Olhar para o futuro sem perceber o passado é perder a vantagem que a perspectiva histórica nos permite e de tudo o que vem com ela. Quando olhamos para o passado do direito do trabalho, rapidamente percebemos que este se trata de um ramo de direito que, ao contrário de outros, a origem radica na prática de luta organizada dos trabalhadores, ou seja, dos próprios sujeitos do direito.
Foi a luta organizada, em tempos de enorme repressão sobre qualquer forma de acção colectiva, que nos trouxe o direito do trabalho. Primeiro através da imposição directa às entidades patronais do reconhecimento de um conjunto de direitos – salário, tempo de trabalho, condições de segurança e salubridade – e, mais tarde, com a transposição desta luta de base para um plano político mais vasto, que foi conquistando espaço para que o direito do trabalho se autonomizasse e institucionalizasse.
Com a consagração dos primeiros direitos, venceu-se uma importante batalha contra a ditadura absoluta de quem possui os meios de produção, que lhe permitia impor aos trabalhadores os mais diversos abusos e desrespeito pela sua dignidade humana. Em resumo, o direito do trabalho é um ramo de direito construído pelos pobres – leia-se, aqueles que não possuem meios de produção – para se protegerem a si próprios, através da imposição de limites à autonomia privada individual dos patrões.
Se antes o patrão podia impor as regras com toda a discricionariedade, com a afirmação do direito do trabalho o patrão passou a contar com limites para conformar o trabalho à sua vontade, fossem esses limites de natureza contratual, convencional, legal ou outros que resultem da relação de forças em cada momento.
Não obstante o século XX ter constituído um período de grandes avanços em matéria de direito do trabalho – direito a férias, 40 horas semanais, direito à greve, direitos sindicais, igualdade de género, etc. –, no final dos anos 90, com o fim do bloco de leste e da União Soviética e a alteração da relação de forças daí resultante, o terreno para uma viragem ideológica ficou bastante facilitado também no âmbito do direito do trabalho, não obstante a enorme resistência das associações sindicais de classe.
O Século XXI vem com o discurso da «flexigurança», qual cavalo de Troia segundo o qual, a propósito de uma maior segurança social, deveríamos prescindir de uma maior protecção laboral, dando espaço à flexibilidade. No nosso país, tal como na maioria dos países europeus, o que se assistiu foi à introdução das ideias da flexibilidade e a um ataque à segurança social. Precisamente o inverso do que se prometia.
E entre promessas de crescimento económico, foi-se atacando uma suposta «rigidez» da legislação laboral, que mais não significou do que «mais flexibilidade aos patrões e mais rigidez para os trabalhadores». Este foi o período da cedência do direito do trabalho ao direito de iniciativa privada, com a consequente conformação do código do trabalho aos ideais «civilistas» neoliberais. E só devido a uma grande resistência dos trabalhadores e dos seus sindicatos de classe foi possível, mesmo assim, manter um direito laboral minimamente digno de seu nome.
E eis que chegamos à digitalização e à revolução digital. E o que nos é prometido é ainda mais profundo. Claro está, no sentido do ataque ao direito do trabalho e dos trabalhadores.
Neste caso apresenta-se a «uberização» da economia como uma revolução do trabalho, mas mais do que isso, como uma revolução cultural do que é o trabalho. O trabalho proposto é travestido de «actividade» e esta «actividade» é tudo o que conta, não importando se é trabalho, no sentido em que a legislação laboral o define, ou não.
As tecnologias digitais são apresentadas como o grande mediador entre o cliente final e aquele que presta o serviço. Ou seja, entre o «trabalhador» e o «consumidor». E isto é-nos apresentado como algo de absolutamente revolucionário na medida que o trabalho aparece como algo totalmente livre de qualquer restrição espacio-temporal – do tipo, cada um trabalha como quer, quanto quer e quando quer.
A entidade patronal do futuro digital é, por sua vez, apresentada como algo de muito distante e etéreo, uma estrutura incorpórea que apenas «facilita» a ligação entre o consumidor e o trabalhador. É o tempo do «colaborador» e do «empreendedor». A relação de trabalho não é apresentada como uma relação de «exploração», mas apenas como uma mera relação de «troca». E tudo isto sem as amarras do período máximo de trabalho semanal, de um salário mínimo, do pagamento de horas extras, férias… Ou seja, em detrimento do direito do trabalho e dos direitos dos trabalhadores.
E este mundo é, mais uma vez, apresentado – como nos foram apresentadas outras revoluções tecnológicas – como um mundo maravilhoso, de liberdade absoluta e de emancipação humana.
Mas será que é assim? Será que o «trabalho do futuro» apresentado como o trabalho da «era digital» – que alguns determinam como estando relacionado com «o fim do trabalho» – é um trabalho mais livre de exploração? De trabalhadores mais livres? De trabalhadores que só trabalham como, quando e quanto querem?
Vejamos o seguinte quadro, que caracteriza o tipo de relações laborais que estão em causa nas relações de «emprego digital»:
estatuto profissonal | local de trabalho | relação de trabalho | cliente final | relação de intermediação | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Plataforma | manual | intelectual | altamente qualificado | casa | empregador | outro | conta de outrem | conta própria | individual | empresa | |
Uber | x | x | x | x | x | ||||||
Upwork | x | x | x | x | |||||||
Clickwork | x | x | x | x | |||||||
Task-Rabbit | x | x | x | x | |||||||
Amazon (M.T.) | x | x | x | x | |||||||
Axiom | x | x | x | x |
O que este quadro comparativo nos mostra é que, a este nível, a exploração é ainda maior, podendo retirar-se as seguintes conclusões:
Este tipo de relações de trabalho afecta quer trabalhadores manuais, quer intelectuais, muito ou pouco qualificados;
As relações de trabalho partem de trabalho isolado, em que é difícil estabelecer relações colectivas de trabalho, enfraquecendo a posição negocial dos trabalhadores, individualmente e como um todo;
A maioria das plataformas analisadas obrigam a «trabalhar a partir de casa» ou a partir de local diverso – como um automóvel –, transferindo para o trabalhador os custos de produção relacionados com a manutenção, organização e equipamento de um local de trabalho;
Com a «libertação» da entidade patronal relativamente às suas obrigações com o local de trabalho, a mesma desobriga-se também das obrigações relativas à segurança e saúde no trabalho ou com a protecção relativa a acidentes de trabalho;
Em todos os casos analisados, o trabalhador surge como «trabalhador por conta própria» ou «empresário em nome individual», desonerando a entidade «patronal» (a entidade que explora a mão de obra em causa) dos custos sociais associados, transferindo-os para o trabalhador.
Ao contrário do El Dorado que foi anunciado, em que na era digital a relação dos trabalhadores seria com os próprios clientes, libertando-os da subordinação a um patrão e controlando, eles próprios, o processo de produção, a realidade é outra:
A esmagadora maioria das plataformas têm por clientes finais empresas tradicionais, que apenas passaram a organizar o trabalho de outra forma, transferindo para os próprios trabalhadores – e para a sociedade como um todo – grande parte dos custos de produção;
Mesmo a «Uber» ou outras do tipo, que têm por objecto o cliente final, mantêm uma relação de intermediação, que se apropria de grande parte da mais valia, retirando-a daquele que a produziu, numa relação quase parasitária1.
Eis a realidade desvendada. O «trabalho digital», da «era digital» ou do «futuro digital», que nos querem apresentar como o «trabalho do futuro», não é mais do que um trabalho sujeito a uma dose de exploração ainda maior.
Estamos a falar de um trabalho com características como:
- Trabalho em regime de «trabalho na hora», sem horário definido;
- Trabalho pago à tarefa;
- Trabalho sujeito a um regime de disponibilidade total - 24/7;
- Trabalho cujo pagamento é determinado por critérios de «mercado» e sem respeito por regras como o salário mínimo nacional ou os regimes estabelecidos na contratação colectiva de trabalho.
Este trabalho que transforma o trabalhador num mero e solitário «tarefeiro», não mais é do que um trabalho extremamente precário, em todas as variáveis da relação que é estabelecida.
Trata-se de um trabalho sem respeito por direitos laborais ou sociais, que são transferidos, ora para o trabalhador, ora para os sistemas sociais pagos por todos nós, tudo para que as grandes e multinacionais corporações possam multiplicar os seus ganhos.
Este trabalho que aqui é retratado e apresentado pelos arautos do neoliberalismo como o «trabalho do futuro», não pode nem deve tornar-se no «futuro do trabalho». O futuro não se pode resumir ao retorno de um tempo em que os trabalhadores eram pagos à hora, ao dia ou à tarefa, sem preocupações com a sua condição laboral e social.
E fazendo a ponte com o início do artigo, o «trabalho do futuro» não pode ser o «passado do trabalho», um passado sem direitos para os trabalhadores e por isso, sem direito do trabalho.
É este património histórico-social de luta pela dignidade no trabalho que está em causa e, perante questões como, se queremos a tecnologia ao serviço do grande capital ou, por sua vez, dos trabalhadores e dos povos, devemos começar por não tomarmos por «moderno» algo que apenas é «sofisticado».
O trabalho da «era digital» que nos querem impor pode parecer sofisticado, mas utiliza um modelo ultrapassado, um modelo sem direito do trabalho e por isso, um modelo sem direitos laborais e com trabalhadores solitários e desprotegidos.
A solução só pode estar em utilizarmos a digitalização para o inverso, para aproximar mais os trabalhadores uns dos outros, reforçando a sua capacidade colectiva. Utilizar as ferramentas digitais para facilitar as tarefas, reduzir o tempo de trabalho e afastar os trabalhadores de tarefas arriscadas.
Devemos lutar para que a tecnologia sirva para dignificar o trabalho e os trabalhadores, no fundo, para fortalecer o direito do trabalho, como ramo de direito ao serviço dos trabalhadores. A tecnologia, digital ou não, não pode transformar-se num simples meio de aprofundamento da exploração. Cabe-nos a nós, trabalhadores, impedir que tal suceda.
- 1. Digo «quase» porque no caso deste tipo de plataformas, são elas mesmas que servem de intermediárias com o cliente, assumindo os custos relacionados com a promoção, marketing… Logo, não sendo totalmente parasitárias, o retorno que obtêm é desproporcionado face ao que retira quem executa, de facto, o serviço.
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