Decorre até ao final deste mês de Janeiro a consulta pública relativa ao conjunto de iniciativas legislativas dedicadas pelo governo à reforma das florestas, na sequência da época de incêndios catastrófica do verão passado.
Uma das três áreas de intervenção com que o governo pretende reestruturar a nossa floresta é dedicada à titularidade da propriedade florestal, nomeadamente preconizando a criação de um banco de terras «constituído pela totalidade dos prédios exclusivamente ou predominantemente rústicos com aptidão agrícola, silvopastoril ou florestal do domínio privado do Estado, dos institutos públicos, bem como aqueles que venham a ser identificados como sem dono conhecido».
A ideia é permitir alienar, vendendo ou arrendando estes prédios, o capital fundiário florestal do Estado, com a justificação de assim constituir um «fundo de mobilização de terras» que seria necessário à dinamização deste banco. No entanto, o governo não esclarece se, ou como, pretende «resolver» o caso da «bolsa nacional de terras» criada pelo anterior executivo e ainda em vigência.
Por outro lado, e apesar de representarem mais de 14% do «capital» fundiário português, o governo parece querer esquecer-se que os baldios, estes sim, são o verdadeiro «banco» a que as comunidades rurais vêm recorrendo desde tempos imemoriais para «recapitalizar» e «alavancar» o rendimento da sua agricultura.
Parece esquecer-se igualmente que muito do património fundiário hoje «sem dono conhecido» corresponde a terrenos contíguos ao baldio, e cuja utilização era noutros tempos sorteada anualmente entre os compartes – as designadas «sortes» –, entretanto inscritos na matriz como propriedades privadas.
A fruição em comum da terra tem muitas das suas raízes na libertação dos servos da gleba e na sua capacidade de trabalhar e produzir o necessário à sobrevivência da sua comunidade. Trata-se de um processo com grande significado para a história da emancipação do homem e do papel do seu trabalho na sua libertação.
Em Portugal, a história dos territórios comunitários, os baldios, é de isso exemplo também. Com as variações inerentes às condições próprias de cada sítio, na sua origem estiveram reivindicações de terras à Coroa pelos camponeses, as quais eram transferidas para os municípios, bem como a subsequente luta das comunidades contra a sua desamortização e apropriação privada, encarregando-se elas próprias da sua organização, gestão e usufruto.
«A posse é a circunstância mais significativa de uma realidade comunitária que se manifestava igualmente em trocas de trabalho, na organização das tarefas, ou na partilha de meios próprios pelas comunidades serranas.»
Abril haveria de ser um marco decisivo neste processo, consagrando em lei o direito dos povos à posse e fruição em comum deste componente fundamental para a estruturação e o desenvolvimento das comunidades serranas.
A posse é a circunstância mais significativa de uma realidade comunitária que se manifestava igualmente em trocas de trabalho, na organização das tarefas, ou na partilha de meios próprios pelas comunidades serranas. Hoje em dia, e não raramente, estas dinâmicas assumem-se como práticas que urge recuperar para mitigar a delapidação de recursos naturais e energéticos inerentes ao abandono do meio rural, inspirando novas formas de relação com o território e novas soluções de desenvolvimento agrário.
A disponibilização das terras do baldio a quem pretenda instalar-se e assumir-se como comparte numa comunidade rural é já hoje uma realidade a que interessa dar visibilidade e apoiar. Ao mesmo tempo, proprietários envelhecidos, e sem descendência que possa usufruir do seu património fundiário, colocados perante a inevitabilidade de alienar as suas propriedades, mais depressa as cedem à comunidade, para a «junta» ou para a «igreja», do que as vendem a desconhecidos, não fosse esse património, componente fundamental da sua matriz identitária.
O estatuto de terreno comunitário – o baldio – afigura-se mais actual que nunca para dar resposta a estas e outras realidades com que que se confronta hoje o mundo serrano. Nesta «reforma da floresta» do governo, tal parece não ter sido entendido.
Nestes dias de tão grande turbulência bancária, especular com a nossa floresta mediante a financeirização dos seus meios de produção é brincar com o fogo. Acreditar que os mecanismos e as dinâmicas do mercado dos produtos florestais são susceptíveis de sustentar as funções sociais e ambientais do espaço florestal, não é uma questão de crença mas antes uma irresponsabilidade da governação, a acrescentar a tantas outras políticas públicas para a floresta que conduziram ao seu estado actual.
Nos próximos dias, o governo irá ter uma grande oportunidade para recapitalizar este grande «banco público», que são os baldios, quando forem votadas na Assembleia da República, as iniciativas legislativas no sentido de revogar todas as alterações com que a direita tem vindo a desvirtuar a Lei dos Baldios de Abril.
Assim queira o PS contribuir com o seu voto favorável para aprovar essas iniciativas e assim criar condições para os povos serranos recuperarem, em pleno e como factor de desenvolvimento, este seu património histórico e identitário.
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