Vôos «low cost» e um pequeno mas cómodo hotel no Quartier Latin, junto à Sorbonne, tudo arranjado na Internet a um preço em conta, nesse regresso à Cidade Luz onde várias vezes me hospedei na Casa de Portugal (Casa André Gouveia).
Há anos, a «Maison du Portugal» ameaçou fechar por falta de fundos, mas a mobilização de antigos utilizadores conseguiu salvá-la, mais moderna e remodelada. Uma amostra de como uma intervenção cidadã pode evitar grandes asneiras, como a que agora aflora, de forma diversa, com o Forte de Peniche, símbolo da resistência à ditadura, que mentes demasiadamente planas querem passar a hotel de luxo.
No avião, no lugar ao lado da minha mulher, uma compatriota, a regressar ao trabalho em Paris, mete conversa com ela (que tem a invulgar arte de ouvir). Secretária de uma clínica médica (com referências à crescente agressividade dos utentes), acorda às 5h e regressa às 21h, na escravidão do «metro-bulot-dodo» (metro-trabalho-dormida) sem tempo para respirar, aguardando o tempo para a reforma, como se a vida se resumisse a alcançar o descanso da velhice.
Chegada a Orly já noite e com chuva, e ida a um restaurante de fast food para despachar.
Espera exagerada, senha 40 quando a 50 já foi aviada, leio o jornal, a minha mulher decide ir esclarecer a dúvida sobre a demora do serviço e volta chocada.
Relato do acontecido: depois de, com o ar pacífico (uma sua marca pessoal), ter perguntado ao empregado se o serviço demorava, o jovem gaulês olha para ela mas não responde. Nova tentativa. Nada. Nem sim, nem não, nem talvez. Mudez total. Um silêncio inesperadamente hostil. Repete esforçadamente a pergunta. O mesmo resultado.
Surpreendida, pede para falar com o responsável, que apenas acrescenta o silêncio de um encolher de ombros. Bruscamente, um jovem de traços magrebinos ali presente avança para o balcão e berra: «Deixem-se de parvoíces! A senhora fala muito bem francês e vocês percebem-na perfeitamente! Não podem tratar assim os estrangeiros!». «Pas de conneries!». E zás!... Atira o café à cara do empregado.
O problema do serviço é resolvido sem mais palavras. Com o seu sentido de humor, ela ainda oferece outro café ao seu «salvador», mas ele agradece e vai-se embora resmungando qualquer coisa como: «Estou farto destes cabrões!».
«Nada de invulgar!» – Comenta no dia seguinte o meu sobrinho ao telefone, depois da big night eleitoral nos USA, com Hillary Clinton favorita nas sondagens quando adormeci, e Trump vencedor quando acordei.
«Mas, no editorial, a preocupação é se Donald Trump irá diminuir a acção militar dos USA "abandonando o intervencionismo liberal, a promoção dos 'valores' e
dos direitos do homem, a vontade de instituir para a comunidade internacional normas conformes com os direitos democráticos…"»
É difícil escolher entre o horrível e o péssimo, mas quando o horrível ganha, animando os mais execráveis extremismos de direita, só se pode ficar preocupado. Também em França, a oposição a Marine Le Pen nas próximas eleições é apresentada como uma escolha entre o mau e o pior, com candidatos cada vez mais descredibilizados.
O Le Monde parece lamber as feridas a acreditar no título das crónicas nas páginas interiores: «O colapso das instituições americanas»; «O fim dos contrapoderes»; «A xenofobia relançada»; «Uma democracia que se alimenta da guerra»; «A era das insurreições eleitorais»; «Amanhã, a França?».
Mas, no editorial, a preocupação é se Donald Trump irá diminuir a acção militar dos USA «abandonando o intervencionismo liberal, a promoção dos "valores" e dos direitos do homem, a vontade de instituir para a comunidade internacional normas conformes com os direitos democráticos…».
Ora, considerar as guerras de destruição do Iraque, da Líbia e da Síria, ou o apoio a Israel e aos bombardeamentos da Faixa de Gaza – assim como os assassinatos extra-judiciais com drones, e a feroz perseguição a Assange e Snowden – uma promoção de «valores» democráticos é, no mínimo, uma piada de mau gosto.
Longe dessas preocupações de «isolacionismo», a extrema-direita israelita teve, segundo o Le Figaro, «reacções eufóricas» com a vitória de Trump. «Entramos numa nova era e devemos recomeçar a construir» – referiu ao jornal o deputado ultradireitista Moti Yogev, que defende uma intensificação da construção de colonatos nos territórios ocupados da Cisjordânia, acabando com a ideia dos dois estados do tratado de Oslo.
Também David Friedman, advogado republicano apresentado como próximo embaixador dos USA em Israel, defende essa política ilegal e agressiva, assim como a passagem da embaixada de Tel-Aviv para Jerusalém, violando as decisões da ONU que a considera uma cidade internacional e não israelita.
A matutar nesta cascata de perigos, meto-me no metro e vou ao Centro de Congressos para a inscrição, que este ano é mais barata para os ortopedistas portugueses que, como disse, são convidados especiais.
Os preços dos congressos médicos internacionais são altos (700 – 1000 euros em média), e com as despesas de viagem e alojamento são um custo pesado para o ordenado de um especialista do Serviço Nacional de Saúde português, que não conta com quaisquer apoios do governo. Este parece considerar a participação em congressos uma espécie de desporto, preocupando-se apenas com o número de consultas e cirurgias.
De resto, se o médico estiver em regime de dedicação exclusiva (trabalhando só para o Estado), nem sequer tem direito a descontar as despesas com a sua formação científica no IRS, ao contrário dos que exercem medicina privada. Fica assim mais dependente do apoio das firmas farmacêuticas e de material clínico, principais sustentáculos do intercâmbio científico nacional e internacional.
À entrada do Centro de Congressos, um segurança manda abrir sacos e mochilas de forma aleatória (suspeito que escolhendo especialmente as raparigas jeitosas), vasculhando os objectos pessoais, num hábito que se vai entranhando com os apalpanços e intrusões nos aeroportos. Depois, verifiquei que bastava andar com a sacola do congresso para poder transportar bombas ou pistolas sem chatices.
No congresso, o reencontro com colegas franceses, amizades construídas ao longo dos anos em estágios, jantares, discussões, visitas ou jornadas, em Portugal, França ou noutros cantos do mundo, de forma especial com o grupo da Ortopedia Infantil, área em que mais me especializei.
«Sabe, em Portugal passam o tempo a beber café, não trabalham nada! Não é como aqui em França!…»
Alguns, que conheci ainda jovens mas brilhantes, estão agora no topo da hierarquia da organização e da capacidade assistencial e científica. De uma forma geral, são críticos de Le Pen e de Trump, sem se afastarem demasiado do «centro moderado».
Curiosamente, uma das sessões é dedicada ao «Tratamento cirúrgico das vítimas de terrorismo urbano – Paris 13/11/15», pelos ortopedistas que as trataram.
Nas de Ortopedia Infantil, Portugal está bem representado, porque, se temos limitações na grande investigação, estamos ao melhor nível na capacidade técnica e assistencial.
À noite, jantar num aconchegado restaurante de Montparnasse organizado pelo grupo «infantil» francês mais destacado. Alegre, informal, fraterno, com muita conversa técnica à mistura (ponham dois ortopedistas na mesma mesa e eles só falarão de ossos…), e boleia de um notável professor de Ortopedia de um dos maiores hospitais de Paris, já aposentado.
Culto, delicado e elegante, poucos sabem que é português, filho de pais portugueses. Chegou a França vindo ainda criança de Marrocos onde o pai, pescador emigrado, conseguiu ter sociedade num barco e melhorar a sua condição. Uma corajosa história de vida, exemplo de luta por um futuro melhor, tendo alcançado um lugar de topo no competitivo meio ortopédico francês.
Fim do congresso na sexta, com as comemorações do armistício da I Guerra Mundial a continuarem-se com as dos atentados de há um ano, executados por jovens parisienses radicalizados, e não por estrangeiros ou refugiados, como parece perceber-se quando se ouvem as autoridades francesas e se avaliam as medidas para reforçar fronteiras.
Na altura, François Hollande, cavalgando a onda da revolta e macaqueando o pior de Bush júnior, decidiu declarar: «Estamos em guerra!».
Mas guerra a quem?
Mais bombas francesas sobre a Síria, sem legitimidade nem legalidade, aumentando a onda de refugiados, como veio a acontecer?
Não seria mais lógico, eficaz e humano, fazer guerra à marginalização xenófoba dos franceses de segunda e terceira geração, filhos de emigrantes árabes e magrebinos, que leva à sua «radicalização» contra uma «pátria violenta e opressora» que não os reconhece como seus?
É fácil imaginar o rapaz que atirou o café, num outro grau de revolta, a disparar uma arma por ser continuadamente desprezado no seu país, apesar de ser francês e sempre ter vivido em França.
Há sempre alguém que pode simplesmente fartar-se de ser cercado e encostado à parede pela polícia, (como vi numa paragem do metro), ou, como refere a jornalista Carla Barata no Público de 13/11/16, enfurecer-se porque lhe atiram «olhares de receio, de desconfiança, de ódio porque – tu não és francês, tu és emigrante, o que é que estás aqui a fazer?».
«Não há terrorismo objectivamente de esquerda. Pode haver terrorismo que se afirma de esquerda, o que é diferente.»
Parece haver a expressa vontade de atemorizar a população francesa com a ideia de «agressão exterior», aproveitando o medo para prolongar as medidas de excepção, aumentando a discricionariedade da actuação das forças policiais e a tensão entre os brancos gauleses que «estão em casa» (como afirma Le Pen), e os «outros», os franceses de segunda ou os estrangeiros, que estão a mais e são perigosos.
Na realidade, o terrorismo, só serve (e serve sempre) a direita. Quer seja cometido por órfãos desesperados, ou, mais «assepticamente», por drones ou bombardeiros de países «democráticos». Não há terrorismo objectivamente de esquerda. Pode haver terrorismo que se afirma de esquerda, o que é diferente.
Pelo próprio conceito de desumanidade friamente criminosa, tendo como alvo vítimas inocentes, causando a natural repulsa da população e o isolamento de quem o apoie, o terrorismo nunca pode ser de esquerda e nunca é útil à esquerda. Mas tem dado uma boa ajuda à deriva de direita que se tem observado nos USA e na Europa.
E, em Paris, há refugiados árabes das bombas dos radicais islâmicos que, com muito mais frequência que em França ou em qualquer país do «Ocidente», continuam a destruir os bairros e cidades muçulmanas de onde fugiram.
Alguns, que a «Europa» não quer receber depois de lhes ter destruído a paz, vagueiam pelos cantos tentando sobreviver, como uma família síria (pai, mãe e filha pequena) que estava a mendigar no metro, com um cartaz que os identificava como tal.
Já na carruagem, não resisti a atirar uma piada negra à minha mulher: «Perdeste a tua oportunidade de lhes ensinar o português!»
Professora aposentada e sensível ao sofrimento dos refugiados, ela bem ofereceu os seus préstimos à organização de solidariedade com mais visibilidade. Durante meses mendigou uma oportunidade para ajudar, chegando até a frequentar um curso em Lisboa para melhor os receber. Mas quanto a refugiados, até agora, nada!...
Bicha no aeroporto e nova conversa dela agora com a senhora que estava à frente. Filha de emigrantes mas já nascida em França, vai à terra lusa em visita à família.
«Sabe, em Portugal passam o tempo a beber café, não trabalham nada! Não é como aqui em França!…» – Diz ela, parecendo ignorar que, na Europa, os portugueses estão entre os que mais horas trabalham.
E continua: «Pode ser chato mas a verdade é que os franceses têm razão em ficarem lixados com os estrangeiros que lhes tiram postos de trabalho!...».
Mais uma vítima caseira da propaganda de Trump ou Le Pen, mas também de Sarkozy ou Hollande, com o inventado «imaginário de escassez» e a falsa ideia de que «não vai chegar para toda a gente» e que «há gente a mais», denunciado pelo economista Isidro Lopez, citado por Miguel Urbán no Le Monde Diplomatique, conceitos que servem para encobrir a responsabilidade do capital financeiro na crise e na injusta distribuição da riqueza.
Segundo a ONU, 2010 foi o primeiro ano em que a produção mundial foi suficiente para dar boas condições de vida a toda a Humanidade. E quando uma das suas agências (Oxfam) revela que o desequilíbrio aumentou nos últimos anos e que a riqueza acumulada por 1% da população mundial equivale à dos 99% restantes, há qualquer coisa que não está bem.
O problema não reside, pois, nos emigrantes ou refugiados que «roubam empregos», nem nas más contas dos madraços latinos.
Na realidade, mesmo quanto a isso, há dois pesos e duas medidas, porque «A França é a França!», como afirmou Juncker, justificando as vigarices concertadas com Merckel e C.ia para «acerto» dos números do défice gaulês, também confirmadas por Hollande no livro «Un presidente ne devrait pas dire ça», que tanto tem dado que falar.
Talvez seja essa uma das marcas do eixo franco-germânico porque também a Renault é agora acusada de aldrabar os índices de poluição dos motores, copiando as «habilidades» da Volkswagen.
Ao voltar a pisar o solo pátrio percebi que temos, pelo menos, uma diferença de que nos podemos orgulhar: enquanto o presidente francês confessou ter mandado assassinar quatro pessoas, até agora e que se saiba, o «nosso» Marcelo ainda não matou ninguém.
A não ser, talvez, de afecto…
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