descer».
O jornal i é o único a desenvolver o tema, com título «BE não vai a Cuba. Tem mais que fazer» e rendendo-se às justificações oficiais, citando apenas «fonte oficial» e sem que nenhuma das deputadas, ou nenhum dos deputados, omnipresentes nas páginas dos jornais e nos canais de televisão e estações de rádio, desse a cara por elas, mesmo quando escreve:
«Não se trata aqui, afirma o Bloco de Esquerda, de uma tomada de posição política semelhante à que o partido fez quando recusou participar na visita oficial a Angola, cujo regime é abertamente combatido pelo Bloco. Apesar da forma crítica como o partido vê o regime cubano – que sempre foi considerado modelo pelo Partido Comunista –, fonte oficial garante que não é isso que está em causa».
O que estará afinal em causa? Se esperávamos uma resposta (consta que é para dar respostas que os jornalistas trabalham e os media servem), os jornais contentaram-se com as explicações sumárias e superficiais e renunciaram ao seu papel de procurar ir mais longe.
Na verdade, seria muito importante saber que outras deslocações de presidentes da República o BE acompanhou e que interesse relevante revestiam; que falta faria nas jornadas parlamentares um – apenas um – deputado, se o BE tivesse integrado a comitiva, e se nas jornadas parlamentares anteriores todos os eleitos estiveram presentes.
Também seria muito importante que, a pretexto deste caso, os media explicassem as razões pelas quais o BE é o único partido que não integra o Grupo Parlamentar de Amizade Portugal-Cuba e como trata Cuba no quadro das suas relações internacionais.
Seria ainda muito importante que os media ajudassem a compreender o que pensa e como age o Bloco em relação ao criminoso bloqueio imposto pelos Estados Unidos, com a complacência, durante décadas, da chamada comunidade internacional, que há mais de meio século asfixia e faz sofrer o povo cubano.
Tão preocupados com a geografia das simpatias do Partido Comunista Português e dos seus membros, escrutinadas até à náusea em cada entrevista, em cada «análise» e, com frequência a despropósito, em inúmeras notícias e reportagens, os media pouco ou nada importunam outras forças sobre «modelos» e experiências apreciadas noutros países.
E muito menos rompem com as convenções e com o conveniente consenso entre certas personagens e os meios dominantes, que condenam e isolam países cuja luta pela emancipação dos povos e contra a exploração que é tratada com o jargão da intolerância (regime, ditadura…) tão à flor da pele das narrativas jornalísticas.
- 1. Na edição do dia 25 de Outubro, o posicionamento editorial do Correio da Manhã sobre o assunto (a «descer») é justificado por o BE ser «o único partido com assento parlamentar que não envia um representante» com Marcelo Rebelo de Sousa. Contudo, no espaço «Dia a dia» da edição do dia 28, o mesmo jornal destila o seu ódio contra Cuba e critica acidamente a boa-disposição exibida por Marcelo Rebelo de Sousa no encontro com Fidel Castro: «Chegar aos 90 anos com saúde bastante para ver como as democracias continuam a praticar a genuflexão perante uma ditadura que tenta exportar-se para países vizinhos é para lá de divertido». Eis como o CM exime o BE de tal pecado: «Escapou o Bloco de Esquerda, capaz de encontrar desculpa airosa para não integrar a comitiva presidencial».
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